Dia 14 de maio: o que veio depois da libertação?

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A falta de políticas públicas de inclusão, remoções forçadas e movimentos de resistência no pós-abolição são alguns dos legados do Brasil negro

Maré de Notícias #124 – maio de 2021
Andressa Cabral Botelho

No dia 14 de maio, eu saí por aí/ Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir/ Levando a senzala na alma, eu subi a favela/ Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci

14 de maio – Jorge Portugal e Lazzo Matumbi

A música interpretada pelo cantor baiano Lazzo Matumbi retrata a realidade da população negra ao longo desses 133 anos após a abolição: a liberdade chegou, mas não as garantias de inserção dessa população na sociedade. Se antes existiam os quilombos e as revoltas, depois da assinatura da Lei Áurea iniciou-se um novo processo de articulação negra em busca de igualdade e integração. Embora falemos desse assunto em 2021, a insegurança surgida em 1888 persegue a população negra até hoje e mostra que a assinatura da lei não representou uma ruptura com a discriminação racial.

Mesmo que hoje seja possível ver pessoas negras na televisão, nas faculdades de elite e ocupando cargos de liderança, elas ainda são uma exceção dentro da realidade brasileira. Na canção, Matumbi canta sobre o negro sem casa, comida, trabalho, acesso à saúde e educação, mas também sobre luta e resistência. No país, os números ainda são discrepantes e mostram o legado da escravidão e o impacto da falta de políticas de inclusão na vida de muitas pessoas pretas e pardas.

No mercado de trabalho, a população preta é a maior parte da força de trabalho do país, representando 53,7%; hoje, eles são 62,5% entre os 13,9 milhões de desempregados brasileiros. Entretanto, pretos e pardos têm presença mais acentuada nas áreas da Agropecuária (60,8%), Construção (62,6%) e Serviços Domésticos (65,1%), segundo a Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019.

Observando essas três áreas, é possível traçar um paralelo com o passado: os primeiros trabalhos realizados por negros no Brasil eram na agricultura, com o plantio de cana de açúcar, algodão e café. Na área de construção, os escravizados foram responsáveis por erguer as cidades, assim como pela abertura de estradas – entre elas, a Estrada Real, conjunto de vias que ligava a região das minas até o porto do Rio de Janeiro. Enquanto trabalhadoras do lar, as mulheres serviam as casas grandes no campo e na cidade.

Em roda de conversa, professores conversam sobre a trajetória do negro e o racismo no Brasil

Higienização e remoção

Antes mesmo do fim da escravidão, havia um movimento de negros livres e fugidos do interior ou de outras capitais para a cidade do Rio em busca de trabalho, por aqui ser a capital do país. Após 1888, isso se tornou mais frequente e, com a grande quantidade de pessoas desabrigadas, começaram a surgir os cortiços e as primeiras favelas. Entretanto, para os governantes, não era atrativo ter esse tipo de moradia nos grandes centros urbanos, principalmente no Rio de Janeiro, capital do país. Começa, então, no início do século XX, um processo de higienização desses espaços que parece não ter fim, removendo pretos pobres do Centro e de outras zonas de interesse, como a Zona Sul, para regiões mais afastadas.

“Ao pegar um mapa da cidade do Rio e fazer uma categorização por renda e cor, por exemplo, consegue-se perceber a nítida diferença entre onde brancos e negros habitam. E se você pegar um mapa histórico, consegue ver um deslocamento do Centro rumo às periferias”, afirma o professor e mestre em Geografia Filipe Gomes. Analisando dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de renda per capita de bairros e favelas, é possível entender a explicação do professor.

Antes de se tornar o terceiro metro quadrado mais caro da cidade, a Lagoa – e outros bairros da Zona Sul – abrigava muitos negros, principalmente por eles trabalharem em um complexo fabril que existia na região do Jardim Botânico, como a extinta Real Fábrica de Pólvora. Ali ainda existia a chácara da Baronesa da Lagoa Rodrigo de Freitas, que deixou a propriedade, depois da abolição, para os negros que trabalharam para a família. Para abrigar esses trabalhadores, cresceram no entorno as favelas Ilha das Dragas, Praia do Pinto e Catacumba. Nos anos 1960, com a especulação imobiliária na Zona Sul, começaram os processos de remoção. Frequentes incêndios devastaram as favelas, e os moradores dessas localidades foram removidos para os conjuntos habitacionais da Cidade Alta, Cidade de Deus e Maré, especificamente a Nova Holanda. Hoje, a renda per capita da Lagoa é de R$5.635, enquanto a da Cidade Alta é de R$277, a da Cidade de Deus, R$359 e a da Maré, R$394.

Essa é a história dos moradores das favelas da Lagoa, semelhante a de muitas outras pessoas que hoje vivem nos conjuntos habitacionais das favelas e periferias da cidade do Rio. “A partir do momento em que um determinado espaço se torna importante e visível, os ‘invisíveis’ têm que desocupá-lo, porque eles não podem estar na área que se torna de interesse”, destacou a professora e mestra em Ensino da História Lorraine Janis. Ela viu movimento semelhante no bairro em que foi criada, Padre Miguel: ali foi construído o Conjunto Residencial Cardeal Dom Jaime Câmara, em 1969, para abrigar as 26 mil pessoas expulsas de favelas do Leblon, da Lagoa e do Maracanã.

“Mas minha alma resiste, meu corpo é de luta”

Mesmo com a abolição, negros e mestiços continuam sofrendo discriminação racial, mas engana-se quem acha que a população preta, seja no pré ou no pós-abolição, assistiu passiva aos acontecimentos. Diversas foram as articulações para combater o racismo e promover a inclusão; graças a elas, hoje há políticas públicas (ainda que sejam poucas para 133 anos) que permitem gozar de direitos que, mesmo assim, deveriam ser acessíveis a toda a população.

A resistência se deu de diversas formas: através da educação, política, cultura. Os terreiros e blocos carnavalescos, as rodas de samba com feijoada, capoeira, jongo, funk, as manifestações culturais diversas vezes criminalizadas são até hoje formas de resistência da cultura afro-brasileira e uma herança de um passado que existe e resiste no presente.

Manifestação em 2018 contra fechamento da Casa de Jongo, ponto de cultura afro-brasileira no subúrbio do Rio. Foto: Ellis Rua

A Frente Negra Brasileira (FNB) surgiu em São Paulo em 1931 e teve núcleos em outros estados do país. Ela oferecia aos seus membros assistência jurídica, social e, principalmente, educação para que eles tivessem condições de se colocar no mercado de trabalho em pé de igualdade com pessoas brancas. Em 1944, surgiu no Rio o Teatro Experimental do Negro (TEN) que, por meio das artes cênicas, cumpriu o papel de ofertar aos seus participantes uma educação antirracista e o resgate da herança africana.

As duas iniciativas enxergavam a formação intelectual como ferramenta emancipadora. Conhecer a história do povo preto e do mundo era fundamental para mudar as estruturas sociais. “Ter atitudes antirracistas como essas é contribuir para abalar a própria base da sociedade que vivemos. Procurar trabalhar e redefinir essas relações étnico-raciais é mexer no alicerce da sociedade”, observa o professor de história e mestre em Relações Étnico-Raciais Fabrício Castilho. Para ele, ter um posicionamento antirracista é transformar as bases da educação a partir do conhecimento de outra narrativa, não contada nos livros de história.

O regime ditatorial não foi capaz de impedir a agitação dos movimentos sociais. Em 1978, reunidos na escadaria do Teatro Municipal de São Paulo, coletivos negros protestaram contra situações de discriminação racial, criando, assim, o Movimento Negro Unificado (MNU), uma das mais importantes entidades negras da atualidade. Um dos papeis do movimento negro é lutar pelo reconhecimento do dia 20 de novembro e pela recordação de lideranças negras, como Zumbi dos Palmares, que morreu nessa data. Além disso, entendem que o dia 13 de maio (e as consequências dele) não é para se comemorar e sim, refletir. Assim, as articulações negras ressignificaram a data para o Dia Nacional da Denúncia contra o Racismo, para se pensar em nos impactos negativos da abolição sem políticas de inclusão.

A partir das articulações de membros do MNU, diversas foram as legislações de combate ao racismo e ações afirmativas que surgiram como forma de promoção da igualdade racial. As leis que criminalizam o racismo, a inclusão do estudo da história afro-brasileira nos currículos escolares e a criação de cotas raciais em concursos são algumas das ações afirmativas para se buscar igualdade. Graças a essas articulações, é possível pensar na mudança da estrutura desigual do país.

Os mestres Filipe Gomes, Lorraine Janis e Fabrício Castilho no evento Herança Africana. Foto: Flamarion Ismirim

Conheça algumas dessas legislações importantes, embora não sejam tão vistas na prática:

Código Penal, art. 140, parágrafo 3º: injúria discriminatória;
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) art.68: reconhecimento à propriedade definitiva da terra para remanescentes e quilombolas, sendo papel do Estado emitir o título dessas terras;
Constituição, art. 215: defesa e valorização dos patrimônios culturais e promoção, difusão e promoção cultural;
Constituição, art. 216: reconhecimento e proteção de patrimônio cultural brasileiro, sejam bens materiais ou imateriais;
Lei nº 7.668/88: criação da Fundação Cultural Palmares, órgão que reconhece, certifica, promove e preserva valores culturais, sociais e econômicos negros que influenciam na formação da sociedade brasileira;
Lei nº 7.716/89 (Lei Caó): reconhece o racismo como crime inafiançável;
Lei nº 10.639/2003: obrigatoriedade do ensino da História da África e Cultura Afro-Brasileira nos currículos de educação básica das escolas públicas e privadas;
Decreto nº 4.887/2003: regulamenta o processo de identificação, delimitação, demarcação e titulação de terras quilombolas;
Lei nº 12.288/2010: criação do Estatuto da Igualdade Racial;
Lei nº 12.711/2012: garante a reserva de 50% das matrículas por curso em universidades.

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