Conto: ‘Alice sem país das maravilhas’

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Por Tarcisio Lima Salazar, em 11/06/2021 às 10h26

Editado por Dani Moura e Edu Carvalho

Ontem assisti ao filme “Anjos do Sol”. Lembrei de Alice, mas ela não cresceu no país das maravilhas. Cresceu sem pai, com o sonho destruído aos 11 anos de idade, quando começou a ser estuprada pelo padrasto. Ela fazia aquilo sem sentimento, sem amor. Ele, depois da ejaculação, vivia como se fosse natural. A mãe trabalhava fora como prostituta. Alice não desconfiava. Nem das vezes que os dois apareciam loucos de cocaína. 

A mãe começou a cheirar quando ela tinha 9 anos, soube depois. Vendeu a casa, a moto e a Van que alugava para lotada ao longo do tempo por efeito da droga.  

Não teve a sorte de ter sido um feto abortado. Mas teve que abortar quando engravidou do padrasto. A mãe ficou do lado dele, como muitas mães dependentes financeira ou psicologicamente. Para ela, a filha era uma vagabunda que se deitava com o  macho dela.

– Ainda boto você pra fora de casa. 

Essa frase ecoava no seu pensamento.

Com 14 anos ela já passou a sonhar em encontrar um amor. Um homem que virasse seu marido e lhe tirasse da vida que levava ao lado da mãe, que já era viciada. No começo a sensação da droga era maravilhosa. Mas o fim é o mesmo. Toda carreira de pó acaba com a carreira na vida.

A mãe prostituía a filha para sustentar o vício e pagar o aluguel de casa. O padrasto sabia, também lucrava com aquilo. Só quem não conhecia o lucro era Alice, escrava do vício alheio. Ela tinha um corpo de menina, não consigo digerir como sentiam prazer com aquilo.

Parou de estudar no primeiro ano do Ensino Médio. O que fez com muito esforço, pois nunca tivera incentivo para o estudo. Uma mãe semianalfabeta não a estimulou. Livros em casa só os que ganhava na escola, que viviam empoeirados embaixo da cama.

Pensava em ter uma família, uma casa, levar uma vida tranquila. Encontrou conforto quando aceitou Jesus, aos 18 anos, como seu Salvador. A bíblia prometia um mundo de redenção para vida infeliz que ela tinha levado. Conheceu Rodrigo na igreja, que lhe tirou do teto da mãe e a levou para morar junto dele, que trabalhava como policial e tinha 24 anos.

A convivência é tranquila, só brigam por causa de sexo. Ela, às vezes, não quer, pois sente os traumas da infância, ele, até que tenta compreendê-la, mas nunca pode imaginar o horror que ela sofrera.

Com isso, ele encontrava prazer na pista, entre um plantão e outro. Rodrigo foi seu primeiro amor. Antes ela não conhecia a sensação de ser tocada com carinho, não teve afeto. A mãe nunca disse “eu te amo”. Era jogada de lado depois de se sentir  suja com esperma do padastro. Com Rodrigo  foi a primeira vez que ela chegou ao orgasmo.

Soube que está grávida, vai ser mãe de uma menina, cujo nome será Vitória. O motivo é que até ali, Alice só tinha levado uma vida sem glória, vencida pelo efeito do esquecimento. Ela também voltou a estudar.

Tarcísio Lima Salazar tem 26 anos, é pai de 2 filhos e trabalha como encarregado em um supermercado. Participou da Flupp, da antologia “Je suis encore favela” pela editora francesa Anacanoa Editions. Gosta de ler Sérgio Vaz, Ferréz e outros autores que também fazem da periferia sua inspiração para escrever.

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