Dois para cá, dois para lá, a dança não pode parar

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Moradores de favelas precisam de mais esforços para fazer cursos on-line

Por Hélio Euclides em 30/10/2020 às 14h

Façamos da interrupção um caminho novo. Da queda um passo de dança…”, esse pensamento de Fernando Sabino está bem atual. A internet ruim, o espaço pequeno, a falta de silêncio e a dificuldade de concentração são alguns dos fatores que moradores de favela precisam superar para realizar a aula de dança. Os futuros dançarinos e dançarinas precisam de muita determinação para bailar e não perder o rebolado. Na Escola Livre de Dança da Maré professores e alunos não dançam fora do ritmo, o esforço é grande para que o corpo continue em movimento e o trabalho não seja interrompido. O grupo Dance Maré utiliza os canais da internet para mostrar o talento e ultrapassar as fronteiras da favela.

Desde março, quando começou a pandemia, as aulas da Escola Livre de Dança da Maré que aconteciam presencialmente no Centro de Artes da Maré, passaram a ser remotas. O Núcleo de Formação Intensiva em Dança, parte das ações, e resultado da parceria da Redes da Maré com a Lia Rodrigues Companhia de Danças, teve que finalizar os trabalhos do workshop com a coreografa Cristina Moura de forma remota. Foi o primeiro a aderir o sistema online e um desafio. “Nós entendemos que seria muito difícil para os jovens desse grupo estarem conectados por longos períodos à internet, devido a alguns fatores. Dos 15 estudantes do grupo que tem jovens entre 15 e 25 anos, apenas oito tinham um laptop para assistir às aulas remotas. Sem contar a péssima qualidade da internet na Maré”, comenta Gabriel Lima, coordenador da Escola Livre de Dança da Maré.

Segundo o Censo da Maré 2019, o computador está presente em 42,4% dos domicílios. Trata-se de uma proporção bem abaixo da estimada para a Região Metropolitana do Rio de Janeiro em 2013, que era de 62,2%, de acordo com Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Já o acesso à internet de acordo com o censo alcança 17.515 domicílios, o que corresponde a 36,7% do total. Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, porém, havia computador com acesso à internet em 56,1% dos domicílios, segundo a PNAD de 2013.

A experiência inicial com o Núcleo 2 foi fundamental para pensar como poderia se dar um possível retorno remoto das demais turmas da Escola. Em setembro, o retorno das aulas dos demais cursos aconteceu de forma remota. “Entendemos que as aulas não deveriam durar mais de uma hora, por conta da quantidade de dados móveis gastos nas conexões por chamada de vídeo, uma vez que nem todas as pessoas possuem internet banda larga e também pelas dificuldades de se fazer uma aula de dança utilizando o celular como tela, além de alunos sem acesso ou conhecimento sobre as ferramentas digitais”, diz o coordenador. 

Antes as aulas ocorriam no espaço amplo e hoje são transportadas para a casa de cada aluna e de cada aluno. Salas, quartos, quintais e lajes viraram salas de dança. “O corpo em movimento e o espaço onde ele se encontra estão inseridos no processo de ensino e aprendizagem. Não é raro termos relatos de estudantes que alegam não poder participar das aulas por conta das mais diversas questões familiares, que vão desde não ter espaço disponível até brigas dentro de casa no horário das atividades. Apesar das adversidades, as aulas vêm ocorrendo com aval da Prefeitura e de nossos parceiros e apoiadores, com aderência de nosso público”, conta Lima. As aulas acontecem ao vivo para as turmas que já estavam previamente matriculadas antes do início da pandemia. Mesmo assim qualquer pessoa pode fazer as aulas, pois elas também são disponibilizadas no YouTube da Redes da Maré.

Foi o jeito para manter abertas às portas da Escola para que todos e todas pudessem participar das atividades. Não apenas jovens estão se conectando nas atividades ao vivo, mas também um público mais velho, que já há muito tempo vem marcando forte presença em todas as atividades da Escola. Nas aulas é possível ver jovens, crianças, adultos e idosos direto de suas casas participando das aulas de dança. Para nós, esse é o ponto mais importante neste momento: manter a Escola viva dentro de cada uma e de cada um. E é ótimo poder ter as famílias integradas nesse processo, com a arte sendo produzida dentro de cada lar que se conecta nas aulas da escola”, conclui o coordenador da Escola. 

O amor à dança supera obstáculos

A dança por aula remota é bastante desafiadora, com muitos obstáculos, mas a partir da força de vontade dos professores e dos alunos as aulas estão a todo vapor, por meio dos plataformas virtuais. Dar e fazer aulas de dança on-line é muito diferente de outras áreas de conhecimento, pois o trabalho com o corpo passa por outras instâncias, que falam sobre a relação com o outro. Sylvia Barreto, professora do Núcleo de Formação da Companhia Lia Rodrigues e de ballet clássico na Escola de Danças da Maré, atua há mais de 35 anos no segmento e mesmo assim tudo é novo. “A dança requer presença, por isso a aula a distância não é fácil. Esse instrumento é o que temos no momento, as plataformas da internet são usadas para trabalhar o corpo e não dispersar as pessoas. Uma construção de anos que não pode se perder”, expõe 

Ela conta que tem problemas, como a internet que cai, o delay (distanciamento entre imagem e som), com dificuldade para realizar as correções e na questão da música. “Com os jovens e adultos funciona na medida do possível, mas com criança é bem complicado. Falta espaço em casa, o chão não é adequado, mas estamos tentando. Amo o que faço e isso me faz passar por qualquer revés “, comenta a professora. Apesar de nem todos os antigos alunos participarem das aulas, ela fica feliz por perceber o esforço e a alegria dos que não desistem. A mestre torce para que passe logo esse momento,que a vacina chegue para voltar ao trabalho presencial. 

Com as aulas remotas os professores trabalham muito mais e os alunos também precisam de um maior esforço. Addara Macedo faz aulas de balé e danças urbanas há cinco anos. “Dançar e estar com a turma era um momento de distração e também de concentração. Minha animação foi imediata quando veio a notícia de que teríamos aula on-line. A alegria foi tamanha que nas primeiras eu até chorei”, diz. 

As aulas acontecem quinzenalmente, mas apesar do espaçamento dos cursos, é o momento de rever os amigos, mexer o corpo e aprender mais sobre a dança. “Está funcionando. O tempo também é menor, mas é um encontro que eu não abro mão. Aproveito para, em casa, rever os vídeos da coreografia para me preparar. As aulas fazem a diferença na minha nova rotina. Os professores frisaram muito que não dependemos do espaço, apesar de claro, ser melhor estar nas condições adequadas, mas se temos um corpo para dançar, isso basta”, conclui.

O uso da internet antes da pandemia

Segundo a pedagoga Jussara de Barros, no site Brasil Escola, a definição de dança é a arte de mexer o corpo, por meio de uma cadência de movimentos e ritmos, criando uma harmonia própria. Mas ao bailar cada um tem uma sensação diferente. “Quando danço, esqueço as horas e o mundo inteiro se transforma em palco”, esse é o pensamento de Mayara Benatti. Essa é a impressão do grupo Dance Maré, que com o uso da internet já levou a dança para além dos palcos da favela. Até mesmo antes da pandemia, as suas performances do grupo já eram divulgadas nas redes sociais e no You Tube. 

Atualmente o Dance Maré está  no YouTube e tem mais de 130 mil visualizações no canal, que explora todos os estilos musicais. Para a Dáfine Andrade, dançarina, o grupo é uma vitrine de coisas boas, de talentos escondidos e de jovens que querem levar um pouco de alegria para as vidas ao redor. “É um sopro de ar no meio da vida as vezes conturbada. É uma válvula de escape, que me faz esquecer problemas, me traz amor pela convivência com meus amigos e felicidade através da expressão da arte”, diz. Maryana Oliveira compactua com o mesmo pensamento da colega. “O Dance Maré é o meu lugar, uma família e uma esperança. É o verdadeiro significado da Maré ser um bunker (reduto fortificado) de talentos e de pessoas incríveis”, comenta.

O Dance Maré foi criado em 2019 por jovens moradores do Conjunto de Favelas da Maré que buscam transmitir todo o amor e a beleza dos seus participantes. “No Dance Maré eu posso ser quem eu sou e ser feliz fazendo aquilo que eu gosto. É uma forma de escape, de encontrar a felicidade em uma coisa pequena, mas ao mesmo tempo muito grande. Para as pessoas é uma forma de ver a nossa força de vontade e de que todos podem seguir em frente”, diz Mariane Silva. Para todos os integrantes, o Dance Maré além de ser o lugar onde se distraem, é o espaço no qual fazem o que mais gostam, que é dançar. “A nossa dança também influi dentro da favela. Mostra que aqui também tem pessoas de talento, com algo a oferecer ao mundo, e que outras pessoas podem se espelhar nelas”, expõe Helena Reis.

O grupo atualmente é formado por 15 jovens, nenhum é profissional formado em dança, mas têm a prática como um hobby. Os dançarinos são moradores do Parque União, Nova Holanda e Rubens Vaz, três das 16 favelas da Maré. Uma das metas do grupo é incluir pelo menos um morador de cada uma das 16 favelas da Maré. O objetivo é usar a internet para ir contra a mídia que mostra a favela com violência, mortes e guerras. “Favela para mim é um lugar repleto de talentos escondidos, de amor e de energia. É preciso revelar ao mundo esse lado da favela que tem talento, amor e nossa energia, tudo isso por meio da dança”, finaliza Raphael Vicente, criador do Dance Maré.Quem desejar conhecer mais o Dance Maré, o Instagram e TikTok do grupo é: @dancemareoficial. Já o canal no canal no YouTube é: youtube.com/dancemare.

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