Desigualdade no saneamento e falta de investimentos penalizam as favelas

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Esgoto a céu aberto e problemas com o tratamento de água são comuns na Maré, assim como em outras regiões periféricas do Brasil

Por Daniela Lopes, Giulia Costa e Júlia Silva, em 04/10/2022 às 9h

No Dia Mundial da Água (22 de março) deste ano, o Instituto Trata Brasil (ITB) divulgou um relatório acerca do saneamento básico no país. De acordo com o documento, mais de 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água potável e quase 100 milhões não têm coleta e tratamento de esgoto. O ITB é uma organização formada por empresas com interesse nos avanços do saneamento básico e na proteção dos recursos hídricos do país. Além disso, dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) indicam que cerca de 4 milhões de pessoas não contam com banheiros. 

No Rio de Janeiro, o índice de atendimento urbano com redes de esgoto em 2021 foi de 68,3%, o que revela uma insuficiência no sistema de saneamento básico do estado. Os serviços de assistência sanitária estão concentrados nos bairros privilegiados da capital, dessa forma, os moradores das favelas, onde, em sua maioria, o esgoto a céu aberto ainda é uma realidade, são impedidos de ter acesso a um saneamento básico de qualidade. 

Segundo Alaine dos Santos, de 40 anos, moradora da Vila dos Pinheiros, os problemas com o esgoto podem ser considerados crônicos. São recorrentes, segundo ela, os episódios de alagamentos e de esgoto a céu aberto em diversas localidades. Funcionária da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e formada em Administração pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Alaine sabe muito bem quais sãos as consequências de situações como essa. Ela afirma que medidas paliativas são tomadas exclusivamente por moradores e não por aqueles que, de fato, são responsáveis pela resolução desses problemas. “Eu não vejo nenhuma melhoria por parte da Prefeitura ou do Governo do Estado de forma efetiva. São os moradores que acabam tentando resolver pontualmente e depois de um tempo o esgoto está aberto de novo”, diz.

Desafio para a saúde coletiva

A falta do tratamento sanitário é uma ameaça à saúde pública. E a desigualdade penaliza as áreas mais pobres. O relatório “Coronavírus nas favelas: a desigualdade e o racismo sem máscaras” elaborado pelo coletivo Movimentos, organização de jovens de diferentes favelas, mostra como a falta de acesso a direitos básicos acentuou os efeitos da pandemia de covid-19 nas comunidades do Rio. Segundo o documento, as favelas da cidade sofrem com insegurança hídrica e sanitária que, juntas, foram responsáveis pela alta taxa de contaminação pelo coronavírus. Além disso, a falta de tratamento de esgoto e de acesso à água tratada também contribuem para a propagação de outras doenças, como dengue, zika, febre amarela e chikungunya. 

Por que as favelas não têm saneamento básico de qualidade?

A precariedade do sistema de saneamento básico nas favelas brasileiras tem como uma de suas raízes a falta de investimentos em redes de esgoto até os anos 1990. Foi somente em 1992, com a criação do Programa de Saneamento para Populações em Áreas de Baixa Renda (Prosanear); e o Programa de Saneamento para Núcleos Urbanos (Pronurb), dois programas do governo federal; que se começou a expandir os sistemas de tratamento de esgoto e abastecimento de água nas favelas. 

Um outro obstáculo para o estabelecimento de um sistema sanitário de qualidade nessas regiões é a forma de ocupação nas favelas. Vielas estreitas, pavimentação irregular e o exponencial aumento da população dificultam a implementação de redes de esgoto e água.

Descaso

Com 140 mil habitantes distribuídos em 16 favelas, a Maré é maior que a maioria dos municípios do país. Mas apesar de diversas promessas ao longo dos anos, poucas medidas efetivas foram tomadas. Alaine Santos afirma sentir na pele diariamente as consequências desse descaso. Ela relata que a maioria das caçambas de lixo foram concentradas na porta de sua casa, no final da rua onde mora. Com isso, passou a conviver com o lixo, ratos e pombos ao redor da própria residência.

“Embora os garis da Comlurb venham limpar todos os dias, a quantidade de lixo é tão grande que fica uma montanha nas caçambas, e ainda tem lixo até a metade da rua. A concentração de caçambas aqui prejudicou muito os moradores, pois é uma quantidade de ratos absurda, muito pombo e muita sujeira. É muito desconfortável e desesperador”, expõe. 

Outra questão que faz parte da rotina dos moradores é a falta de água. A chegada do verão torna-se um problema na vida de Alaine dos Santos, pois a ineficiência do abastecimento a obriga a pegar água nos vizinhos ou acordar de madrugada para ligar a bomba, por exemplo, “Quando chega o verão é desesperador, ter que acordar uma, duas, três da manhã para conseguir ligar a bomba e muitas vezes, mesmo assim, não conseguimos encher a caixa porque não tem água na rua”, relatou.

Esses problemas afetam diretamente a qualidade de vida na Maré e outras regiões que sofrem com os mesmos problemas. Como resultado da marginalização, estigmatização e do racismo, essas comunidades convivem com questões inimagináveis em áreas nobres da cidade. Nesse sentido, Alaine comenta: “sabemos que existem outras áreas no Rio que às vezes tem uma insegurança sanitária ainda pior do que na Maré, mas se compararmos com os bairros mais estruturados, vemos que a Maré não é colocada como igual, é sempre marginalizada. A gente ouve tanto falar que a Maré é um bairro, mas vemos que muito do que tem nos bairros hoje, a Maré não tem”.

Lixo e outros problemas

A Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) é a responsável por recolher o lixo no Rio. Embora o trabalho pareça funcionar bem em alguns locais, a situação nas favelas é bem diferente. Os moradores da Maré reclamam do serviço de forma recorrente. Na Carta de Saneamento da Maré, de 2020, elaborada por moradores, ativistas ambientais e especialistas, o problema com a coleta de lixo foi um dos tópicos em destaque.

Em matéria publicada no ano passado no Maré de Notícias, Marcos Willian, gerente da Comlurb na Maré explicou que a região era atendida como uma subdivisão da estação de Ramos e que o problema era o número insuficiente de tratores. Este ano, a assessoria da Comlurb respondeu que mantém uma gerência dentro da Maré exclusivamente para o atendimento das 16 comunidades. E que recolhe diariamente entre 230 e 250 toneladas. 

A coleta de resíduos domiciliares e do lixo público é realizada de segunda a sábado em dois turnos. E nos domingos em regime de plantão para atender a demanda de grandes concentrações de pessoas, como os bailes funk, etc. Segundo a empresa, a região é atendida por uma equipe composta por 76 garis, que trabalha com apoio de sete caminhões compactadores e dois satélites – veículos mais estreitos que têm mais facilidade para acessar becos e vielas, além de quatro mini tratores.

Em relação aos contêineres de lixo que transbordam frequentemente, a Comlurb afirmou que estes são limpos duas vezes por dia. E que atende o conjunto de favelas com o serviço de combate a vetores, que já realizou 34 intervenções este ano. A Comlurb fez também apelo aos moradores para que os resíduos sejam dispostos de forma ordenada, respeitando as orientações da gerência local e que evitem contratar carroceiros ilegais para a retirada de entulho. Os moradores devem recorrer ao serviço de remoção gratuita. A solicitação pode ser feita pela central de atendimento via WhatsApp da Prefeitura (3460-1746).

Quem protege o Meio Ambiente?

O problema do lixo se relaciona diretamente com a falta de preservação ambiental. Boa parte dos resíduos não são corretamente descartados e acabam nos valões. Os canais, que além do lixo recebem esgoto sem tratamento, se tornam assoreados e, em período de cheia, transbordam e invadem as casas dos moradores. 

O Instituto Estadual do Ambiente (Inea) informou que atua na região para limpar e desassorear rios e canais. Como exemplo, citou a remoção de 2.900 metros cúbicos de sedimentos em um trecho de 450 metros do Canal da Rua Darci Vargas, no Parque União. O serviço foi iniciado em 6 de abril e finalizado em 10 de agosto.

Além das medidas de limpeza, o Inea informou que instalou eco barreiras na foz dos principais rios e canais da região da Maré. O objetivo é reter os resíduos sólidos flutuantes (impedindo que cheguem à Baía de Guanabara), para destinação ambiental adequada. Segundo dados da instituição, as barreiras, que estão posicionadas na foz dos canais da Vila dos Pinheiros, Baixa do Sapateiro, Nova Holanda, Rua Darcy Vargas e na foz do Rio Ramos, recolheram 438 toneladas de lixo entre janeiro e maio deste ano. Outra iniciativa do Inea é a mobilização de ações de educação ambiental, com o objetivo de capacitar jovens do Parque União para que se tornem líderes ambientais em sua região. Os resultados dos monitoramentos do Inea e outras informações estão disponíveis no site do Inea.

Uma velha promessa

Em conjunto com o lixo e a questão ambiental, o saneamento básico e a distribuição de água se somam aos desafios da população. O Censo Maré de 2013 já mostrava essa realidade ao estimar que 151 domicílios não tinham acesso a rede de água e 8.300 não usavam filtro ou água mineral. Em relação ao saneamento, 42 queixas foram recebidas sobre o serviço nas 16 favelas, entre as regiões sinalizadas, a Nova Holanda liderava o número de reclamações. 

Após a privatização da Cedae, a empresa Águas do Rio, pertencente à companhia Aegea, assumiu a responsabilidade sobre o abastecimento de água e tratamento de esgoto em boa parte do estado, comprando dois blocos dos 4 divididos para leilão. Entre as regiões adquiridas está todo o conjunto de favelas da Maré. Entramos em contato com a assessoria da Águas do Rio mas não obtivemos resposta.

Entre os projetos herdados pela Aegea estão a despoluição da Baía de Guanabara e a estruturação de um sistema de saneamento para os bairros do entorno, o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG)  e Plano de Saneamento Ambiental dos Municípios no Entorno da Baía de Guanabara (PSAM). Pouco se sabe sobre o atual andamento dos projetos, o que se observa é que a situação na baía tem se tornado cada vez mais preocupante. De acordo com texto publicado na Casa Fluminense, entidade formada em 2013 por ativistas, pesquisadores e cidadãos: “(…) são necessários no mínimo 20 anos de ações ininterruptas, em diferentes frentes de trabalho, que podem amenizar os efeitos da degradação ambiental desse ecossistema.”

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