“De pouco adianta produzir dados e criar novas tecnologias se elas não servirem à população”, diz Fernando Bozza, fundador da ONG Dados do Bem

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Por Luciana Bento – Conexão Saúde – De Olho No Corona, em 19/07/2021

Entusiasta da ciência de dados aplicada à saúde, o médico epidemiologista, pesquisador da Fiocruz e fundador da ONG Dados do Bem Fernando Bozza tem acompanhado de perto, desde o início da pandemia, os números da Covid no Brasil e no mundo. 

No entanto, os números específicos da Maré e de Manguinhos têm ganhado especial atenção do pesquisador: “o projeto tem se tornado um case por diversos motivos, como o uso de tecnologias como aplicativos inteligentes, a Telessaúde, o Isolamento Domiciliar de pacientes com Covid, a transformação de dados em conhecimentos para ação nos territórios”, destaca. 

“Mas o que torna o Conexão um case poderoso é que estas ações estão dando resultados, em especial na redução do número de mortes”, explica Bozza. “De nada adianta uma série de ferramentas tecnológicas e ações diferenciadas se elas não têm capacidade de chegar de fato às pessoas”, pontua. 

Em entrevista exclusiva para o boletim Conexão Saúde – De Olho no Corona, Bozza explica porque o projeto se destaca como uma iniciativa bem-sucedida de combate à pandemia em favelas, com vários indicadores positivos, dentre eles a redução da taxa de mortalidade ajustada (ou letalidade) – que na Maré caiu 88% e em Manguinhos 62% em um ano.  

Por Luciana Bento – Jornalista, Coordenadora de Comunicação do Conexão Saúde na Maré

Após a atuação do projeto Conexão Saúde, houve queda de óbitos na Maré e em Manguinhos em relação à Capital e outras favelas da cidade. A partir de resultados como este, o projeto tem sido apontado como um case no combate à pandemia. Por que? 

Fernando Bozza: Isso ocorre por vários aspectos e o primeiro deles é a inovação em várias frentes: inovação no modelo de gestão, já que o Conexão reúne ONGs, academia, setor público e privado, mas é uma iniciativa da sociedade civil. Este modelo de trabalho conjunto não é comum, não foi algo que vimos ao longo da pandemia. 

Depois, a inovação tecnológica, com o uso de aplicativos, testagem em massa, disseminação da Telessaúde, criação do conceito de Isolamento Domiciliar Seguro e utilização de estratégias de comunicação customizadas, voltadas para os territórios. 

Ao lado desta série de inovações, temos os resultados quantitativos das ações: número de pessoas testadas, atendidas em consultas médicas e psicológicas, acompanhadas durante o isolamento, assistidas em necessidades básicas como refeições e kits de higiene… Estamos falando de uma população de 140 mil pessoas só na Maré, maior do que 96% das cidades brasileiras. Então estes dados são relevantes numericamente.

Mas o que torna o Conexão um case poderoso é o fato de que estas ações são efetivas, estão dando resultados no controle da pandemia na Maré, em especial na redução do número de mortes. De nada adianta uma série de ferramentas tecnológicas se elas não têm capacidade de chegar de fato às pessoas, fazer a diferença. 

Esta experiência pode ser replicada em outros locais? 

Fernando Bozza: Um ponto importante é dialogar e conhecer outras iniciativas positivas que aconteceram. O Conexão Saúde não é a única, embora seja um modelo bem particular. Precisamos entender o que há em comum entre estas iniciativas e o que é de cada local, cada realidade, cada território. Neste sentido, há um limite para a replicabilidade do projeto como um pacote fechado, é preciso olhar para as especificidades. 

Mas há vários aprendizados, sobretudo nestes modelos de tecnologia, que podem ser apropriados por governos e organizações, que podem funcionar isoladamente em outras iniciativas. Minha dúvida é: este modelo Conexão Saúde, que vem dando certo na Maré e em Manguinhos, é replicável em qualquer local, sem adaptações? 

No caso do Conexão, quais seriam estas especificidades? 

Fernando Bozza: Acredito que a grande capacidade de escuta e articulação de atores locais, de engajamento dos moradores, de capilarização das ações dentro do território fez toda a diferença, deu potência para o projeto. 

E também a expertise de cada parceiro. Nenhuma das organizações participantes do Conexão começou suas ações por conta da pandemia. Todas já tinham experiência em suas áreas. O desafio foi adapta-las para a realidade dos territórios, em um momento crítico de pandemia, em tempo recorde. Mas a estrutura estava lá. 

O SAS Brasil já tinha uma longa expertise em Telessaúde, o Dados do Bem já vinha trabalhando dados em outros estados e municípios, a Redes da Maré já tinha um conhecimento profundo do território, o Centro Comunitário de Manguinhos trouxe uma bagagem de atuação… Isso possibilitou a ações efetivas nestes territórios, que sofrem com questões estruturais, de antes da pandemia, sobretudo a violência.    

Com a vacinação temos vislumbrado uma luz no fim do túnel. Já podemos falar em cenários pós-pandemia? 

Bozza: Hoje muito do que trabalho e penso é sobre as lições e aprendizados da pandemia e este cenário pós. No caso do Conexão, o que pode ficar de legado e se tornar uma ação de inovação contínua voltada para o sistema de saúde pública? Como a gente transforma o Conexão, que foi uma ação voltada para a pandemia, em uma experiência de inovação em saúde pública mais ampla, que olhe para os desafios – que não são poucos – do pós-pandemia? 

Quais seriam estes desafios? Pode destacar alguns? 

Bozza: A lista é longa. A pandemia no Brasil vem deixando o sistema de saúde destroçado, equipes cansadas, hospitais sucateados, sem investimentos suficientes, atenção primária desestruturada… Isso é um grande problema, com consequências futuras, e agora é um momento importante de repensar a reestruturação do sistema pós-pandemia. 

Do ponto de vista da saúde da população, existem muitos desafios. O pós-covid, que ainda não sabemos exatamente como será, mas que deixa sequelas, seja do ponto de vista da saúde mental, seja da saúde física. Há também uma série de demandas que ficaram reprimidas: pessoas com câncer que interromperam o tratamento, doenças que precisavam de acompanhamento, preventivos que não foram feitos, cirurgias que foram adiadas… 

Isso sem falar nas perspectivas de futuro que apontam para outras pandemias e epidemias, tanto de doenças emergentes, como a Covid, quanto doenças reemergentes, como o sarampo e a dengue. Muitas crianças não foram vacinadas durante a pandemia e isso vai trazer consequências, doenças que estavam relativamente sob controle podem voltar. 

Ou seja, a pandemia pode arrefecer mas os desafios continuam…

Bozza: Exato. Por isso é essencial novas maneiras de olhar a saúde da população. Quais são os desafios que surgem? Como utilizar estas novas tecnologias, que se mostraram tão úteis, num contexto pós-pandemia? Como fazer com que sirvam à população? Como desenvolver novas soluções a partir das novas necessidades? 

Não bastam novas tecnologias. Elas precisam ser testadas, validadas e servir ao coletivo, no contexto da saúde pública, sendo incorporadas ao SUS. Neste sentido a experiência do Conexão Saúde é muito valiosa, pois ela foi testada e validada em territórios e populações reais. 

Além das ações de saúde propriamente ditas, o Conexão Saúde tem investido em ações de comunicação e na produção de dados sobre os territórios. Por que esta dimensão é estratégica para o projeto? 

Bozza: Não tenho dúvidas de que este é um dos pilares do projeto e pra mim foi um dos maiores aprendizados que tive da experiência do Conexão. Como eu chego às pessoas e comunico claramente sobre a saúde delas? Como informo, como oriento? Como levo informação consistente quando fake news são disseminadas sem qualquer freio? As pessoas estão abarrotadas de informação e têm dificuldade de entender o que é relevante. Este é um grande desafio deste momento. 

A tradição brasileira é coletar dados na ponta e alimentar um sistema de notificação, sem qualquer retorno para as pessoas. Há uma mudança de paradigma que precisa ser feita: hoje muitos dados são gerados e colocados a serviço de empresas privadas, governos, instituições financeiras… As pessoas disponibilizam os dados, muitas vezes de forma compulsória e sem transparência. Como o dado vai ser utilizado? A serviço de quem? Como? Os dados são valiosos, dizem muito, mas nada disso retorna pras pessoas. Isso precisa mudar.

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