Como o passado escravocrata ainda afeta a saúde dos homens negros?

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Mortes precoces de Mr. Catra, Mc Sapão e Mc Marcinho, ídolos negros da música brasileira, chamam atenção para a forma como a população negra vem sendo cuidada no país.  

Samara Oliveira e Teresa Santos

Em 2022, o município do Rio de Janeiro registrou 1.648 óbitos entre pessoas com 45 a 49 anos de idade, segundo dados do Observatório Epidemiológico da Cidade do Rio de Janeiro (EpiRio). A liderança ficou com os homens, que responderam por 57,2% dessas mortes. E os homens negros aparecem à frente. Dos 943 óbitos registrados entre pessoas do sexo masculino nesta faixa etária, 576 eram pretas ou pardas. 

Quando olhamos para a Área de Planejamento 3.1, na qual a Maré está inserida, um dado chama atenção: todos os 114 óbitos registrados ocorreram em homens. Desse total, 66,6% eram homens negros. 

As informações revelam que o que mais vitimou esses homens negros do território mareense e adjacências foram causas externas (27,6%), o que inclui agressões, acidentes, entre outros eventos. Em segundo lugar, aparecem as “doenças do aparelho circulatório” (19,7%). 

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A hipertensão arterial é uma das “doenças do aparelho circulatório”. Segundo o historiador Paulo Roberto de Abreu Bruno, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). Ela é reconhecidamente um dos agravos que mais acomete a população negra. Anemia falciforme, diabetes mellitus tipo 2 e deficiência de G6PD, um distúrbio genético hereditário que pode levar à destruição dos glóbulos vermelhos após uma doença ou o uso de alguns medicamentos, são outros exemplos de condições mais frequentes na população negra brasileira.

Ele explicou ao Maré de Notícias que quadros como doença renal crônica e asma também são apontados em pesquisas como sendo de alta incidência na população negra. E, especificamente nos homens negros, os estudos mostram ainda a relevância do câncer de próstata e do glaucoma.

Por que essas doenças?

Segundo o pesquisador da Fiocruz, vários fatores atuam nesse cenário de forma inter-relacionada. A genética, por exemplo, tem um peso importante no caso de algumas doenças, tais como a anemia falciforme, a hipertensão, o diabetes e a deficiência de G6PD.

Mas as condições de moradia, renda, escolarização, entre outros, também são relevantes. Isso significa, por exemplo, que ter ou não acesso à água potável, a saneamento, mobilidade, segurança, lazer também contribuem para o desenvolvimento de algumas dessas doenças.

A alimentação é outro fator importante. “O consumo de produtos industrializados ultraprocessados, bebidas açucaradas, entre outros, em lugar de alimentos saudáveis, ou seja, os hábitos alimentares inadequados exercem forte influência no desenvolvimento ou no agravamento de algumas das doenças citadas”, destaca o professor Paulo.

Outro ponto de destaque é o racismo. O pesquisador ressaltou que estudos publicados no jornal da Associação Americana do Coração e da Associação Americana de Saúde Pública apontam que “o racismo está diretamente relacionado ao estresse, visto que os hormônios liberados nesse estado podem levar ao aumento da pressão arterial, o que, por sua vez, se relaciona com a falência renal”.

Barreiras à saúde 

Em uma sociedade onde as funções de liderança ainda são predominantemente exercidas pelo sexo masculino (patriarcal), os homens podem ter maior dificuldade em buscar cuidados em saúde devido à rejeição a um papel de fragilidade. Porém, para Paulo Bruno, essa questão é mais relevante para os sujeitos de renda mais elevada. “Com relação ao homem negro, considero que as barreiras sejam muito mais difíceis de serem ultrapassadas”, ressalta.

E, para exemplificar essa dificuldade, questiona: “Como deve pensar um homem negro, cujos antepassados foram mortos e torturados por homens brancos e/ou foram obrigados a servirem até a última força a senhoras brancas, quando se vê diante da necessidade de buscar um atendimento médico que, na maioria das vezes, é feito por pessoas não-negras?”.

A falta de acolhimento dos negros nos serviços de saúde é outro problema, bem como a restrição de tempo. “Parte considerável da população negra em geral e os homens que trabalham para manter suas famílias, em específico, sabem que os seus vínculos de trabalho são por demais precários, de modo que o afastamento rotineiro para a manutenção dos cuidados com a saúde é algo impensável”, destaca. 

Mr Catra, Mc Sapão e Mc Marcinho, ídolos negros do funk que morreram antes mesmo de completarem seus 50 anos, são os dados mostrados de maneira personificada quem são esses corpos vítimas – ainda – de heranças coloniais no Brasil. Acometidos por câncer gástrico, pneumonia e cardiopatia/doença renal crônica, respectivamente, os cantores apesar de terem vidas diferentes, carregavam o mesmo passado que toda população negra no país. Fato esse que para o pesquisador Paulo Bruno afeta o cotidiano e a longevidade da vida dos homens negros. 

“O passado escravista afeta sobremaneira o presente da população negra brasileira, sobretudo, se considerarmos que ao fim do escravismo colonial não houve uma reforma agrária no país, um processo que possibilitasse à imensa massa de libertos as condições necessárias para que se estabelecessem com um mínimo de dignidade”, afirma. 

Há outros como Mr. Catra, Mc Sapão e Mc Marcinho nas ruas do Brasil, do Rio de Janeiro, da Maré, que no lugar do cuidado com a saúde fica o trabalho. É o que também ressalta o pesquisador. “Nos transportes públicos na cidade do Rio de Janeiro ou nos de outras grandes metrópoles brasileiras podemos conhecer de perto como trabalham, por exemplo, os vendedores ambulantes, negros na maioria, das primeiras horas do dia até o seu término. Se tivermos tempo e atenção para ouvi-los, então, saberemos que muitos se encontram adoecidos, dormem pouco, trabalham muito, não dispõem de tempo para manterem uma rotina de consultas e exames médicos, tampouco, contam com a seguridade social para pensarem em fazer isso depois de uma aposentadoria”. 

Há como reverter o cenário?

“Como reverter esse cenário no campo da saúde sem reverter as condições gerais da sociedade brasileira?”, questiona o pesquisador. Complementando que para que mudanças pontuais ocorram, são necessárias as mudanças mais profundas e gerais. No entanto, reconhece que as ações precisam partir de algum lugar. Na área da educação, as cotas raciais nas universidades figuram como um dos possíveis pontos de partida. Já, na saúde,  a ampliação da formação crítica de profissionais negros também pode alavancar este processo. 

“Também é preciso pensar na transformação do sistema de saúde como um todo, de modo que as pessoas em situação de maior precariedade tenham a garantia de acesso e continuidade nos seus tratamentos e cuidados com a saúde.”, ressalta.

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