Por Dentro da Maré #2 Comerciantes da Maré em tempos de pandemia

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Histórico de resistência e mobilização coletiva 

Jéssica Pires

Quarta-feira, 25 de março de 2020, fez um mês que o novo coronavírus chegou ao Brasil. Chegou o vírus e, com ele, muitas incertezas. O mundo quer saber quando chegará a vacina que vai garantir a cura para essa pandemia. Mas, na Maré ,  existem, outras dúvidas. Na real, queremos saber como é que fica o armarinho do Sr. Fernando na Rua Portinari, no Parque União, em tempos de recomendação de isolamento?  

“Até o momento, não lembro de termos vivido algo assim. O pessoal já está sem dinheiro para pagar. Já tivemos vendas fracas, mas como está agora, nunca”, desabafa Ana Paula Lemos, 37 anos, moradora da Baixa do Sapateiro. Assim como muitos moradores, Ana tem um comércio na Maré. Vende perfumes.  

O comércio é uma das  principais atividades do nosso território. Na Maré tem muito bar. Tem loja de roupa pra tudo que é estilo.  Alimentos? Tem supermercado, sacolão, bomboniere, tendinha e assim vai. Aqui tem loja de material de construção, móveis, biju. Até motor marítimo se vende por aqui. Tudo para atender os mais de 140 mil moradores, acolher o público externo e garantir a renda de muitas famílias. 

É uma história que começou lá longe, junto com a própria Maré.  No início, o comércio acontecia dentro de próprias casas ou em um “puxadinho”. Era um jeito de  garantir a renda e, ao mesmo tempo, solucionar demandas locais. A história do Sr. Fernando e de seu armarinho, que quase são um personagem só, é uma que caracteriza bem essa galera. Ele chegou no Parque União praticamente junto com a formação do lugar, na época das palafitas. Não sabe contar a história da sua vida sem falar, com emoção, do armarinho. E, se você perguntar hoje pra qualquer morador do Parque União de mais 30 anos onde ele comprava papel almaço para os trabalhos escolares, a resposta é unânime. Confere aqui mais sobre essa história linda do Sr. Seu Fernando. Também tem o Seu Ramos, que vende lajes na Vila do João. O Euclides, da Vila do Pinheiro. Dona Lúcia, que tem o bar em Marcílio Dias. E a Amparo que faz uma comida sem igual, no Morro do Timbau. Foi por um longo caminho de resistência busca de autonomia que essas pessoas, e tantas outras, criaram e desenvolveram o comércio na região.

De acordo com  o Censo de Empreendimentos da Maré, atualmente, o comércio representa 66%  da atividade econômica do território. Os moradores de favelas são empreendedores natos e a Maré é só mais um exemplo disso. Essa galera movimenta cerca de R$ 119,8 bilhões por ano, de acordo com a pesquisa “Economia das Favelas – Renda e Consumo nas Favelas Brasileiras”.  E aí surge o novo coronavírus. A recomendação da Organização Mundial da Saúde é ficar em casa e fechar o comércio. E agora? Como garantir a renda? 

Abre comércio, fecha comércio. 

Presidente fala, prefeito obedece, governador desautoriza. Mas depois pensa melhor. Na terça-feira,  24 de março,- o presidente Jair Bolsonaro fez um pronunciamento criticando as recomendações de isolamento. No dia seguinte, o prefeito Marcelo Crivella disse que iria reabrir parte do comércio. Logo em seguida, o governador Wilson Witzel o desautorizou. Mas, no mesmo dia, o próprio governador voltou atrás. E disse que, para manter parte do comércio fechado, precisava de apoio do governo federal . Na quinta, 26 de março, o prefeito republicou o decreto que autorizava a abertura de parte do comércio, incluindo lojas de material de construção. No fim dessa mesma semana, o presidente continuou a se pronunciar contra o fechamento total do comércio: “tem que trabalhar, sustentar a família, cuidar dos filhos”, chegou a afirmar, mesmo com todas as recomendações das autoridades médicas mundiais e nacionais recomendandoo distanciamento social.

Muitas Marés em uma só.

A indefinição do Estado sobre o funcionamento do comércio é refletida na Maré. Até o fechamento deste texto, percebemos que parte dos comerciantes aderem à recomendação de isolamento e fecham as portas aos poucos. As lojas de roupas funcionam com portas meio abertas, com horário reduzido. Supermercados, farmácias e os comércios de comidas continuam funcionando, a maioria com atenção redobrada aos cuidados com a limpeza. Mas cada uma das favelas acaba tendo um comportamento específico. 

É interessante perceber como as 16 favelas que compõem a Maré têm dinâmicas diferentes. Tanto no comportamento dos moradores diante da pandemia, como também do comércio local. Isso se dá por diversos fatores: a organização habitacional delas (quantidade e tipo dos domicílios), perfil dos moradores e de formação do território (se por pessoas vindas de outros estados, ou por remoções), são só alguns destes fatores. Um exemplo: a Vila dos Pinheiros concentra a segunda maior comunidade angolana do Brasil. Esta comunidade trouxe para o território também suas dinâmicas comerciais. 

Durante esse primeiro mês de pandemia, foi possível perceber favelas que acolheram as recomendações de distanciamento social e fechamento dos comércios logo após as recomendações das organizações médicas, e outras que seguiam ainda com a rotina quase sem impactos, com uma rotina intensa de aglomerações. 

Uma crise no comércio da Maré não afeta apenas os comerciantes formais. Impacta também um importante comércio informal, como as feiras livres. Muitas mulheres empreendem e são chefes de família, com a venda de alimentos pelo território. Com o menor número de pessoas nas ruas, por exemplo, esse fluxo se desfaz. 47,8% das mulheres negras têm trabalho informal no Brasil, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, citado na reportagem “Trabalhadoras informais temem não ter como alimentar os filhos em crise do coronavírus” da Revista AzMina. Desse número, são muitas as representadas na Maré. 

Faltam políticas.

Mesmo com todo o histórico mareense de luta pela garantia de direitos, é notável como a ausência da atuação do Estado fica ainda mais evidente em momentos de crise, como o que estamos vivendo. “O coronavírus comprovou a fragilidade das nossas políticas públicas, principalmente nas regiões periféricas de favela. Desde a educação à habitação, principalmente a saúde pública – atenção primária”, comentou Joelma Sousa, moradora da Nova Holanda e coordenadora da Equipe Social da Redes da Maré.

Os impactos da falta de políticas públicas afeta à todos os segmentos. Com um braço tão forte de empreendimentos nas favelas, um olhar especial para esse grupo, auxiliaria em um momento de crise. “Falta mais atitude do governo diante das periferias, algum projeto específico para às favelas. Se fala muito, mas pouco se faz” afirmou Gilmar Junior, presidente da Associação de Moradores da Nova Holanda.

Mobilização para criar alternativas

Mas a  hora é de criar alternativas. As entregas, que já aconteciam em alguns comércios, aumentaram consideravelmente. “Não importa a hora, o lugar, se estiver chovendo. Ainda mais para os grupos de riscos. Estou fazendo entregas e sem cobrar taxa”, conta Luciano Aragão (44), comerciante de bebidas de Marcílio Dias. Surgiram também muitos grupos de WhatsApp específico para vendas. Os comerciantes publicam as ofertas, com a possibilidade de entregas e assim fazem divulgação dos produtos e serviços. Essa é um canal que veio para ficar, acredita Ana Joventino, presidente da Associação de Moradores de Marcílio Dias. 

“Vão ser épocas difíceis, mas o mareense tem essa capacidade de criar, né? E muita fé! Nunca foi fácil pra gente. Mas vamos criar alternativas. Vamos passar por mais essa. Como diz a música ‘enquanto houver sol, ainda haverá’”, diz o colega jornalista Hélio Euclides. Mais um episódio de luta e mobilização pela garantia de direitos dos moradores da Maré.

DICA: O Sebrae Rio (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Rio de Janeiro) lançou uma plataforma gratuita com orientações para empreendedores em meio a pandemia do novo coronavírus.  http://especialcoronavirus.rj.sebrae.com.br/

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