Nas favelas da Maré, a população segue circulando pelas ruas, mas estabelecimentos estão mais vazios
Maré de Notícias #112 – maio de 2020
Hélio Euclides
O prefeito Marcelo Crivella determinou, no dia 24 de março, o fechamento obrigatório de parte do comércio da cidade como mais uma medida para conter a propagação do novo coronavírus. Pouco mais de um mês, o que se percebe na Maré, como em outras favelas do Rio, é o comércio aberto e muitos moradores caminhando, naturalmente, nas ruas. O não cumprimento do distanciamento social pode trazer o perigo da aceleração no número de moradores contaminados pelo coronavírus.
O fechamento das lojas na cidade foi parcial, com autorização de abertura de farmácias, supermercados, hortifrútis, padarias, pet shops, postos de gasolina e lojas de equipamentos médicos e ortopédicos. Já em um outro decreto, do dia 22 de abril, a Prefeitura do Rio de Janeiro determinou a suspensão, durante 10 dias, das 162 feiras livres, como forma de evitar aglomeração.
Luiz Henrique Mandetta, quando ainda era ministro da Saúde, afirmou que a economia iria sofrer muito mais se o sistema de saúde entrasse em colapso. Um dos motivos de sua exoneração foi a defesa do isolamento social, como precaução a um colapso na saúde, com ausência de leitos para internação, algo que já ocorre na cidade. Para o ex-ministro, se não fosse cumprido o distanciamento, a medida a ser tomada seria a quarentena horizontal, com o fechamento de estabelecimentos considerados essenciais, como ocorre em países da Europa.
A antiga gestão do Ministério da Saúde seguia a linha da Organização Mundial Saúde (OMS) para combater o coronavírus, enquanto o presidente Jair Bolsonaro continua defendendo a flexibilização do confinamento e a volta à normalidade para o comércio. Em entrevista ao Canal CNN Brasil, no dia 16 de abril, ele afirmou que o ideal é o comércio funcionando a todo vapor, como ocorre nas favelas cariocas, como em Rio das Pedras e Rocinha.
Anthony Fauci, epidemiologista, em entrevista ao programa Good Morning America, advertiu que, nos Estados Unidos e em qualquer outro lugar do mundo, a reabertura dos comércios e serviços não trará recuperação econômica enquanto o vírus não estiver sob controle. Completou, ainda, que suspender as medidas de isolamento é um ato negativo.
O isolamento social e a economia local
Comerciantes sentem o impacto realizado pelo novo coronavírus. O Maré de Notícias ouviu comerciantes das 16 favelas da Maré, e o relato foi que a pandemia impactou diretamente as vendas, trazendo prejuízos aos estabelecimentos, apesar das lojas estarem abertas. São poucos os clientes, pois os moradores, mesmo saindo às ruas, estão direcionando os seus gastos basicamente à alimentação.
Com os estabelecimentos fechados pela cidade, comerciantes acreditavam que as lojas da favela iriam lucrar com a situação, o que não ocorreu. “Tem comerciante que está entrando em desespero. Eu tenho angústias, pois quero trabalhar e não posso sair de casa”, diz Nevinha, comerciante de roupas em Ramos.
Alguns comerciantes entrevistados relataram respeitar o isolamento e a medida de fechamento de serviços não essenciais inicialmente, mas destacam a necessidade de voltar a trabalhar, apesar do medo. “Fiquei quase dois meses sem abrir. Nem queria voltar, mas preciso pagar as contas. Alguns comerciantes são mais gananciosos, precisam perceber a necessidade de criar formas de prevenção para todos, como o uso de máscara e luvas”, conta Meri, que tem uma loja de flores no Parque União. Eliane Domingos, comerciante com loja de drenagem e limpeza de pele, na Vila do João, ficou um período sem trabalhar. “A solução foi voltar, pois pela primeira vez não tive como pagar minhas contas, nem o auxílio emergencial foi liberado”, reclama. Ela acredita que o comércio poderia abrir em dia intercalados, para diminuir os números de moradores nas ruas.
“Trabalho com conserto de pula-pula [cama elástica] e mochilas. Desde que começou a quarentena, não consegui consertar mais nada. Não está tendo festa, com isso não há aluguel de brinquedos”, expõe Kátia Lapa, do Conjunto Pinheiro. Por outro lado, o isolamento já começa a ser aceito por moradores. “Eu fico em casa, não saio, estou no grupo de risco. Meu filho, quando precisa sair, é sempre com o uso do álcool em gel. Como ele é atleta, faz exercícios em casa”, conta Beth Pereira, de 55 anos, moradora do Salsa e Merengue.
Mas nem tudo é prejuízo: com o coronavírus, surgem pessoas que conseguiram ganham com a situação. Andrea Moreno, comerciante de um mercado no Salsa e Merengue, relata que antes o álcool em gel não era procurado, por isso custava pouco mais de R$ 10,00. Hoje, os fornecedores aumentaram o valor, com o acréscimo repassado para o consumidor. Agora ela vende o frasco de 450 mL pelo preço de R$ 27,50.
Isolamento, relações econômicas e sociais
Para Shyrlei Rosendo, mestre em Educação e Políticas Públicas e integrante do Eixo de Segurança Pública e Acessos à Justiça da Redes da Maré, o isolamento social nas favelas é difícil. “Essa dificuldade passa por questões econômicas, sociais e culturais. No que diz respeito à economia e a questões sociais, temos aí o direito a ter uma alimentação e acesso a materiais de higiene, o que se tornou bem difícil diante a pandemia, já que pessoas perderam seu emprego ou estão recebendo um valor abaixo dos seus salários”, avalia.
Outra questão que Shyrlei apresenta é a moradia na favela, onde algumas casas são pequenas e com pouca circulação de ar. Isso prejudica a tarefa de cumprir a quarentena dentro de apenas um cômodo, mas reconhece a importância de se ficar em casa nesse período. “Nós, favelados, viemos de uma sociabilidade de ficar na rua, brincar na porta de casa, visitar amigos, ir ao bar e fazer churrasco… Agora temos de romper com isso para que a pandemia passe logo.”.
A grande quantidade de pessoas nas ruas não é só por uma questão econômica e cultural. A pesquisadora acredita que, em especial, se os bares estivessem fechados, uma parte das pessoas não teria para onde ir. “Mas quem tiver a fim de uma resenha, de tomar uma cerveja, vai dar um jeito para se encontrar. Tem gente que vai pra rua, com ou sem comércio fechado”, comenta. Apesar de ainda ter movimento nas ruas, é possível perceber alguns locais da Maré com menos gente. Na opinião de Shyrlei, as pessoas estão com medo do coronavírus e sem grana.
Para Daniel Soranz, doutor e mestre em Saúde Pública, professor e pesquisador da Fiocruz, é preocupante as pessoas não estarem cumprindo o distanciamento social. “Não se pode cancelar o isolamento se não organizar o sistema de saúde. A Favela da Maré está com unidades de atendimento primário com fragilidade, com equipes reduzidas e ausência de testes. Assim, fica difícil identificar qual região do bairro tem mais contágio e direcionar a higienização específica. É preciso saber o vínculo imunológico da circulação do vírus”, conta.
“A cidade precisa se organizar. Ocorreu um caso de remoção de um doente de coronavírus da UPA do Alemão para a Unidade da Maré; esse paciente deveria ir para um hospital”, diz. Para o pesquisador, o ideal é se criar polos para receber doentes nas favelas. A Rocinha e Manguinhos já avaliam a criação desses espaços, e a Maré precisa também entrar nessa discussão, com um polo em alguma quadra de esportes.
Sobre economia, Daniel percebe que o comércio fechado para muitos é difícil, pois ficar sem trabalhar é insuportável. Ele acredita que o isolamento às cegas não vai durar por muito tempo. É necessário organizar o sistema de saúde e realizar a testagem em grande escala, pois só assim é possível saber o número de contaminados, os assintomáticos e evitar a disseminação da COVID-19.