Por Dentro da Maré #1 Fé e vírus não se misturam

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Como as igrejas e representações religiosas da Maré se comportam na pandemia

Jéssica Pires

Em 2018, o Eixo de Desenvolvimento Territorial da Redes da Maré fez um levantamento e identificou a presença de 96 espaços de prática religiosa na região. É muito fácil perceber que esse número já não reflete a realidade. A Maré é um efervescente de religiosidade. E se você caminha em um dia, em um dos “miolos” daqui (encontro de becos e ruas assim chamados por muitos, comuns na Nova Holanda), quinze dias depois já consegue identificar novas portinhas e templos religiosos.  

São as mais diversas expressões religiosas. Católicas, evangélicas (das mais diferentes e recentes), espíritas, afrobrasileiras. O Censo Maré mapeou, inclusive, pessoas que se identificavam de religião oriental, islâmica e judaica, essas não tão vistas no território. 

Fato conhecido é que expressões religiosas são muito comuns nas favelas. Mas na Maré, para além da numerosa presença no território, as religiões tem representatividade histórica e de criação de vínculos das pessoas com seus territórios. No Parque União, que hoje chega a ter quase 20 mil moradores, mais da metade dos moradores se declara católica, cerca de 40% dos quais vieram do Nordeste.

Muitos desses imigrantes (do Nordeste) são responsáveis pela garantia de boa parte dos direitos das favelas, também participaram das primeiras mobilizações e iniciativas de frentes religiosas. Os moradores da Maré criaram suas dinâmicas de lidar e celebrar a fé desde suas primeiras formações. E eles também recriam nesse momento de pandemia as alternativas para evitar o contato físico e aglomerações, recomendadas para a prevenção do Covid-19, ou novo coronavírus.

A notícia do novo coronavírus chegou às favelas da Maré ao mesmo tempo em que foi recebida pelo restante da cidade. Apesar das diversas questões que temos com  a falta da internet (que gera outro texto), ela ainda encurta as distâncias para nós. Como em muitos outros espaços da cidade, o novo vírus chegou com muitas dúvidas. Seria mesmo necessário ficar em casa e se isolar das atividades que faziam desde sempre parte do nosso cotidiano?

Ainda com a confirmação da transmissão comunitária no Rio de Janeiro (ou seja, as pessoas já estavam se contaminando entre si na cidade), alguns líderes religiosos insistiam na necessidade do seguimento das celebrações, e o mesmo acontecia nas favelas da Maré. Terça-feira, 17 de março, foi decretado estado de calamidade pública no Rio de Janeiro. Uma semana caótica, que começou com 31 casos confirmados, e terminou com mais de 100.

No sábado (20/3) nos grupos do WhatsApp das favelas e das igrejas da Maré já rolavam os comentários sobre a possível continuidade dos cultos e encontros presenciais nas igrejas. Alguns super a favor da suspensão. Outros nem tanto. Neste mesmo dia, a Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, o principal órgão da igreja católica no Rio, decretou que os padres deveriam fazer as missas de portas fechadas, sem fiéis, além de estarem suspensas todas as atividades presenciais nas igrejas. 

Conversamos com líderes religiosos e fiéis. Percebemos que alternativas já eram pensadas diante da crescente dos casos confirmados. A rotina de uma das mais importantes redes sociais das favelas da Maré, que até então seguia o padrão dos encontros presenciais, foi alterada pelo vírus.  

Esse fim de semana, (21 e 22/3) sem dúvidas, será lembrado. Rolou transmissão de culto e missa online, louvor coletivo de dentro das casas com hora marcada, louvor nas calçadas. De alguma maneira, mesmo que nesse momento de dentro das casas, os fiéis saíram dos templos na Maré.

Começamos assim, mais uma  semana de aprendizado da favela com um novo personagem, o COVID-19. (a quarentena começou dia 16/2).  Os infectologistas, médicos e especialistas prevêem ainda mais um bom tempo  de isolamento. Isolamento que acontece dentro das possibilidades e dinâmicas de cada território. No fim desta semana vamos falar mais do que está rolando Por Dentro da Maré com o novo coronavírus, continue acompanhando.


Atualização:

Na manhã do dia 26 de março de 2020, quinta-feira, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro incluiu “atividades religiosas” na lista de serviços essenciais por decreto. Mesmo com as orientações da Organização Mundial da Saúde para o isolamento social, o decreto impactou negativamente as favelas. No mesmo dia, templos voltaram a funcionar com normalidade na Maré.

O decreto previa algumas orientações do Ministério da Saúde, o que não foi visto nos tempos que abriram. A sociedade civil incluindo alguns líderes religiosos não aprovaram o decreto, temendo que o número de mortes possa ser grande devido a grande aglomeração nesses lugares.

Na Itália houve a mesma resistência contra as medidas da OMS, o que resultou, atualmente, em milhares de mortes mostrando que o isolamento social é a maior prevenção contra o coronavírus.

Hoje, (27/3) , por volta das 18h, a 1ª Vara Federal de Duque de Caxias (RJ) suspendeu a aplicação do decreto de Bolsonaro que incluiu igrejas e casas lotéricas como serviços essenciais e que, portanto, poderiam funcionar normalmente durante a quarentena. “O acesso a igrejas, templos religiosos e lotéricas estimula a aglomeração e circulação de pessoas”, escreveu o juiz federal na decisão.

No documento, o juiz federal Márcio Santoro Rocha escreve que é “nítido que o decreto coloca em risco a eficácia das medidas de isolamento e achatamento da curva de casos da covid-19, que são fatos notórios e amplamente noticiados pela imprensa, que vem, registre-se, desempenhando com maestria e isenção seu direito de informar”. A decisão é válida pra todo país.

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