Nem sempre esse ato de amor é realizado de uma forma tradicional
Maré de Notícias #118 – novembro de 2020
Por Hélio Euclides
Essa reportagem foi produzida com o apoio da Énois Laboratório de Jornalismo, por meio do projeto Jornalismo e Território.
Edição: Elena Wesley
“Receber alguém como filho mediante ato jurídico”. Dessa forma é definida a palavra adoção no dicionário Michaelis. Para muitos, que desejam formar uma família ou simplesmente ampliá-la, é mais do que isso. A relação afetiva com uma criança pode surgir de forma inusitada, por caminhos difíceis de explicar, mas que aproximam parentes, vizinhos ou até desconhecidos em um ato de amor. É dessa forma que o processo tem acontecido no Conjunto de Favelas da Maré, onde o trâmite judicial dá lugar a meios informais. O acolhimento sem documentação, contudo, traz outros desafios às famílias que, diante das dificuldades de acesso a serviços básicos, precisam encontrar estratégias para garantir os direitos dos adotados.
Helena Edir comprova que a prática é antiga na Maré. Em 1984, a moradora da Nova Holanda adotou um bebê de três anos, após o falecimento da mãe biológica. “Eu era madrinha de batismo e não tinha outra pessoa próxima para cuidar da criança”, lembra. Helena chegou a procurar assistência jurídica para dar entrada no processo, mas o advogado aconselhou a aguardar o menino completar 12 anos. O profissional acreditava que o status de solteira, a baixa renda como auxiliar de tesouraria e a residência na favela poderiam dificultar a obtenção da guarda. “Só depois dei entrada. Anexei toda a trajetória da vida dele comigo desde a creche até o ensino fundamental. Ele foi chamado para uma audiência, confirmou tudo que eu tinha informado, e o juiz me deu a guarda definitiva”.
Em alguns casos, a família biológica e a adotante se unem pelo que acreditam ser o melhor para a criança. Foi o que aconteceu na chegada de Estevão à família Santos. Embora já tivessem Larissa e Isaque, Jaqueline e Rogério Ferreira desejavam cumprir um sonho de infância: ter um filho do coração. E a oportunidade surgiu durante um plantão de Jaqueline numa maternidade, ao descobrir que a paciente não poderia levar o recém-nascido para casa. A mãe havia perdido a guarda dos três filhos mais velhos, e a avó, que já era a responsável legal dos meninos, informou não ter condições de cuidar do bebê. “Nós conversamos com a família do Estevão, e eles disseram que seria melhor que ele ficasse conosco, porque se fosse para a adoção formal, perderiam o vínculo totalmente. Tentamos por meios legais, mas a juíza não autorizou por não termos laço sanguíneo. Só depois dele ficar 20 dias no abrigo que conseguimos convencer a avó a pegar a guarda, para que ele ficasse com a gente. Pretendo regularizar, mas tenho medo de iniciar o processo e eles tirarem o meu menino, que retornaria ao abrigo”, conta a moradora da Vila dos Pinheiros.
Conselho tutelar e Juizado recomendam a adoção tradicional
O receio dos adotantes não é em vão. A conselheira tutelar Maria Elisângela da Silva Viana, que está em seu segundo mandato na região da Maré, explica que geralmente o Juizado da Infância e da Adolescência dá parecer favorável à família adotante, mas que a criança pode passar um pequeno período em um abrigo. As decisões buscam se basear no Estatuto da Criança e do Adolescente que, no Artigo 19, estabelece que “é direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral”.
Embora não tenha números oficiais sobre os acolhimentos informais, Elisângela conta que são muitos os casos de adoção “à brasileira” na Maré. “Nesses casos a mãe indica um vizinho para cuidar, e anos depois as duas famílias procuram o conselho para regularizar a situação. São histórias mirabolantes. Às vezes a avó não tem a guarda, mas assume o papel de mãe, ou o pai adotivo registra o bebê com a mãe natural e só depois de anos pede para modificar a certidão de nascimento. São guardiões de fato, mas sem registro”.
A conselheira acrescenta que desconhece casos em que a criança tenha sido removida da convivência com a família substituta depois de anos para encaminhamento a abrigo, porém ressalta a importância do trâmite judicial, que prevê acompanhamento familiar com psicólogos, assistentes sociais e oficinas sobre acolhimento. “As pessoas acham o processo legal burocrático, mas essa adoção improvisada é complicada. Não tem uma certidão no nome dos pais que criam, fica difícil o atendimento médico e a escola. Só depois da criança grande é que tentam sensibilizar o juiz. Na prática, o acolhimento no abrigo é a última das instâncias e em casos específicos em lei. O que é feito na Maré é uma guarda de fato pré-estabelecida, sem que a criança ou o adolescente estejam em risco”, conclui.
“Adoção-pronta” compõe maioria dos casos tramitados na Vara de Infância
A psicóloga Lygia Santa Maria Ayres publicou, em 2011, o artigo “Adoção-Pronta”, termo que define a “prática de entrega e colocação familiar, ainda que não disposta juridicamente”. O estudo da pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) apontou que a adoção “à brasileira” tão comum na Maré representava a forma mais usual de legitimação de inserção de uma criança em uma família substituta, sendo 95% dos 42 casos de institucionalização de adoção tramitados no Juizado. “Desconheço estudo com enfoque na favela. Mas esse jeito não oficial tem sido a maior forma de adoção de crianças”, comenta Lygia.
Alice Oliveira (*) aguarda o fim da pandemia para regularizar a adoção de seu segundo filho, após frustrações por não chegar ao fim em tentativas de adoções nos trâmites legais. “Meu marido e eu esbarramos em impossibilidades no meio do processo, como doença e desemprego. Sabemos que pulamos fila e que vamos passar por um juiz duro, mas fizemos por amor”. Enquanto a situação ainda segue na informalidade, a avó biológica de Everton (*), que cria seus dois irmãos, vai ao cartório sempre que autorizações legais são necessárias. A família faz questão que o menino de seis anos de idade mantenha o convívio com os demais familiares.
O cenário foi diferente para a primeira experiência de adoção de Alice. Em 2000, a moradora da Nova Holanda chorava por não poder engravidar, quando recebeu o telefonema de uma amiga sobre uma mãe de outro município que desejava dar seu filho devido a problemas familiares. “Elias(*) era uma criança que entraria na fila de adoção, mas dificilmente seria adotado, pois tinha suspeita de HIV, má formação da traqueia e sífilis congênita. Deixei meu trabalho para cuidar dele, que ficou muito tempo internado. No ano seguinte oficializamos a adoção”, conta. Elias, no entanto, não se sente adotado. “Até os meus amigos não acreditam. Não me sinto diferente, somos uma família”.
BOX: Como adotar?
Qualquer pessoa maior de 21 anos pode se dirigir à 2ª Vara da Infância da Juventude e do Idoso que fica no Sambódromo do Rio de segunda a sexta das 13h às 19h. (Praça Onze de Junho, 403, 21- 2503-6300)
Para entrada no processo de habilitação tem que participar de reunião que acontece toda última sexta-feira do mês, na qual a equipe explica quais os procedimentos necessários para habilitação dos pretendentes e quais as documentações exigidas para iniciar o processo. Depois, as famílias são encaminhadas para grupos de apoio à adoção e avaliação com equipe técnica. Mais informações no site: http://www.tjrj.jus.br/web/guest/institucional/inf-juv-idoso/cap-vara-inf-juv-idoso/adocao/procedimentos?inheritRedirect=true
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* Alice Oliveira, Everton e Elias são nomes fictícios utilizados na reportagem com o objetivo de preservar a identidade das fontes.