Justiça e cultura são disponibilizadas aos moradores da Maré de forma itinerante
Por Hélio Euclides em 28/04/2022 às 19h. Editado por Tamyres Matos
A cidade do Rio sofre com limitações de mobilidade, principalmente pela ausência e má conservação dos ônibus, mas são eles que carregam a solução para permitir o acesso a direitos, muitas vezes dificultado justamente por problemas de locomoção do carioca. Um veículo estacionado pode ser uma sala de audiência judicial ou ainda uma biblioteca pertinho de casa, pois esses serviços existem e estão disponíveis para os moradores da Maré.
O Programa Justiça Itinerante, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, oferece a possibilidade de realizar audiências mais perto do cidadão. A iniciativa tem por objetivo criar alternativas mais acessíveis e fomentar a cidadania por meio de atendimentos regulares. Para que isso aconteça, atualmente existem 26 postos em funcionamento no Estado do Rio de Janeiro, sendo um na Fiocruz (batizado de Maré), por atender aos moradores da favela. No ano passado, foram 2.965 atendimentos.
A Justiça Itinerante leva membros do Ministério Público e da Defensoria Pública ao encontro de cidadãos, muitas vezes para cobrir a falta de políticas públicas mais eficientes e acessíveis. “Conheci o projeto através da minha filha que tinha vindo resolver um problema no documento. Esse projeto é uma benção, pois ajuda e não precisamos gastar dinheiro com passagem”, comemora Márcia Alves, moradora da Vila do João.
“O Justiça Itinerante é super valioso, com a presença de um juiz semanalmente. Boa parte da justiça se encontra no Centro da cidade, o que é inviável para o morador mais vulnerável, que precisa gastar com passagem, por isso a importância do projeto. Contudo, pleiteamos um núcleo da Defensoria Pública, um Conselho Tutelar, um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) dentro da Maré, para que os órgãos possam acompanhar o cotidiano do morador.”
Liliane Santos, coordenadora do Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré.
Para Yuri Cohen, assessor do programa desde 2019, o trabalho itinerante é gratificante. “Sinto que ele realmente ajuda as pessoas. É algo diferenciado — um exemplo é quando as pessoas garantem o nome social — e dessa forma percebemos que a justiça está funcionando”, diz. O serviço mencionado é um dos mais procurados, quando pessoas transexuais e travestis podem fazer a troca de nome e gênero em sua documentação sem a necessidade de uma ação judicial ou comprovação de cirurgia. No dia 26 de novembro de 2021, a comunidade LGBTQIA+ teve um evento exclusivo, com 276 atendimentos.
O programa trata de casos de pensão, guarda, tutela, regulamentação de visitas e paternidade, interdição, divórcio, reconhecimento ou dissolução de união estável e partilha de bens, retificação de registro de nascimento e casamento, registro tardio e resignação (mudança de nome e gênero no registro civil). Para primeiro atendimento é necessário levar original e cópia da identidade, CPF e comprovante de residência com o nome da própria pessoa. O posto Maré funciona todas as quartas, das 9h às 13h, próximo à entrada da Fiocruz, na Rua Leopoldo Bulhões, 1.480, Manguinhos. Informações pelo telefone 3133-3468.
Uma carona para os livros
De repente um ônibus azul e vermelho entra na Maré e estaciona na Vila Olímpica Municipal Seu Amaro. Esse é o projeto Livros nas Praças, um ônibus biblioteca com um acervo de dois mil livros disponibilizado gratuitamente para a população por meio de empréstimo gratuito. O ônibus adaptado é um projeto da empresa Korporativa Marketing Cultural, Social e Ambiental.
O projeto iniciou suas atividades há quase dez anos, e desde 2014 dois ônibus-biblioteca rodam pelo Rio de Janeiro (um terceiro já visitou dez estados brasileiros). Na Maré, a parceria com a vila olímpica começou há cinco anos, quando perceberam que o local tinha amplo espaço para atendimento de escolas e o público em geral.
“Poder estimular a leitura nas vilas olímpicas, aliando a educação ao esporte, é um trabalho muito importante. Além do retorno desse projeto na Maré, temos disponíveis bibliotecas gratuitas em três vilas olímpicas: Clara Nunes, em Acari; Dr. Sócrates, em Guaratiba; e Nilton Santos, na Ilha do Governador”, conta o secretário municipal de esportes, Guilherme Schleder. Cerca de 330 mil visitantes leitores já passaram pela biblioteca sobre rodas. A fidelização dos visitantes leitores é percebida através do retorno para a devolução dos livros e novos empréstimos.
Os livros ficam à disposição dos moradores do território para empréstimo via cadastro feito na unidade móvel, com prazo para a devolução dos títulos, estimulando o hábito da leitura. “Acho legal, me sinto feliz quando venho ao ônibus. Espero que outras crianças venham ler também”, convida Kaic Silva, de dez anos, morador da Vila do Pinheiro. No ônibus há livros para todas as idades, incluindo clássicos, literatura nacional e internacional. “Quando lemos é muito bom, espero que todos possam vir conhecer o ônibus”, comenta Maria Clara, de sete anos, moradora do Morro do Timbau.
O projeto é acessível ao público com deficiência visual, oferecendo títulos em braille para todas as idades, e a aqueles com dificuldades de mobilidade, disponibilizando uma cadeira de transbordo para facilitar o acesso à unidade móvel. O Livros nas Praças estará de volta à Maré em abril.
Uma carga de conhecimento
Outro projeto que envolve livros e veículos é o Fábrica de Biblioteca – Doe Livros, do Instituto Vida Real. Anderson Ramalho é responsável pelo projeto e conta que começou a recolher livros com uma Kombi; depois de quatro anos adquiriu o caminhão para o projeto, que funciona há 13 anos. “Nossa maior alegria é incentivar as crianças a ingressarem ao mundo da leitura”, diz.
Os livros recebidos passam por uma triagem para ser encaminhado para quem precisa dele, como alunos de faculdades moradores de favela. Com as doações, o caminhão também incentiva eventos, como feiras e trocas de livros. “Um livro tem um peso natural, e também carrega o peso do saber. Com a leitura, aprendemos que temos deveres e direitos e, dessa forma, força para protestar”, ensina.
Anderson percebeu que diminuíram as doações e a leitura de livros com a pandemia, enquanto que parece aumentar o uso do celular pelas crianças. “Precisamos continuar a incentivar o hábito de ler. Não podemos abaixar a guarda, para que a próxima geração também seja amiga do livro”, conclui. O caminhão recolhe livros em todos os lugares da cidade e de diversas instituições como a Redes da Maré, Pontifícia Universidade Católica (PUC), Colégio Pedro II e Universidade Veiga de Almeida (UVA). Sebastião Antônio de Araújo, presidente do Instituto Vida Real, deseja a multiplicação do caminhão. “É preciso que projetos como esse de incentivo à leitura aconteçam mais. O conhecimento chegaria a todos os cantos, pois tem muita gente sem condições de adquirir um livro”, acredita.