Entrevista exclusiva Mandetta: ‘’Se não parar, em 15, 20, 30 dias, o Sudeste vai estar em calamidade’’.

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Por Edu Carvalho

Primeiro de três ministros a ocupar a pasta da Saúde durante o ano um da pandemia, o médico ortopedista e político Luiz Henrique Mandetta estava na linha de frente. Foi sob sua gerência que os brasileiros tiveram os primeiros relatos desta que seria a maior crise sanitária da história. Chefe do Ministério da Saúde no primeiro mês do decreto global, organizou a retirada de ex-patriados em Wuhan, nascedouro do vírus; além de avatarizar nacionalmente todos os cuidados preconizados no enfrentamento da covid-19, aflorando sentimentos contrários a partir do chefe da nação, o presidente Jair Bolsonaro. 

Em entrevista exclusiva ao Maré de Notícias, concedida na última quinta-feira, 4/3, o ex-ministro remonta as lembranças de um passado não muito distante, evidenciando os principais erros e aquilo que poderia ter sido feito – e não foi.  

Maré de Notícias: O senhor era ministro da saúde e viu nascer a disseminação do vírus. Qual era o seu sentimento naquele momento?

Luiz Henrique Mandetta:  Era da total necessidade de preparar o sistema para o vírus que, embora desconhecido, vinha mostrando uma cara. Primeiro na Península Asiática, depois Europa e depois Estados Unidos, numa velocidade altamente transmissível. Você pode ter direito na Constituição de atendimento à saúde, ter plano de saúde, ter dinheiro, mas se não existe o sistema para te atender, a morte é a consequência. A gente precisava expandir o sistema de saúde de maneira rápida e organizada, num momento de muita angústia porque a Ciência não tinha nenhum tipo de solução para apresentar, a não ser soluções muito antigas de distanciamento e higiene. Era uma sensação angustiante para um país que precisava fazer tudo. 

Maré de Notícias: A Organização Mundial da Saúde – OMS – e seu diretor-geral, Tedros Adhanom, diziam, naquele momento,  que o vírus se restringia apenas e somente a China. Mas precisou que o sistema de saúde colapsar na Europa para que um aviso de pandemia global pudesse ser feito…

Mandetta: Era uma coisa que eu criticava. Fui um dos primeiros ministros no mundo a dizer que estávamos sobre uma pandemia, e no dia seguinte que eu fiz esse alerta mundial ele [Tedros] veio a público dizer que não era. O começo foi muito dúbio. Quando entrou no mundo ocidental e o primeiro caso do Brasil foi dia 26 de fevereiro, uma Quarta-Feira de Cinzas, me lembro até da roupa que eu estava. Nesse mesmo dia a Itália falou assim: ‘Meu sistema acabou, lockdown geral, fechou tudo’. Depois foi caindo em cascata e o mundo falou ‘’Opa, quer dizer então que aqui no mundo ocidental é diferente’’. Caiu o sistema de saúde na Inglaterra, França, Alemanha, que são sistemas que eu conheço e fortes.

E lembrando que a doença no Brasil entrou pela classe média alta. No Rio de Janeiro começou por Ipanema, Leblon, Barra, um pessoal que tinha ido para a Europa. Minha preocupação era que na hora que chegasse nas comunidades, na massa, o Sistema Único de Saúde não estaria preparado. Seguramos ao máximo naquele momento, para dar tempo de montar equipamento, equipe médica, o que você não faz com um estalar de dedos. Na Inglaterra, as enfermeiras estavam usando saco de lixo porque não tinham equipamento de proteção individual. Aqui, não tínhamos máscara nem respirador. 

Maré de Notícias: O senhor lembra que o primeiro caso foi na Quarta-Feira de Cinzas. Se soubesse antes como se daria a transmissão, teria brigado para o Carnaval não ter acontecido? 

Mandetta: A primeira mensagem passada era que um vírus era lento estava só em Wuhan. Nisso, o mundo manteve os voos abertos, a China com toda sua economia, os Estados Unidos, outros países mantendo trânsito de pessoas para lá e para cá, fazendo negócios, fábricas, produtos. A gente montou uma vigilância na hora que a gente recebeu o primeiro caso, um homem de São Paulo. Ele tinha voltado da Itália, chegou em São Paulo na sexta-feira de carnaval, a mulher foi buscar no aeroporto. No dia seguinte ficou em casa, não saiu, mas no domingo recebeu 32 pessoas da família para um churrasco. Segunda-feira ele teve mal-estar e na terça fizeram um teste no Albert Einstein. Deu positivo. Na Quarta de Cinzas a gente fez a rechecagem no Adolfo Lutz e fomos atrás dos primeiros 32 que tinham estado com ele na casa, para botar todo mundo em monitoramento. 17 tinham se contaminado, e esses 17 sete contaminaram mais cento e poucas pessoas. 

Ali no caso de São Paulo a gente conseguiu acompanhar, tentando bloquear até a quinta passagem. Mas depois já foi um caso no Rio, em Belo Horizonte, em Santa Catarina. Brasileiro é um povo muito próximo, encontra uma pessoa e dois beijinhos, tem lugar que você dá até três e abraça. Se a gente soubesse que era um vírus de alta transmissão, mas não, tínhamos o conceito de que era um vírus leve. Isso teve um peso em todo mundo ocidental. 

Maré de Notícias:Tendo sido ministro que estava ali, ‘in loco’, no momento que acontecia, quais foram os maiores erros no combate à pandemia no Brasil?

Mandetta: Essa doença é coletiva, não é uma doença individual. 85% das pessoas que contraem têm quadro leve, não vão precisar do hospital. Mas 15% vai, e o problema é que esse quantitativo vai em paralelo para o hospital com o cara que teve um infarto, um derrame, um AVC, com a mulher que teve um parto prematuro e o hospital está com a porta saturada, não consegue atender. Como é uma doença coletiva, ela ataca não só a saúde,  ela ataca educação, cultura, entretenimento, toda sociedade. 

E só tem uma maneira de você enfrentar coletivamente: é você ter uma posição coletiva. É o ‘Vamos enfrentar isso aqui juntos, vai ser duro, mas é o que a gente pode fazer’. Quando o presidente coloca que não, que essa doença é uma ‘gripezinha’, com ‘toca a vida, toma cloroquina’, faz com que as pessoas falem ‘Ah cara, eu já tenho anticorpos, já peguei e nem senti nada’. O jovem então ele fala ‘Pô, eu sou um super-herói, eu já tenho anticorpos, nem senti dor, devo ter pego de alguém’. Mas quando você vai aumentando a idade, você vai massacrando a turma de 50, 60, 70, 80, você vai perdendo, vai perdendo, vai perdendo. E de repente o hospital lotou, e a sua consciência mesmo começa com ‘Pô, eu vou ser um vetor pró-vírus ou eu vou tentar segurar a onda desse drama?’.Perdemos a unidade, para prevenir a gente ficou confuso na parte de atendimento às pessoas porque falaram ‘Toma esse remédio aqui’. As pessoas saíram comprando cloroquina, ivermectina e ninguém sabia o efeito colateral. Quando a gente teve a porta de saída da crise, que ou seria um remédio ou a vacina, que foi o caso, era a hora da gente falar ‘Vamos aonde a ciência optar’. 

Veio uma eleição municipal, depois Natal, Réveillon, os números começaram a subir. Entrou janeiro, verão, sol, praia e o vírus adorou. Quando você tem uma cidade como Manaus, que teve muitos casos na primeira onda, o vírus se apresentou de outro formato. Lá, tinha muitos anticorpos, a cepa tinha que mudar bastante, e ela mudou, ficou nova. Nós plantamos uma mudinha em Manaus, e ela veio com força, o Ministério da Saúde foi lá e disse ‘Aqui tá tão ruim que eu vou tirar esse povo daqui’, e mandou gente para cada capital brasileira como no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, São Paulo, no Rio, em todos os lugares do Brasil. 

Maré de Notícias: Nesse sentido o Brasil virou Manaus? Há como reverter o quadro?

Mandetta: Eu acho que o Brasil que temos, de intensidade de transmissão, está virando a mesma intensidade de Manaus. Agora em Manaus o sistema de saúde é mais frágil do que em outros lugares, lá acabou o oxigênio, e a morte por falta de oxigênio é a morte mais cruel, é você colocar o saco plástico na cara da pessoa e a pessoa tentar puxar o ar e não conseguir. Eu não acho que isso vai se repetir em todas as cidades brasileiras, porque em Manaus foram muito negligentes no enfrentamento. 

Agora no Rio Grande do Sul, no Paraná, em Santa Catarina, no Nordeste, como Ceará, Rio Grande do Norte e Bahia está super complicado. E o sudeste, que é Rio, Minas, São Paulo e Espírito Santo, ou seja, metade do Brasil, a coisa também está começando a subir. Ou você acelerara a vacina, do tipo ‘vamos vacinar dentro do Maracanã, Maracanãzinho, no pedágio, na rua’, se a gente tiver todas as vacinas é possível segurar um pouco. Se não parar, daqui a 15, 20, 30 dias, o Sudeste vai estar passando essa situação de calamidade, com pessoas morrendo sem assistência. 

Maré de Notícias: O senhor tem algum sentimento de culpa?

Mandetta: Não. Eu acho que na vida a gente não escolhe desafio, o que eu fiz foi me atentar aos valores que eu fui educado, que fui criado, que estudei. Entre vida e morte, eu sou ‘Vida Futebol Clube’. Me vi na obrigação de falar com a imprensa, com as comunidades, rádios comunitárias, blogs.

Outro dia veio a Orquestra Maré do Amanhã aqui no Pantanal. Naquele momento a pauta era outra, mas tinha o contexto da pandemia. Um cara que estava lá falou para mim ‘Mandetta, eu escutei você falando no rádio, vi você na televisão. Eu consegui arrumar um jeitinho para minha mãe se proteger com meu pai’. Eu comprei um papel naquele momento que era levar informação, fiz o máximo que eu podia fazer ali. E disse ao presidente: ‘Eu só vou sair daqui quando o senhor me mandar embora, médico não abandona paciente, eu vou ficar até o limite da paciência e a mensagem que eu vou passar é de proteção à vida’. 

Maré de Notícias: O senhor acredita que se fosse outro presidente, como Fernando Haddad, nós estaríamos com esse cenário?

Mandetta: Talvez sim, talvez não. Talvez se fosse outro ministro, se não fosse o Mandetta e a Margareth Dalcolmo, se nós estaríamos nesse cenário, não sei. Essa doença é uma doença que afeta a sociedade, que afeta o conjunto. Ela vem para desafiar o ser humano. 

Se todos nós tivéssemos falado a mesma língua, teríamos passado por isso com menos perdas, e as perdas que tivéssemos, lamentaríamos.

Ele [o vírus] é suprapartidário, não quer saber se o cara é do PT, se o cara é Bolsonaro, se é torcedor do Botafogo como eu, ou Flamengo. O vírus só quer simplesmente pegar carona onde puder. O líder faz sim, muita diferença, mas se não conquistar a sociedade, se não mostrar a mensagem, o resultado é igual.

Maré de Notícias: Há um certo tipo de clamor pelo impeachment. Você é a favor?

Mandetta: Há crimes de saúde pública em vários momentos, quando ele propõe um remédio que induz as pessoas a automedicação, é crime. Quando você coloca medo na vacina, que a única saída que a gente tem, e que se você tomar você vai virar um jacaré, isso é crime. Quando você sabe que tem uma doença infecciosa transmitindo e você não usa máscara, provoca aglomeração, contágio, coloca na sua mídia social para falar que esse é é o caminho, isso é crime contra saúde pública. Razões existem. 

Agora o processo de impeachment não é só um processo jurídico, é um processo político. 

A presidente Dilma Rousseff quando sofreu o impeachment, só ocorreu, porque o próprio PT na época deu as condições. Este presidente não dá as condições políticas, ele divide a sociedade, faz com parte dela dê suporte às suas colocações, porque todo mundo quer voltar à vida. Eu ainda acho que o melhor caminho é deixar mais claro qual é o tipo de liderança que temos nesse momento. Será que esse líder, que liderou tão mal a crise pela vida, vai ter condições de liderar uma reconstrução, uma conciliação nacional? É essa pergunta que vai estar no cardápio do país em 2022, ano eleitoral. Teremos muito material para refletir, para saber apontar o rumo para o que a gente deseja. O final disso vai ser a urna.

Maré de Notícias: Favelas e periferias, que têm o contingente de pessoas que precisam trabalhar, estão em situação de vulnerabilidade, não recebem o Auxílio Emergencial, qual é a recomendação?

Mandetta: Proteção, usa máscara, até duas. Não cumprimenta ninguém, não pega na mão, evite tocar, só mesmo se for inevitável. O transporte público é inevitavelmente uma aglomeração, morei no Rio de Janeiro durante dez anos, conheço muitas regiões, inclusive as comunidades. Procure sair um pouco mais cedo, para não pegar horário de pico. Faça o possível para que as pessoas mais idosas da sua família, da sua comunidade, vacinem. 

Evite o baile, o evento, a aglomeração. Essa liderança tóxica não vai levar você a lugar algum. Eu sei que a vida é dura, que está difícil, mas uma corrente de solidariedade ainda existe e resiste. Agora é a hora de ser solidário, vamos atravessar esse momento e depois que essa essa situação tão crítica passar, a gente vai precisar de todo mundo forte para reconstruir o Brasil. 

Maré de Notícias: O que você diria para os familiares que perderam seus entes queridos para a covid-19?Mandetta: Eu não sou diferente, minha tia e madrinha faleceu há uns 20 dias. Essa doença não faz nenhuma distinção de classe, não tem nenhuma família que não tenha um ente ou amigo próximo que faleceu. Não tivemos essa, que é uma das maiores coisas da natureza humana, que é poder ir lá chorar. Esse momento do choro está engasgado na garganta. Vamos ter fé. Minha solidariedade, nós estamos juntos. Eu sou devoto de Nossa Senhora Aparecida, rezo pedindo para que leve conforto às famílias, tenho esperança de que amanhã vai ser um outro dia. A gente vai sair dessa melhor, eu acredito na nossa capacidade de sair um pouco melhor desse momento.

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