Laboratório de dados na favela do Jacarezinho, LabJaca representa a juventude que “bota a mão na massa” para reagir às consequências das lacunas das políticas públicas
Por Tamyres Matos, em 07/08/2021, às 09h
Editado por Dani Moura
A pandemia do novo coronavírus virou nossa vida de cabeça para baixo. Alguns processos foram acelerados vertiginosamente, algumas urgências surgiram do zero. E se tem algo capaz de mexer com as estruturas sociais é o instinto de sobrevivência. O trabalho do LabJaca começou para responder a uma dor objetiva e comunitária: a fome na Favela do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio, agravada pelas restrições do isolamento social. A campanha “Jaca contra o Corona” atendeu 3 mil famílias em vulnerabilidade social e chamou a atenção para a importância desses coletivos nas periferias no Rio e no Brasil.
“Durante as entregas de cestas básicas, nós criamos um formulário para registrar os casos suspeitos de covid-19. Os números do levantamento não oficial, pois não possuíamos estruturas para fazer os testes, evidenciaram centenas de casos que precisavam de atenção, enquanto o estado dizia que tinha uma dezena de casos monitorados”, recorda Bruno Sousa, um dos fundadores e coordenador de comunicação do LabJaca.
O jornalista de 23 anos reflete sobre a importância de, além de reunir as informações sobre o território, torná-las mais inteligíveis para a maior parte das pessoas que ali vivem. “Como vão existir políticas públicas sem dados? É importante traduzir estes dados. Temos uma alta taxa de analfabetismo na comunidade, muita gente não sabe interpretar um gráfico. Por isso, entendemos que a linguagem do audiovisual era o caminho para apresentar estes dados para a maior quantidade de pessoas possível”, explica.
O projeto começou com 6 pessoas, hoje conta com 14. Bruno relata que o grupo ainda busca sustentabilidade financeira, mas exalta a importância das doações – cuja maior parte vem de pessoas que conhecem e apoiam os jovens do laboratório, mas uma quantia relevante é conquistada por doações online (crowdfunding) . Além disso, são citadas como essenciais, seja para o aprendizado e fortalecimento institucional, parcerias com organizações como Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Columbia Global Centers e data_labe (laboratório de dados da Maré).
“O LabJaca vem para desafiar, para fazer uma contranarrativa a partir do combate a uma comunicação que marginaliza a favela e produz dados defasados. A gente promover ações comunitárias, fortalecer a nossa comunidade é fundamental para desafiar o racismo e a pobreza estrutural que atinge o Jacarezinho e outras comunidades”, pontua Thiago Nascimento, também fundador do coletivo.
Para Bruno, uma das marcas desse momento da pandemia tem sido a força da coletividade encampada especialmente (mas não só) pelos mais jovens. “Tem sido muito interessante ver que a juventude de todas as favelas se apropriou dos espaços para atuar em demandas urgentes. Essa galera ‘bota a mão na massa’, ocupa espaços e mostra empoderamento”, acredita.
Estudante de direito e ex-atleta de basquete, Thiago, também de 23 anos, é relações públicas do projeto e conta que as demandas de segurança sanitária e alimentar do Jacarezinho direcionaram os esforços iniciais do coletivo, mas que o LabJaca é, acima de tudo, “propósito”.
‘Silêncio absoluto’
O significado da expressão “luto coletivo” – utilizada para abordar os reflexos das perdas durante a epidemia global – no Jacarezinho é ainda mais pungente. Mesmo com a “ADPF das Favelas”, que proíbe operações policiais no Rio de Janeiro durante a pandemia, a região foi alvo da operação policial mais letal da história do Rio, que resultou na morte de 29 pessoas. O jovem fundador do LabJaca, geralmente sorridente durante sua fala, transmuta-se num semblante pesado ao comentar a repercussão do massacre na localidade onde nasceu e foi criado.
“Nas representações que defendem esse tipo de conduta violenta é muito forte o discurso do ‘bandido bom é bandido morto’, essa simplificação que enxerga na polícia o ‘santo graal’ que vai resolver tudo. O Jacarezinho é uma região pulsante, mas as pessoas ficaram mais retraídas, mais tristes depois da chacina. Cada um se recolheu na sua própria viela, o que se ouve é um silêncio absoluto”, comentou Bruno.
‘Minorias’ que fazem barulho
Os efeitos da pandemia de covid-19 ainda nem foram completamente mensurados, mas alguns estudos já apontam para a gravidade das repercussões. Um relatório publicado em junho deste ano pela Agência dos Direitos Fundamentais (FRA é a sigla em inglês) da União Europeia (UE) aponta que, por exemplo, as implicações para os direitos das minorias sociais são “profundas e sem precedentes”.
É possível ler no capítulo que trata sobre o assunto que a conjuntura “exacerbou os desafios e desigualdades existentes em todos os âmbitos, afetando em particular os grupos vulneráveis”. Em outro exemplo, uma reportagem publicada também em junho pela CNN aponta que pretos e pardos representam 57% dos mortos pela doença, enquanto brancos são 41%. Além disso, a chance de um negro morrer por coronavírus é 38% maior do que a de um branco.
Mas nada disso significa que não haja potência. Para Bruno, a força da coletividade durante esse período tem muito da energia das chamadas minorias. “Percebo um respiro novo na luta no movimento negro, que vem muito do legado da Marielle (Franco), mas também do enfrentamento da pandemia. Temos ainda uma influência feminina, LGBTQIA+ nesses grupos. Apesar dos enormes retrocessos políticos dos últimos anos, esses grupos seguem correndo atrás. Estamos em contato com os mandatos coletivos do Rio, como da Renata Souza e da Thaís Ferreira, pois sabemos que é importante ocupar também os espaços institucionais”, conclui.