Cidade ‘Integrada’ e a lógica militarizada que deixa corpos pelo chão

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Para especialistas, iniciativa de ocupação de favelas do Rio – que começou por favelas como Jacarezinho e Muzema – segue lógica falha das UPPs 

Jéssica Pires em 10/05/2022 às 10h

Jhonatan Ribeiro de Almeida, de 18 anos, caminhava pelo Jacarezinho quando levou um tiro no peito no último dia 25 de abril. O responsável por puxar o gatilho foi um policial do Batalhão de Choque da Polícia Militar do Rio de Janeiro. A “justificativa” oficial? O rapaz estaria com uma arma – que seria falsa – e drogas no momento do disparo. A família de Jhonatan aponta fraude na acusação. Este roteiro trágico é rotina para moradores de favela. A comunidade da Zona Norte foi ocupada por policiais fortemente armados na calada da noite de 19 de janeiro deste ano. Seriam os primeiros movimentos do programa Cidade Integrada, uma reedição das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).

Laboratório de dados e narrativas sobre favelas e periferias, um dos principais coletivos do Jacarezinho publicou no Twitter: “O LabJaca se solidariza com a família e amigos de Jhonatan Ribeiro de Lima, jovem de 18 anos, pai de uma criança de 4 meses, morador do Jacarezinho e mais uma vítima da falida ‘Guerra às Drogas’. É mais uma face do genocídio do estado, que nesse momento se remodela como ‘Cidade Integrada’, uma ocupação militar que só reforça a lógica racista de atuação das forças policiais”.

O coletivo integra o Observatório Cidade Integrada, iniciativa de um conjunto de organizações que produzem dados sobre qualquer tipo de violação e trazem a visão de moradores sobre o programa na favela do Jacarezinho. Mas, apesar das críticas diversas, este tipo de ação espetacularizada historicamente seduz uma significativa parte da população. De acordo com o Governo do Estado, uma pesquisa feita pelo Datafolha em abril apontou que 59% dos entrevistados (644 moradores) são a favor do programa.

“Sem diálogo com os moradores e por trás de uma cortina de promessas de serviços sociais e obras de infraestrutura à comunidade – ações que nunca chegaram -, intensificou-se a lógica de gestão urbana sob a tutela do fuzil e de ações truculentas”, critica o LabJaca.

Que integração é essa?

O programa que chegou em janeiro de 2022, ano de eleições, nas favelas Jacarezinho, Muzema, Tijuquinha e Morro do Branco, prevê expansão para outras áreas do Rio, incluindo a Maré, de acordo com o anúncio inicial do governador Cláudio Castro.

Os eixos do programa, de acordo com o decreto estadual nº 47.928, são: social; desenvolvimento econômico; infraestrutura; diálogo com a comunidade; transparência; segurança pública e consórcio entre entes públicos. Os objetivos específicos de cada um desses eixos seriam alcançados por meio de programas que desdobram e integram a ideia de ocupação a melhorias em habitação, mobilidade, trabalho e renda e educação. O Cidade Integrada prevê ações de cerca de 40 secretarias e órgãos estaduais nas favelas, voltadas para todos os gêneros e faixas etárias.

A origem desse projeto, que no papel parece responder a ausência de políticas públicas em territórios da favela, assemelha-se a outro, cujo fracasso é conhecido pela maioria daqueles que deveriam se beneficiar dele: as Unidades de Policiamento Pacificadora (UPP).

Origem sangrenta

No dia 6 maio de 2021, a favela do Jacarezinho foi cenário de uma chacina sem precedentes. Desde 2016, a plataforma Fogo Cruzado, que realiza o monitoramento de operações policiais em todo o Brasil, não havia registrado tal número de mortes durante uma operação da polícia em uma favela. Foram 28 vidas interrompidas nesta ação que teve repercussão internacional e ficou então reconhecida como a “Chacina do Jacarezinho”. Oito meses depois, em 19 de  janeiro de 2022 (um ano de eleições), foi realizada uma operação policial, no mesmo território onde foi inaugurado o Cidade Integrada.  

Uma coisa que pra mim é marcante pra descrever o que foi para o morador este dia  é que, na noite posterior à chacina, houve um grande protesto no Jacarezinho, e compareceram muitas pessoas, desde ativistas e membros de movimentos sociais a políticos — tudo aquilo que se espera de uma passeata sobre uma chacina — e, obviamente, familiares das vítimas. Mas os moradores também foram. Aqueles que não eram familiares, que não eram ativistas, não eram de movimentos sociais; eram só moradores. Foi um evento tão traumático que pessoas que não participariam de um protesto foram lá.O que tinha acontecido ganhou tal magnitude que conseguiu mobilizar o morador que está fora do campo da política, da segurança pública ou dos direitos humanos”, relata Pedro Paulo da Silva, morador do Jacarezinho, pesquisador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) e coordenador de pesquisa do LabJaca, o laboratório de dados e narrativas sobre favelas e periferias com sede na favela do Jacarezinho. e pesquisador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)

Relembrando as UPPs

O programa Cidade Integrada, de acordo com o próprio governador Cláudio Castro, segue uma lógica bem parecida com a das UPPs, implantadas em favelas por todo o estado a partir de 2008. Porém, elas não cumpriram alguns dos objetivos apresentados inicialmente. Em 2018, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para entender como a verba destinada a esse programa foi utilizada. O consenso é de que um dos principais objetivos (coibir as atividades de grupos armados nas favelas que receberam as UPPs) não foi atingido.  

“Todo esse investimento em segurança pública concentrado em uma política do confronto não resolve. A segurança pública nas favelas nunca é pautada de forma preventiva e estratégica. Já vivenciamos uma ocupação que em nada melhorou o cotidiano e a segurança dos moradores.”

Arthur Viana, morador da Nova Holanda, integrante do Fórum Basta de Violência Outra Maré é Possível e coordenador da campanha Somos da Maré! Temos Direitos, que busca mobilizar e fortalecer o protagonismo da população da Maré na luta por seus direitos básicos, como a segurança pública.

Sem diálogo

Apesar de um dos eixos programáticos da ocupação ser a transparência (item em destaque no site do programa, cidadeintegrada.gov.rj.br) não há descrição das ações, cronograma de implantação ou como serão usados os cerca de R$ 500 milhões previstos para investimento no Jacarezinho e nas favelas da Zona Oeste. 

Assim como aconteceu com as UPPs, o “diálogo com a comunidade” também esteve ausente no Jacarezinho antes da implantação do programa. Só depois da chegada das forças policiais ao território a comunidade foi convidada ao diálogo. 

 “O problema é que, ainda assim, esse diálogo é vertical. É importante a gente frisar que o Estado ocupou o território e, só depois disso, tentou abrir um canal de comunicação. Então o que houver daqui pra frente vai acontecer nesses termos: um diálogo cujo pano de fundo é uma ocupação militar. Não é algo que a população tenha clamado”, explica Pedro Paulo 

O Conjunto de Favelas da Maré  foi citado no lançamento do programa, em janeiro, como um dos próximos territórios a receber as ações do Cidade Integrada. Segundo o Núcleo de Mídia Alternativa e Comunitária do governo estadual (apontado como referência para informações sobre o programa pela assessoria de imprensa da Polícia Civil), não há previsão para a chegada do programa na Maré. A mesma resposta foi dada sobre como se dará a ação das secretarias envolvidas no projeto e sua integração com as organizações da sociedade civil (como a Redes da Maré ou o Fórum Basta de Violência Outra Maré é Possível) que lutam e monitoram o direito à segurança pública na Maré.

Já está em andamento, porém, o projeto Na Régua, da Secretaria de Infraestrutura e Obras, que oferece assistência técnica gratuita para serviços de arquitetura e engenharia às famílias cujas moradias estejam em situação de vulnerabilidade. De acordo com o decreto que apresenta o programa Cidade Integrada, o Na Régua é uma das ações previstas no campo da habitação. A implementação do projeto, na Maré, está ocorrendo em casas de Marcílio Dias e Parque Maré. 

“A gente supõe que um programa de integração realmente faça a ponte com quem mora naquela localidade e depois com órgãos públicos de assistência. Mas não acontece aqui. É uma ocupação que acontece para uma campanha eleitoreira. O legado disso é absurdo. São violações irreparáveis: materiais e psicológicas.”

Mônica Cunha cofundadora do Movimento Moleque Mônica Cunha, técnica em educação antirracista e suplente de vereadora no município do Rio de Janeiro.


Governo denunciado na ONU

No dia 18 de março, o governo do Rio de Janeiro foi denunciado na Organização das Nações Unidas (ONU) por violações de direitos cometidos em operações policiais em todo o estado. O relatório condena o programa Cidade Integrada ao citar mortes e prisões infundadas e apontar a existência de falhas no reconhecimento fotográfico em delegacias do estado. Segundo os advogados que assinaram a denúncia, o Cidade Integrada é “a insistência das práticas condenadas pelas cortes judiciais e pelos organismos internacionais”.

“Quem  construiu esse país e continua essa obra não é quem tem direito a ele. Temos que denunciar e falar sobre isso, o tempo inteiro. Então foi acertadíssima essa denúncia para a ONU”, diz Mônica, que acompanhou os advogados e juristas que formalizaram a denúncia no escritório do Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU em Nova York, nos EUA. 

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