Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar

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Por Marcello Escorel em 09/10/2021 às 6h

Quando nós, atores, nos preparamos para entrar em cena, temos o costume de com as mãos dadas, formar um círculo e recitar uma espécie de Credo que tem algumas variantes, mas que não diferem, de forma alguma quanto ao conteúdo:

“Eu seguro minha mão na sua para que, juntos, possamos fazer tudo aquilo que eu não posso, não quero e não consigo fazer sozinho.”

Em roda, brincando e concentrados, estamos repetindo um ritual que talvez seja o mais antigo da humanidade: formar um círculo.

Posso especular que o fogo, nosso avô na crença dos xamãs, tenha sido o catalisador da formação de círculos. Imaginem nossos ancestrais todos reunidos ao redor de uma fogueira para se protegerem dos predadores noturnos. Toda a tribo formando uma roda cujo centro é um ponto irradiador de luz e calor.

Em praticamente todas as culturas, o círculo é um símbolo da totalidade da alma e por consequência da divindade. Também carrega em si a propriedade de ausência de distinção ou divisão. Nesse sentido, evoca o conceito democrático de que somos todos iguais, elementos de uma mesma comunidade, como atesta a tradição arturiana da Távola Redonda.

É engraçado que o círculo, tão primitivo, conhecido desde a Idade da Pedra antes mesmo da invenção da roda, teime em continuar tão presente mesmo nesta era tecnológica. Afinal, lá está ele girando enquanto esperamos que um link ou um aplicativo seja carregado em nossos computadores ou celulares.

Atestado em todas as culturas e em suas religiões, vemo-lo aparecer nas mandalas budistas de meditação, nas rosáceas das catedrais góticas, no halo dos santos e dos anjos e no próprio Jesus, rodeado pelos quatro evangelistas à moda do deus egípcio Hórus e seus quatro filhos.

O glifo do Sol na astrologia é um círculo com um ponto no meio e o próprio Zodíaco é um caminho celeste circular onde o Sol perambula durante o ano.

No Islamismo há uma corrente mística conhecida como sufismo onde os devotos, chamados de dervixes rodopiantes, dançam imitando a ronda dos planetas em torno do Sol, um paralelo da busca de Deus, simbolizado pelo Sol.

No Cristianismo também podemos encontrar este motivo da dança circular num texto apócrifo (não validado pela Igreja Católica) chamado “Atos de João”. Antes da crucificação, Jesus pede a seus apóstolos que, de mãos dadas, formem um círculo enquanto ele se coloca no meio. Jesus se comporta como um mestre cirandeiro começando a cantar enquanto seus apóstolos cirandeiros respondem as frases do Cristo com um Amém.

“Quero ser salvo e quero salvar. Amém.

Quero ser desligado e quero desligar. Amém

Quero ser ferido e quero ferir. Amém

Quero ser gerado e quero gerar. Amém

Quero comer e quero ser devorado. Amém

Quero ser pensado, eu, que sou todo pensamento. Amém

Quero ser lavado e quero lavar. Amém

Quem não dança não sabe o que acontece. Amém

Quero ser unido e quero unir. Amém

Sou uma lâmpada para ti que estás me vendo. Amém

Sou um espelho para ti que me conheces. Amém.

Sou uma porta para ti que bates diante de mim, pedindo para entrar. Amém

Sou um caminho para ti que és um peregrino.

Mas quando continuares a minha ronda contempla a ti mesmo em mim, que estou te falando.

Enquanto dançares considera o que estou fazendo. Vê que este sofrimento que eu quero sofrer é o teu (sofrimento), pois não compreenderias o que sofres se meu Pai não me tivesse enviado a ti como Palavra.

Se conhecesses o sofrimento possuirias a impassibilidade. Conhecei, pois, o sofrimento e terás a impassibilidade.

Reconhece em mim a Palavra da Sabedoria.”

Jesus

Não sei quanto a vocês, mas a imagem de um Jesus que dança e canta é muito reconfortante para mim, principalmente neste tempo obscurantista que associa o nome dele a toda forma de intolerância e exclusão.

O círculo, em significado simbólico, está a léguas da forma piramidal que é o reflexo das sociedades de consumo modernas, cuja base miserável sustenta os poucos privilegiados do topo. O círculo da igualdade é a revolução da esperança, já que Deus, ele próprio, pode ser intuído como um círculo cujo centro está em toda parte.

E agora gostaria de fazer um apelo. Me sinto muito solitário aqui em casa, cercado de livros, preocupado com minha pequena missão de elaborar uma coluna a cada quinze dias. Sou um ponto que se quer evoluir para um círculo abrangente. Já está mais que na hora de estabelecer um contato mais direto com vocês, meus leitores. O apelo é para que me escrevam. Quero um retorno, quero formar um círculo com vocês. Minhas palavras serviram a algum propósito? Pude fazer alguma diferença em seus questionamentos, suas reflexões, suas vidas concretas?

Num círculo enxergamos a todos, somos iguais e conseguimos nos colocar no lugar de nossos irmãos cirandeiros.

Nesta época em que nossos “líderes” vetam absorventes para as meninas que não tem como comprá-los, vetam a instalação de internet nas escolas públicas e outros segregacionismos que  é fundamental darmos as mãos formando um grande círculo de proteção e engajamento. Como nos “Atos de João”, somos chamados a dançar com alegria e esperança, somos convocados para resistir e espalhar a mensagem de que é possível, é imprescindível, a construção de um mundo mais igualitário e includente.

No círculo somos todos um. Nossa força reside em nossa identidade comum e em nossa alma, que não possui cor, nem raça nem distinção de gênero. Nada que nos separe. Amém.

Escreva para o Escorel em [email protected]

Marcello Escorel é ator e diretor de teatro há mais de 40 anos. Paralelamente a sua carreira artística estuda de maneira autodidata, desde a adolescência, mitologia, história das religiões e a psicologia analítica de Carl Gustav Jung.

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