Por Jean Carlos Azuos (*)
“A Igreja diz: O corpo é uma culpa.
A ciência diz: O corpo é uma máquina.
A publicidade diz: O corpo é um negócio.
O corpo diz: Eu sou uma festa.”
Eduardo Galeano
Pensar com a Jota Mombaça quando ela diz que “o mundo é ‘nosso’ trauma” é legítimo, mas aqui na escrita do agora, desejo revirar esse sentido, e reverenciar a produção de vida que temos para além — e apesar — do mundo. Elaborar uma retomada de consciência do corpo como ferramenta e mecanismo de sobrevivência que se propõe a erguer e projetar vida(s). Elencar por esta escrita as múltiplas existências que figuram e protagonizam sentidos, para que esta discussão se estenda e se perpetue por entre materialidades e visualidades dialogadas com as vastas dimensões dos corpos que celebram, vibram e exalam encantamentos.
Em perspectiva, não posso deixar de refletir nos corpos LGBTQIAP+ de favelas e, a partir destes, mobilizo espelhamentos sensíveis, considerando as circunstâncias contemporâneas nas quais essas realidades existem e acontecem, de modo a ser resiliente. Pisamos no mesmo chão, e bem sei sobre as violências que exigem de nós poder de reinvenção e proteção, diante de um cenário extremamente opressor e violento no qual as problemáticas de ser/existir se colocam ainda mais latentes e nas mais delicadas e terríveis formas.
Eu poderia espelhar dados, narrativas assombrosas, contar as numerosas cenas de morte e medo, porque todas essas coisas são de extrema importância para as reivindicações políticas que assentam nossas presenças e sua manutenção no aqui e agora, no presente. Entretanto, tenho me inspirado e preciso falar sobre o brilho de cada uma delas, das que já foram, das que seguem conosco e das que nascem todos os dias.
A Noite das Estrelas, das elegantes e irreverentes irmãs Lino, deliciosamente e de forma precisa me convoca a ter este pensamento. Cada corte desse filme me encharca de lucidez e coragem sobre o tempo no qual operamos, nos laços e nas alianças que fazemos, na busca incessante e cansada dos nossos sinônimos de vida, que diariamente conjuramos e desenterramos por conta de memórias, ancestralidades, arquivos, orações, canto, dança e ritos.
Pelo caminho vamos nos fortalecendo através de instituições como a Conexão G, representada pela fortaleza Gilmara Cunha e uma equipe que mobiliza e sinaliza intervenções contundentes no campo dos direitos humanos, camadas essenciais que se conjugam as celebrações que evocamos; a Casa Nem, referência em acolhida e políticas existenciais para pessoas travestis, pelas quais Indianarae, luta e acolhe com empenho; e a Casa Resistência e as pessoas que a tornam possível — um espaço novo, mas de extrema importância para pessoas lésbicas.
É possível também localizar projetos, subjetividades, artistas, ativistas, produtores e importantes movimentos que oxigenam e ampliam a cultura LGBTQIAP+, dando horizonte aos desejos e formas às práticas, que se pretendem estabelecer novas relações com as territorialidades, os encontros e fomentar pautas que traduzem as diversidades que nos compõem e revestem.
As minhas vivências enquanto curador movem um campo adensado de costuras com os assuntos elencados nestas linhas, sendo possível dialogar e co-narrar as situações e encaminhamentos por meio de um mergulho artístico, aguçado de percepções para essas interseções a partir de poéticas de artistas. Jota Mombaça, nome que abre caminho para esse texto, generosamente nos provoca a seguir em carta aberta endereçada àquelas que “vivem e vibram apesar do Brasil”.
Conduzo então, as costuras por entre as profecias de Ventura Profana, porque “eu não vou morrer”, e nem nós. Confortando estrategicamente o corpo com os ensaios de confronto de Patfudyda e Davi Pontes, nas frases inquietantes de Agrippina R. Manhattan criando deslocamentos, ateando incêndios visuais junto às Irmãs Brasil, na evocação de um porvir negro e travesti da bandeira de Guilhermina Augusti. São muitas as possibilidades, e elas só crescem.
Isto, para afirmar que não somos filhos e filhas da ilusão, e sequer sacudidas pelo vento. Projetaremos nesse tempo coreografias e ficções (im)possíveis na elasticidade do tempo que nos pertence, encorajadas por aquilo que se faz real em cada esquina, favela, cidade, festa, ball, sexo, bar, terreiro, igreja e além.
E o além aqui, está citado no texto anteriormente em produção fílmica, “Noite das estrelas”, e atualmente, toma as ruas da Maré. Conjugando artes da cena, performance, música, indumentária entre outras tecnologias. O espetáculo-ocupação é o desdobramento de algo maior, o Entidade, criado por Wallace e Paulo Victor Lino, e uma coletividade de artistas pretxs LGBTQIA+ da Maré, com objetivo de apresentar a memória cultural LGBTQIAP+ na inscrição deste território e da cidade.
A ação dialoga com o tempo e a geração em que se insere, no mesmo passo que, se coloca a espelhar as visitas aos álbuns, presenças, histórias contadas e nas criações de corpos dissidentes, travestis, que dão a ver em vias públicas a força e grandeza de seus processos artísticos. Estamos falando de pedagogias visuais, que muito nos ensinam sobre amor, afeto e resistência, e sobretudo demarcam em lastros anunciações das urgências, que é de estar e se manter viva, fazendo o que ama, em liberdade, seja à luz do dia ou no luar. Sonhando e conjurando bonitos futuros refletidos nas estrelas das que vieram antes.
A noite das estrelas está aqui.
(*) artigo