Como Amanda Audi denunciou um estupro e perdeu o direito à própria voz

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História da jornalista, que deixou o Intercept após o caso, retrata a revitimização sistêmica que mulheres que denunciam violência sexual sofrem no Brasil

Por Jess Carvalho e Rosiane Correia de Freitas da Plural
* Esta reportagem é fruto de um trabalho em rede feito por jornalistas feministas. Originalmente, ela está publicada em oito veículos de seis estados diferentes: Plural e H2Foz (Paraná), Agência Saiba Mais (Rio Grande do Norte), Sul21 (Rio Grande do Sul), Maré de Notícias (Rio de Janeiro), BHAZ (Minas Gerais) e Escreva Lola Escreva e Eco Nordeste (Ceará). Você também pode publicá-la no seu espaço, desde que reproduza o texto na íntegra e com créditos.

Brasília, 29 de setembro de 2019. O clima era ameno, com direito a televisão ligada no Fantástico. A jornalista Amanda Audi e os colegas Rafael Neves e Rafael Moro Martins, ambos do The Intercept Brasil, onde ela também trabalhava, jogavam conversa fora na casa de Fábio Pupo, repórter da Folha de S.Paulo. Tudo corria bem quando alguém tocou o interfone. Era o economista Alexandre Andrada, professor da Universidade de Brasília (UnB) que mantinha uma coluna no Intercept. Ele entrou no apartamento visivelmente “alterado”, como define Fábio.

“Alterado” é o eufemismo que ele usa para explicar que Alexandre gritava, praguejava e tocava em Amanda sem consentimento. Fábio ficou tão incomodado que preferiu acabar com a reunião, mas na saída Alexandre teria pedido para subir no apartamento de Amanda para tomar um copo d’água, já que ela morava ali perto. “Ela disse que foi basicamente chegar em casa e ele a atacou. Quis forçar pra ficar, pra beijar… Acabou jogando ela no sofá e a agressão aconteceu. Ela falou não pra ele, mas ele não parou”, conta um amigo próximo da jornalista. No dia 6 de outubro de 2019, ela registrou um BO alegando ter sido estuprada. 

Começava aí aquilo que os amigos chamam de “o suplício na Justiça” que Amanda viveu após ser processada por Alexandre e acabar obrigada a deixar de falar sobre o caso. É por isso que sua versão, nesta reportagem, é contada por três pessoas próximas que a ouviram antes que sua voz fosse silenciada. Todos preferiram não ser identificados e a justificativa é unânime: eles temem uma possível perseguição judicial de Alexandre.

Quanto à denúncia de estupro, a reportagem apurou que o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) arquivou porque parecia haver uma “confusão de sentimentos” entre as partes. O pedido de arquivamento foi feito pelo promotor de Justiça Fábio Barros de Matos. Às 14h37 do dia 9 de julho de 2020, o juiz Newton Mendes de Aragão Filho assinou embaixo. A reportagem procurou os dois, mas eles não se manifestaram porque o caso tramitou em segredo de justiça, e falar dele seria contra a lei.

Essa é a síntese da narrativa que virou uma jornalista premiada de cabeça pra baixo. Não há texto nem publicação de rede social que dê conta de tudo o que ouvimos em mais de dois meses de investigação: o sentimento de impotência, as crises depressivas, os remédios, o pedido de demissão, a mudança de casa, a troca de sofá. Amanda foi sistematicamente revitimizada e sofreu as consequências. Alexandre perdeu sua coluna no Intercept, mas segue no mesmo emprego e ainda é casado com a mesma pessoa. Para ele, o que contamos a seguir é “assunto encerrado”.

Em 2019, Amanda venceu o Prêmio Comunique-se na categoria “mídia escrita”. Crédito: reprodução/Instagram

As testemunhas

Antes de arquivar o processo, as autoridades ouviram apenas uma testemunha: Rafael Moro Martins. Ele teria dito à polícia que não presenciou os fatos relatados por Amanda, mas preferiu não dar entrevista sobre o assunto. Disse apenas: “Acredito e apoio incondicionalmente a Amanda nesta história”. 

Já Rafael Neves conta que não foi procurado pela polícia ou pelo Ministério Público em nenhum momento, mas também não se lembra do que aconteceu. “A gente estava reunido na casa do Fábio Pupo, só que naquele mesmo período eu fui outras três ou quatro vezes na casa dele, sempre com pessoas diferentes. Eu só fiquei sabendo mais de um ano depois do que tinha acontecido e não consigo, de memória, lembrar exatamente daquela noite.”

Fábio Pupo, a terceira testemunha, descreveu o que viu no Twitter e chegou a ser notificado pelo advogado de Alexandre, mas não tirou a publicação do ar. Ele também não foi ouvido pelos órgãos competentes nem pela imprensa, mas topou conversar conosco por telefone. Estava claramente nervoso quando nos atendeu – chegou a dizer que estava andando de um lado para o outro da casa e que era difícil falar do caso. Mas, com calma, avançamos. 

Jess Carvalho: O Alexandre tentou te processar?

Fábio Pupo: Ele mandou, por meio do advogado dele, uma notificação extrajudicial para que eu apagasse a postagem que fiz. Só que eu não disse nada de errado. Falei de algo que aconteceu dentro da minha casa, com testemunhas. Não vi por que apagar. 

Crédito: reprodução/Twitter

Jess Carvalho: Como é a relação de vocês? Você e a Amanda?

Fábio Pupo: A Amanda foi minha vizinha desde que chegou em Brasília. A gente é muito próximo, faz muita coisa juntos. Ela é muito amiga minha.

Jess Carvalho: Isso desde Curitiba, né? Vocês estudaram juntos?

Fábio Pupo: Sim, estudamos juntos em Curitiba. E ela já era muito minha amiga nessa época. Depois que eu me formei, fui pra São Paulo. Ela chegou a me visitar algumas vezes e ficou na minha casa. Sempre tivemos certa proximidade. Aí eu vim pra Brasília e, alguns anos depois, ela também veio e nos reencontramos, digamos assim. 

Jess Carvalho: Tem um núcleo paranaense por aí, certo?

Fábio Pupo: Sim. Ela chegou em Brasília trabalhando para o Poder 360 e depois de algum tempo foi parar no Intercept. O Intercept começou a contratar muita gente do Paraná – como o Rafa Moro e o Rafa Neves – e eram pessoas que a gente conhecia, então a gente formou um certo grupo de amigos, ia sempre pro bar junto, frequentava a casa um do outro e assim por diante.

Jess Carvalho: O Alexandre era uma figura presente nessas reuniões?

Fábio Pupo: Eu não encontrava tanto com ele… Talvez duas ou três vezes no bar. Não tinha conversado muito, não sabia em profundidade quem era, acho que só li dois ou três textos dele na vida. Mas sabia que era conhecido pelo grupo. Naquele dia, quando ele apareceu na minha casa, foi uma surpresa pra mim. 

Jess Carvalho: Quem o convidou?

Fábio Pupo: Esses dias me perguntaram isso e eu não sei responder com quem ele estava falando antes, se foi o Rafa Moro ou a Amanda… Mas eu sei que… Vou narrar o dia, então, ok?

Jess Carvalho: Tá bem.

Fábio Pupo: Eu estava aqui em casa com os meus amigos, inclusive a Amanda. A gente estava jogando videogame, pra você ver como estava tranquilo. Daqui a pouco a gente cansou e começou a ver Fantástico. Na chamada, passou alguma matéria curiosa, alguma coisa envolvendo a Amazônia, e a gente quis assistir, só que não passava nunca… Aí a noite foi avançando e o Rafa Moro saiu de casa para encontrar o Alexandre. Ainda com o Rafa Moro fora de casa, tocou o interfone, eu atendi e era o Alexandre. Fiquei surpreso, mas disse que podia subir. Ele chegou em casa muito alterado, acho que é essa a palavra adequada. Ele estava falando muito alto e repetindo as frases. Por exemplo: eu lembro nitidamente de ele ter repetido duas ou três vezes “que honra estar aqui na casa do Fábio Pupo da Folha de S.Paulo”. Uma hora eu falei: “Alexandre, tá bom, obrigado, mas você já disse isso, agora vamos mudar de assunto?”. E assim foi… Ele sentou no banco do lado da Amanda. Seguiu falando alto, em alguns momentos bateu na mesa e gritou com a televisão. Mas não era qualquer grito, não, era tipo um berro. Começou a passar uma propaganda da Federação Brasileira de Bancos e ele, economista, gritou com a televisão. “Ah, essa Febraban é uma filha da puta!!!”. Se não estava claro antes, ficou claro ali que tinha algo muito esquisito.

Jess Carvalho: Mas o que parecia, que ele estava bêbado?

Fábio Pupo: Olha, eu prefiro nem falar. Eu acho que é melhor eu me ater aos fatos, porque os fatos que eu presenciei já demonstram muito. Ele estava muito esquisito. Eu até já tinha encontrado com ele duas ou três vezes antes e ele não tinha esse comportamento, era uma pessoa serena, que fazia piada, uma pessoa até agradável. Mas naquele dia ele estava alterado… Ele estava pegando fisicamente na Amanda, sentado ao lado dela. E eu lembro de ela ter falado algumas vezes: “Ô, para!”. Mas eu não entendi o que estava acontecendo, até porque – e isso usam contra a Amanda – eles já tinham tido um caso antes. Só sei que aquilo foi me incomodando tanto que uma hora eu falei pra gente deixar pra ver a matéria outro dia, porque estava ficando tarde. Todo mundo levantou e foi embora. Fiquei aliviado, sabe? Tomei um banho… Depois de um tempo eu fiquei pensando… Puta merda, mas e a Amanda? E aí vem uma sensação horrível pra mim, porque hoje em dia eu vejo claramente que não devia ter mandado todo mundo embora, só ele. Mas, enfim, não foi o que aconteceu e depois a Amanda relatou que não estava bem. 

Jess Carvalho: Quando ela te contou o que aconteceu?

Fábio Pupo: Ela me contou pessoalmente, acho que foi um dia depois. Eu mesmo não quis entrar em muitos detalhes porque nunca tinha tido a experiência de ouvir algo assim tão diretamente. Confesso que na hora a minha postura foi tentar dizer: “Não, vai dar tudo certo. Bola pra frente, isso não vai te abater”. Mas esse tipo de interpretação das coisas… Não é assim, né? Não é um problema banal, é uma coisa grande. E a Amanda ficou com aquilo pra ela. Hoje eu sei o quanto isso é difícil pra pessoa.

Jess Carvalho: O que aconteceu quando eles saíram da sua casa?

Fábio Pupo: Eu não vou falar do que não vi. Prefiro narrar apenas o que aconteceu na minha casa porque é um elemento importante da história. Não é algo assim… “Ah, a testemunha não tem nada de relevante pra falar”, que foi o que foi dito pela polícia. Eu tenho algo relevante a dizer, sim. 

Jess Carvalho: Tá certo. Você foi consultado como testemunha em algum momento?

Fábio Pupo: Não.

Jess Carvalho: Você deve ter lido o artigo do Alexandre – pra Folha, inclusive. E ele fala muito da reação da Amanda. Você é alguém que acompanhou isso de perto… Como foi?

Fábio Pupo: Foram momentos muito complicados pra Amanda emocionalmente. Muito, muito complicados. Eu não sei até que ponto posso ir, porque é uma coisa muito íntima. Mas posso te assegurar que poucas vezes eu vi alguém nessa situação tão de pé. Tinha vários momentos que a Amanda nem conseguia falar de tanto que chorava, parecia que ia se afogar do próprio choro. Eu não sei como foi possível tirá-la daquela situação. Uma vez eu tive que parar o trabalho pra ir correndo pra casa dela. E outros amigos também. Foram semanas/meses de pessoas se intercalando. Demorou muito pra Amanda sair de casa ou querer ter contato com pessoas fora desse núcleo mais íntimo… Mas a gente, de certa forma, conseguiu. Não vou te dizer que está 100% resolvido, sempre tem uma tensão de que isso possa voltar, mas acho que aos trancos e barrancos a gente tem conseguido.

O “suplício”

Amanda ainda não tinha contratado uma advogada quando formalizou sua denúncia na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), em Brasília. Segundo Isabela Del Monde, que a representa atualmente, faltou orientação, por isso ela não mencionou testemunhas. O corpo de delito também não foi feito porque a jornalista “não tinha marcas e foi à polícia sete dias depois do ocorrido”, mas, na opinião da advogada, “a DEAM poderia ter solicitado o exame mesmo assim para avaliação psicológica”. Alexandre foi quem entregou às autoridades os nomes de Neves, Moro e Pupo como testemunhas, posteriormente.

Além de fazer seu relato, Amanda anexou uma conversa com Alexandre ao boletim de ocorrência. Não tivemos acesso à troca de mensagens entre os dois, mas os amigos dela dizem que, via WhatsApp, ela contou a ele que se sentiu violentada. O economista teria se desculpado sem concordar com a visão dela dos fatos. 

“Com a instauração do inquérito, a polícia deve fazer seu trabalho investigativo. Isso significa ouvir testemunhas, coletar provas, buscar histórico, enfim, formar o conjunto probatório. Não parece que foi isso que aconteceu. A gente tem a informação de que havia uma lista de testemunhas a serem ouvidas e nem todas foram. Com base apenas no depoimento da vítima e do agressor, não é possível que a polícia faça um relatório completo”, aponta a advogada. Ela defende que também faltou periciar o local do fato, procurar imagens de câmera de segurança e buscar impressões digitais ou material biológico e genético, como esperma.

A reportagem apurou que no dia em que o inquérito completaria 180 dias e deveria seguir para a Justiça para eventual prorrogação, um policial ouviu Rafael Moro por telefone. Não consta nos autos um depoimento formal, apenas a informação de que Moro não poderia colaborar para elucidar o caso, porque se tratava de duas pessoas entre quatro paredes. A delegada responsável pela investigação concordou que as demais testemunhas “provavelmente” não teriam como contribuir e encaminhou o relatório para o Ministério Público.

Amanda só soube da decisão de arquivamento mais de um mês depois. Segundo os amigos, foi um golpe duro descobrir que não seria ajudada pelo judiciário e saber que seu próprio chefe, Rafael Moro, chegou a prestar depoimento sem comunicá-la. Outra “infelicidade” foi tomar conhecimento disso tudo na mesma semana em que foi “cancelada” nas redes sociais por uma polêmica envolvendo Jones Manoel. A jornalista foi acusada de racismo por causa de um tweet e teve de se desculpar. 

Tomada por um sentimento de forte indignação, ela também desabafou sobre o arquivamento no Twitter. Pouco tempo depois, Alexandre obteve uma liminar que a impede de se manifestar novamente sobre o caso. Os tweets também tiveram de ser apagados. Não tivemos acesso ao processo porque correu em segredo de justiça, a pedido do autor. 

Crédito: reprodução/Twitter

“Bateu um peso enorme. Esse cerceamento que ela sofreu a deixou realmente muito abalada, de forma que nem a profissão estava mais fazendo sentido pra ela. Se ela dá voz às pessoas, por que não tinha direito à própria voz?”, questiona um amigo de Amanda.

“Muito nos surpreendeu que, na sequência, ele fez uma série de posts no Twitter questionando a reação da Amanda após a violência sofrida; publicou conversas fora de contexto e censuradas, supostamente com pessoas do Intercept; escreveu para a Folha de S.Paulo e declarou no próprio artigo que notificou os veículos de comunicação que divulgaram o caso…”, relembra Del Monde. “Ele partiu para uma ofensiva jurisdicional para garantir que qualquer versão da história que não a dele fosse totalmente abafada.”

No dia 27 de novembro de 2020, a Folha publicou uma reportagem a respeito da falta de investigação do caso. O economista pediu direito de resposta, embora seu advogado tenha sido ouvido pelo jornal. No dia 3 de dezembro, o veículo divulgou um artigo chamado “Jornalismo ou linchamento?”, assinado por Alexandre. No texto, ele defende que a denúncia foi arquivada e, portanto, a Folha publicou uma “temeridade” a seu respeito.

Ele também diz que Amanda postou fotos sorridentes nas redes sociais na semana em que fez a denúncia, colocando-a em dúvida inclusive pelos sete dias que levou para ir à delegacia. Depois indica que uma editora do Intercept teria dito a ele que Amanda “não parecia mal” quando contou a história aos chefes. 

Foi quando a jornalista procurou uma advogada. “A Amanda é uma pessoa que tem na liberdade de expressão um valor muito caro, a trajetória profissional dela mostra isso. A gente entrou com uma ação contra ele porque percebemos que ela estava em uma situação muito injusta, à medida que não podia falar sobre o caso, mas ele não se preservou neste sentido. Como alguém alega que quer a proteção do judiciário para a sua privacidade, o que é legítimo, mas no dia seguinte fala sobre isso abertamente?”, questiona a profissional.

Por entenderem que ele extrapolou os limites da liberdade de expressão, elas entraram com um processo pedindo para que ele também ficasse impedido de se manifestar sobre o caso. O pedido foi deferido.

Arquivar é inocentar?

Quando uma mulher procura a polícia para dizer que sofreu um estupro, sua denúncia dá origem a um inquérito. Depois a investigação da Polícia Civil é enviada ao Ministério Público, que se manifesta. A investigação do caso envolvendo Alexandre e Amanda foi conduzida pela delegada Thalita Nóbrega, que teria se contentado em ouvir apenas uma das testemunhas do caso. Ela foi procurada, mas a assessoria da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) não deu retorno.

“A investigação é conduzida pela Polícia Civil, a quem cabe a coleta de provas e de depoimentos dos envolvidos. Cabe ao promotor de Justiça subsidiar sua análise em técnicas de investigação científico-criminal que permitam certificar o cometimento do fato criminoso, assim como a legislação aplicável ao caso”, diz o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).

Na prática, o órgão decide entre devolver o caso para a polícia investigar um pouco mais, arquivá-lo por falta de provas ou oferecer denúncia para que seja instaurado o processo penal. “Importante destacar que a manifestação do MP está submetida a mecanismos de controle. A posição do MP também passa pelo crivo da Justiça, que deve acolher ou rejeitar uma denúncia ou manifestação de arquivamento.”

O órgão reconhece que a análise de possíveis crimes contra a dignidade sexual é sempre desafiadora, sensível e complexa. “Por um lado, é inegável o sofrimento físico e psicológico da vítima. Por outro, são crimes cuja pena é elevada, o que também recomenda especial atenção para que não ocorram eventuais arbitrariedades. O crime de estupro normalmente acontece em um contexto com pouca ou nenhuma testemunha.”

Quanto à denúncia de Amanda, o MPDFT informa que não pode dar muitas informações por conta do segredo de justiça. “Após a conclusão da fase de inquérito policial e da coleta de provas, o MPDFT constatou que os elementos probatórios reunidos no inquérito policial não seriam capazes de sustentar uma condenação em desfavor do acusado. Assim, foi solicitado o arquivamento em 2 de julho de 2020.”

“O caso foi enviado ao Poder Judiciário, que concordou com o arquivamento por entender que não existiam elementos para a continuidade da persecução penal. Fica ressalvado que, existindo elementos novos, a investigação poderá ser reaberta”, completa o órgão. 

A assessoria do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) destaca que “a decisão de arquivamento do inquérito, via de regra, não faz coisa julgada material. Isto quer dizer que caso aportem aos autos novas provas, oriundas de atividade policial ou mesmo particular, a investigação pode ser reaberta e, em uma perspectiva mais ampla, ser aberta até mesmo a ação penal.”

Perguntamos ao Ministério Público se arquivar é o mesmo que inocentar. “Não, não é a mesma coisa. Inocentar é quando uma pessoa enfrenta o devido processo legal na justiça, que a julga e chega à conclusão de que ela é inocente. Arquivar um processo ocorre quando, com base no inquérito da polícia, ou seja, na investigação, não é possível acusar a pessoa investigada, ou seja, denunciá-la à Justiça para que ela responda ao processo legal e seja julgada. O arquivamento pode ser desfeito e até virar ação penal caso surjam novas provas”, foi a resposta.

O padrão do arquivamento

Amanda não foi a primeira e nem será a última mulher a ver a própria denúncia de crime sexual arquivada. Na verdade, seu caso revela um padrão: olhando para os números, descobrimos que, entre 2014 e 2019, só um quinto das ocorrências de estupro viraram processos judiciais no Distrito Federal.

Durante o período analisado, as delegacias do Distrito Federal registraram 8.465 ocorrências de estupro, segundo dados compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Justiça do Distrito Federal registrou 1.554 novas ações criminais por estupro, o que representa 18% ou pouco menos de ? dos casos denunciados nas delegacias.

A relação entre novos processos e registros de ocorrências variou bastante. Em 2016, houve apenas 55 novos processos e 803 ocorrências (6%). Já em 2019, os 667 novos processos representaram 88% das 756 ocorrências. O próprio número de registros – tanto de ocorrências quanto de processos – também variou.

Nós ainda olhamos para os dados do Datasus de atendimentos a vítimas de estupro no Sistema Único de Saúde (SUS). De 2014 a 2018, foram realizados em média 548 atendimentos por ano. Os dados de 2019 ainda não estão disponíveis. No total, foram 5.485 vítimas atendidas em cinco anos.

A relação entre os dois números, no entanto, merece uma ressalva: uma ocorrência registrada num determinado ano não necessariamente vai virar um processo judicial no mesmo ano. Isso só acontece quando a investigação é concluída, o que pode demorar meses, caso o Ministério Público conceda à polícia mais prazo para realizá-la. Ou mesmo anos, se o caso for reaberto. Da mesma forma, os atendimentos de vítimas de estupro no SUS também não viram necessariamente ocorrências registradas. Isso depende de a vítima decidir fazer, ou não, o registro.

Crédito: Plural.jor.br

Revitimização

O crime de estupro está previsto no artigo 213 do Código Penal Brasileiro, que define: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. 

“Quando olho para essa definição, tem sempre algo que chama a minha atenção: a ‘grave ameaça’, que seria a utilização de força ou algum instrumento de coerção mais intenso, mas a gente sabe que o estupro é qualquer prática de conotação sexual onde não exista o pleno e proativo consentimento”, explica a pós-doutora em psicologia Arielle Sagrillo, que atua no sistema judiciário em casos de violência sexual, tema que ela pesquisa há mais de uma década.

A professora doutora Clara Maria Roman Borges, que dá aulas de Direito Processual Penal na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisa violência de gênero, define: “Não precisa bater, basta forçar. Podem estar dentro de um quarto fechado, se uma pessoa diz não e a outra continua, ou seja, força o ato sexual, o crime se configura: é estupro.”

O problema, na opinião de Sagrillo, é que a prática está muito orientada pela “letra da lei”, o que abre espaço para revitimizações. “O judiciário se pauta em provas. Como o estupro é um crime que geralmente acontece sem testemunhas e sem provas materiais, a gente percebe que é a palavra da vítima contra a do agressor. E a palavra da mulher, no judiciário, é descredibilizada por uma série de mitos – do arrependimento da relação à vingança.”

Segundo a psicóloga, não ganha a verdade, ganha a melhor narrativa. “De modo geral, os advogados e promotores vão tentar criar um discurso e coletar uma série de evidências que sustentem essa narrativa e, portanto, permitam que eles ganhem o caso. Tradicionalmente, o judiciário é muito machista e conservador. Qualquer coisa que sustente o estereótipo da mulher mentirosa vai ser usada pelos profissionais para descredibilizar a fala dessa mulher.”

Por isso o processo de revitimização é, infelizmente, frequente no judiciário brasileiro. “Começa no fato de que a mulher precisa relatar o ocorrido para diferentes profissionais e reviver a violência, muitas vezes em contextos que não são adequados… Na prática, a gente observa que as mulheres são punidas pelas violências que sofreram. Os homens geralmente não têm a carreira e nem a vida pessoal afetadas. As mulheres, além de arcar com as consequências emocionais, são questionadas e têm que arcar com consequências sociais, profissionais e financeiras de terem suas histórias expostas.”

No caso de Amanda, Borges acredita que houve revitimização desde o início. “Ela é vítima de uma violência estrutural de várias instituições e instâncias. E foi realmente colocada no lugar de vítima: a figura passiva que precisa ficar de boca fechada. Sabe o que mais me preocupa? A gente está falando de uma pessoa que tem acesso a tudo, mas tem gente que não tem.”

Assédio judicial

“Ocorre assédio no sistema de justiça como um todo, exatamente como a gente viu no caso da Mariana Ferrer”, reitera Borges. “As mulheres vítimas de violência acabam sendo pressionadas e abandonadas aos seus algozes. E existe também o agressor que usa a esfera judicial para pressionar a mulher que sofreu violência a desistir de buscar justiça.”

No segundo caso mencionado pela professora, o acusado se aproveita de medidas que seriam lícitas para se blindar e evitar que essa mulher fale, tornando apenas a sua versão conhecida. “Eles vão atrás de brechas, buscam recursos como o segredo de justiça, por exemplo. E fica difícil para o juiz não deferir, porque pode ser uma medida necessária para proteger a vítima ou a própria estigmatização do acusado antes do julgamento.”

O problema, segundo ela, é estrutural. “A maioria dos juízes e promotores é composta por homens brancos, heterossexuais e de classe média. Eles dominam a nossa sociedade e querem manter o seu poder, então pra eles as coisas têm que continuar como estão. E os advogados de defesa usam disso porque sabem que do outro lado está um homem.”

A advogada de Amanda defende que essa foi a estratégia de Alexandre quando processou a jornalista, notificou Fábio Pupo e jornais que noticiaram o caso, além de ameaçar de processo outras mulheres que twittaram sobre o tema. Pra ingressar com uma ação judicial, é preciso ter legitimidade. Ele nunca provou que aquilo que a Amanda estava acusando não era verdade. O assédio judicial consiste justamente em acionar o judiciário quando você sabe que não tem o direito de pedir o que está pedindo ou faz isso de maneira excessiva, a ponto de deixar a outra parte num desequilíbrio de armas, afogada em ações judiciais que custam dinheiro. Ou seja, a pessoa usa o judiciário para silenciar e amedrontar.”

The Intercept Brasil

No dia 22 de dezembro de 2020, Amanda publicou seu último texto para o Intercept, uma carta de despedida. “Passei por uma situação pessoal muito complicada em 2019, sobre a qual estou impedida judicialmente de falar (mas qualquer pessoa com um Google pode ter uma ideia do que é). Meus gestores e colegas tentaram me ajudar e tomaram medidas desde o começo. Sempre estiveram ao meu lado. Não me senti desamparada. Mas existem coisas que ultrapassam o poder da boa vontade”, ela escreveu.

E continuou: “Perdi boa parte da força e motivação. Não gosto muito de falar sobre a minha vida pessoal, mas acho importante ressaltar que tive que buscar apoio psicológico e psiquiátrico para lidar com a dor e o desconforto. (…) Não queria sair do Intercept. Mas, para sobreviver, preciso buscar novos ares.”

Em nota, o Intercept disse que Alexandre Andrada era colunista do jornal, ou seja, “contribuía pontualmente”, mas “essa colaboração foi encerrada assim que Amanda Audi relatou à direção do site os fatos que ocorreram com ela”. Quanto às conversas que Alexandre disse que teve com membros da equipe, o veículo respondeu que não comenta posicionamentos pessoais. “Não faz parte da nossa política interna direcioná-los ou restringir suas manifestações.”

No processo que moveram contra Alexandre, as advogadas de Amanda ressaltam que “a publicação do conteúdo das conversas com as pessoas com quem a autora mantinha relação profissional provocaram imenso desconforto dentro do veículo de comunicação, assim como uma exposição humilhante da autora dentro de seu meio ambiente de trabalho, de tal forma que sua permanência se tornou insustentável, motivo pelo qual esta foi obrigada a pedir demissão. (…) As relações laborais se deterioraram de tal forma que sua permanência enquanto profissional se tornou insustentável.”

A reportagem apurou que houve, de fato, muito desconforto. Inclusive no pedido de demissão. O rendimento de Amanda teria caído, por conta dos danos psicológicos. O Intercept a teria apoiado quando demitiu Alexandre, mas sua performance teria sido cobrada pelos editores, posteriormente. Quando pediu para sair, o jornal teria pedido que ela cumprisse o aviso prévio, o que teria aumentado seu mal-estar. 

Questionamos o Intercept sobre o assunto e a resposta foi a seguinte: “Amanda pediu demissão do site e sua saída foi acordada entre ela e a direção de maneira consensual. A repórter teve voz final em todas elas, e estão registradas. Toda a redação despediu-se dela de maneira afetuosa, por e-mail, vídeo e redes sociais, lamentando sua saída.”

Intercept também defende que tem como política não tratar publicamente informações que envolvem a privacidade de atuais e ex-funcionários. “Por isso, nos reservamos o direito de não comentar, por exemplo, fatos relacionados à saúde de Amanda ou das comunicações privadas de qualquer outro integrante da equipe. O que podemos garantir é que, como relatado pela Amanda em seu último texto publicado no site, tomamos as medidas necessárias e legalmente possíveis para apoiá-la.”

A advogada de Amanda acrescenta: “Ficou difícil por causa da proximidade de pessoas do site com os dois, e pelas lembranças que sempre voltavam, mas os próprios envolvidos nos prints que o acusado divulgou disseram que as mensagens foram tiradas de contexto e a apoiaram.”

Danos psicológicos

Os amigos dizem que Amanda sempre foi uma pessoa “fechada”; entender completamente o que aconteceu demandou muita energia dela e de todo o grupo. “Diversas vezes chegou num ponto de ela se machucar porque achou que podia seguir em frente, mas as proporções que isso teve na vida dela e na relação que ela tem com outras pessoas foram gigantescas.”

“Depois da violência, a Amanda começou a tomar remédio e teve crises muito pesadas”, relata um amigo, descrevendo uma situação que levou a jornalista para o hospital. Optamos por não publicar esses relatos, que são bastante densos e íntimos, para evitar uma exposição que poderia ser prejudicial para Amanda e/ou gerar gatilhos para ela e outras leitoras.

Fato é que quem é próximo dela achou amargo ler o artigo de Alexandre para a Folha. Todos os entrevistados enfatizaram que as palavras dele foram bastante equivocadas. “É uma desumanidade o cara falar que ela estava feliz e andando de bicicleta, isso não tem o menor cabimento. Qualquer pessoa humana entende que a gente não consegue demonstrar a dor 100% do tempo. Se a Amanda tivesse feito isso, tenho certeza que não estaria viva hoje”, fala um deles.

“O que ele fez foi a reprodução de uma série de estereótipos que levam as mulheres à morte. Um professor universitário ocupar o espaço de um jornal para dizer que uma mulher demorou muito tempo para procurar uma delegacia e denunciar uma violência sexual? Isso é de uma insensibilidade ímpar. A gente sabe que as pessoas levam anos para falar sobre isso porque não é um ambiente seguro nem acolhedor”, opina a advogada de Amanda, que também coordena o MeToo Brasil.

Para a psicóloga Arielle Sagrillo, é comum que vítimas de violência tenham suas reações questionadas, mas não existe um comportamento padrão. “Pensando em questões psicológicas, emocionais e até na própria neurobiologia do trauma, cada mulher vai apresentar uma reação particular, condizente com a história de vida dela e com as condições emocionais anteriores que ela tinha para lidar com o que aconteceu. Na prática, isso se traduz em comportamentos muito variados, então tem gente que se isola, se cala e apresenta um quadro depressivo, mas outras mulheres conseguem, entre muitas aspas, seguir com a vida.”

“Rir e continuar trabalhando não sinalizam mentira ou acusação falsa. É muito mais complexo que isso”, pontua. “É um desafio para os profissionais da área, como eu, que sou psicóloga e trabalho em diálogo com o judiciário. Penso que é preciso fazer a capacitação para que os profissionais entendam que determinado comportamento, apesar de não corresponder a uma determinada expectativa, ainda assim sinaliza sofrimento e trauma.”

“Caso encerrado”

Alexandre é funcionário público – dá aulas na UnB desde dezembro de 2012. Também é casado e não tem passagens pela polícia. Os amigos de Amanda dizem que ele garantiu à jornalista que estava deixando a esposa, por isso eles se envolveram brevemente. O divórcio nunca aconteceu mas, na versão deles, ela não se incomodou porque as “ficadas” eram comuns entre o grupo de jornalistas, e o affair não foi expressivo para ela. 

Uma fonte próxima ao economista também afirma, em off, que o caso foi “casual”, que eles não estavam juntos na época em que Amanda fez a denúncia e que ele segue casado. Além disso, diz que ele teria processado a jornalista por causa do “linchamento digital” que sofreu quando ela o acusou no Twitter. Ele teria recebido até ameaças de morte.

Quando a denúncia de estupro caiu na imprensa, uma estudante acionou a reitoria da Universidade de Brasília pedindo que Alexandre fosse afastado. “A administração, então, abriu um processo de consulta à Comissão de Processo Administrativo Disciplinar (Cpad/UnB), para verificar o que poderia ser feito institucionalmente. O parecer técnico da Cpad, contudo, descartou a possibilidade de afastamento”, aponta a assessoria da instituição.

Diz um trecho do documento: “Diante do conjunto probatório contido nos autos, verifica-se que os fatos relatados não possuem relação com o exercício do cargo público na UnB ou que ocorreram em função dele. Neste sentido, entende-se pelo não cabimento de processo administrativo disciplinar em face do servidor Alexandre Flávio Silva Andrada pelos fatos noticiados. Ademais, cabe registrar que a Lei 8.112/1990 não prevê o afastamento sumário de servidor de suas atividades funcionais sem o devido processo legal, exceto em caso de cumprimento de determinação judicial”. Com isso, o processo de consulta foi arquivado, e Alexandre segue no quadro de funcionários. Neste semestre, está em licença capacitação.

Enviamos 12 perguntas ao advogado de Alexandre. Foram elas:

1. Qual era a natureza da relação entre Andrada e Audi? 

2. Audi denunciou Andrada por um estupro que teria ocorrido na casa dela no dia 29 de setembro de 2019. Na versão dele dos fatos, o que aconteceu naquela noite?

3. Ele estava bem e sóbrio?

4. Andrada foi consultado pela polícia e/ou pelo Ministério Público? Se sim, qual foi seu posicionamento?

5. Por que ele decidiu processá-la?

6. Quantos processos ele abriu contra Audi e em que pé estão?

7. E outras pessoas e veículos envolvidos no caso? Soube de uma série de notificações…

8. Por que ele decidiu seguir se manifestando depois que ela foi proibida judicialmente de falar sobre o assunto?

9. Andrada pode provar que Audi está mentindo? Se sim, como?

10. Quais foram as repercussões do caso na vida pessoal/profissional de Andrada?

11. Como foi a saída dele do Intercept? Ele segue sustentando que funcionários do site colocaram a versão de Audi em dúvida?

12. Como ele se sente sobre tudo o que ocorreu?

A resposta do advogado Thiago Guimarães foi pontual: “O sr. Alexandre está impossibilitado de falar do assunto, em razão de decisão judicial. A mesma proibição se aplica à sra. Amanda. Do ponto de vista pessoal, o sr. Alexandre entende que esse assunto está encerrado, razão pela qual não tem desejo de retomá-lo.”

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