Alta dos preços em meio à crise da saúde destaca que alimentação é um direito que custa caro
Andressa Cabral Botelho
“A comida no estômago é como o combustível para as máquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo deixou de pesar. Passei a andar mais depressa. Eu tinha impressão que eu deslizava no espaço. Comecei sorrir como se estivesse presenciando um lindo espetáculo. E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer?” Essa fala poderia ser de hoje, mas ela foi escrita em 1960 no livro Quarto de despejo: Diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus. Sessenta anos depois, o texto permanece atual, pois aponta o quanto a pandemia do novo coronavírus explicitou o problema da fome no país, principalmente em territórios negligenciados pelo poder público.
A alimentação é um direito fundamental, como consta no artigo 6º da Constituição, assim como segurança, saúde, educação, assistência aos desamparados, entre outros. De 2013 a 2018, aumentou em mais de 3 milhões o número de pessoas em situação de insegurança alimentar. No total, são cerca de 10,3 milhões de brasileiros que viviam em 2018 sem acesso regular à alimentação básica, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A pesquisa não leva em conta pessoas em situação de rua, o que nos leva a pensar que este número é ainda maior.
Entretanto, alimentar-se tornou-se um privilégio para quem tem renda. Enquanto para muitos o alimento é combustível para manter o corpo de pé, para alguns poucos ele é mercadoria, onde o maior interesse é o lucro. Essa lógica de geração do lucro a partir de insumos básicos – seja alimentos ou itens de higiene – foi um assunto que teve bastante repercussão na mídia ao longo dos últimos seis meses.
Em março, com os decretos estadual e municipal para fechamento dos serviços não essenciais como medida de contenção do vírus, o receio da população foi um possível esgotamento dos alimentos nos mercados e centrais de abastecimentos. Cogitou-se nesse momento a necessidade de se estocar comida e itens de limpeza, que na época passaram por um aumento abusivo do valor. O álcool gel passou de produto supérfluo a item de necessidade básica e nos meses de fevereiro e março de 2020, as vendas on-line do produto cresceram mais de 4700% em comparação ao mesmo período do ano anterior, segundo o Movimento Compre & Confie. Em matéria para a edição #112 do Maré de Notícias, uma comerciante da Maré afirmou que com o aumento do valor por parte dos fornecedores e maior procura, o preço do álcool gel foi de R$10 para R$27,50 em seu estabelecimento.
Seis meses depois do decreto, entretanto, já com a flexibilização da quarentena e abertura dos serviços, os preços dos alimentos – principalmente os da cesta básica – passaram a assustar os consumidores. A inflação medida pelo IBGE apontou um aumento de 6,10% nos itens de alimentação. Dos alimentos básicos, a alta do arroz chega a 100% em 12 meses, de acordo com o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Universidade de São Paulo (USP). Cinco 5 kg de arroz custando R$40 nos supermercados é algo assustador, e o pior, é que os preços podem ter queda apenas em 2021, segundo o Cepea.
Mas quais os motivos para o aumento do preço dos alimentos, principalmente o arroz? Para economistas do Cepea são:
- dólar valorizado em relação ao real (até o fechamento desta matéria, um dólar comercial custava R$5,28), incentivando a exportação do produto;
- desabastecimento do mercado internacional devido à pandemia, fazendo com que países produtores de arroz fossem forçados a parar de vender para o mercado exterior, aumentando a procura pelo arroz brasileiro;
- diminuição da quantidade de arroz armazenado ao longo dos anos (segundo dados do Instituto Rio-grandense do Arroz (IRGA), em 10 anos o volume do estoque de armazenamento de entressafra diminuiu de 2.500 para 500 toneladas).
- desarranjos climáticos que afetam as plantações, como poucas chuvas.
O cenário fica ainda pior quando se analisa a atual situação do brasileiro: com a pandemia, o país ultrapassou o número de 12,8 milhões de desempregados, de acordo com o IBGE. Além disso, 41,1% da população do país trabalham informalmente e sofreram diretamente o impacto da pandemia. Neste momento de fechamento de serviços e perda de postos de trabalho, 67,2 milhões de pessoas deram entrada no auxílio emergencial, segundo a Caixa Econômica Federal. Embora o auxílio financeiro tenha ajudado a muitas pessoas, foi necessário pensar em outras medidas de apoio, como ações de promoção de alimentação básica à população em situação de vulnerabilidade.
Segurança alimentar no centro do debate
“Nunca se viu tanta campanha de arrecadação e nunca se viu tanta gente passando fome. Esse quadro ressalta a potência da solidariedade, mas por outro lado a gente precisa ressaltar a importância de políticas públicas”, destaca Guilherme Pimentel, ouvidor público do estado do Rio de Janeiro. Muitas dessas campanhas vieram dos próprios territórios, como a Campanha Maré Diz NÃO ao Coronavírus, da Redes da Maré, que dentre as diversas ações, desenvolveu a frente de segurança alimentar.
A partir desta frente de trabalho, pensou-se duas ações: produção e entrega de refeições para pessoas em situação de rua e em estratégias para arrecadação e doação de alimentos para as famílias mais vulneráveis da Maré. Cerca de 50 mil pessoas foram beneficiadas diretamente com a campanha, o que equivale a pouco mais de ? da população das 16 favelas que compõem a Maré. Ao todo, 16.796 famílias foram beneficiadas e 37.900 refeições foram distribuídas para pessoas em situação de rua.
Ações como a campanha só são possíveis de acontecer quando organizações da sociedade civil, como a Redes da Maré, LabJaca (Jacarezinho), Coletivo Favela Vertical (Gardênia Azul), entre outros, se articulam para levantar dados mais aproximados da realidade das favelas no contexto do novo coronavírus. Além dos dados sobre pessoas em situação de vulnerabilidade, essas organizações também conseguem fazer um levantamento mais real de pessoas infectadas. De acordo com a 20ª edição do boletim De Olho no Corona!, a Maré registrou 1.667 casos – entre confirmados e suspeitos, quase três vezes maior que os dados que constam no Painel da Prefeitura do Rio, que nesta sexta-feira (18) marcou 598 casos confirmados. Até o momento, o território registrou também 92 mortes confirmadas por coronavírus.
Alimentação na escola
A segurança alimentar perpassa também pela alimentação em contexto educacional. Com a suspensão das aulas, alunos de Ensino Fundamental, Médio e Superior da rede pública também ficaram sem a merenda de cada dia. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tem papel importante na garantia do acesso à alimentação de crianças da rede pública de Educação Básica. Para reduzir os riscos de contaminação pelo coronavírus, estados e municípios pensaram em estratégias para manter a alimentação dos alunos.
No município do Rio, a proposta ao início da quarentena era deixar as escolas abertas apenas para a merenda, mas colocaria em risco alunos e funcionários da escola. Pensando nisso, foi instituído judicialmente que a Secretaria Municipal de Educação distribuísse o kit merenda para os responsáveis dos alunos da rede pública de ensino, seja em formato de cesta básica ou de cartões de auxílio alimentação, beneficiando 641 mil alunos. Até o final de agosto foram distribuídos mais de 700 mil kits, entre cestas e cartões no valor de R$54,25 por cada estudante matriculado na rede municipal.
Para os responsáveis que estão com dúvidas ou problemas na utilização do cartão, a Defensoria Pública está assistindo essas pessoas através de um formulário. Basta acessar o link e repassar à Defensoria quais as demandas para que elas possam ser atendidas.