Encabeçados por uma nova geração de ativistas, projetos de sensibilização e conscientização da condição feminina florescem pouco a pouco nas periferias
João Ker
Assovios, agressões, assédios, palavrões e todos os mais diversos tipos de violência – a quantidade de opressões suportadas por mulheres ao longo da história é incontável. E, apesar dos avanços obtidos com o passar dos anos, há ainda um longo caminho para ser percorrido até a igualdade. Caminho que o movimento feminista começa a trilhar em novas camadas sociais, sensibilizando mulheres que, por vezes, nem se dão conta do abuso diário ao qual são submetidas. E, dentre esses projetos de sensibilização está o Coletivo Madalena-Anastácia, que usa o teatro como canal para levantar debates sociais, com base em laboratórios e em suas próprias experiências como mulheres negras.
Fundado em 2015, o Grupo utiliza o método criado na década de 1970 por Augusto Boal (1931-2009): o Teatro do Oprimido, que usa os palcos como forma de diálogo entre sociedade e artistas. Apresentando-se por áreas periféricas do Rio por meio de ONGs, escolas, praças, ruas e instituições, suas 13 integrantes denunciam, em diálogos verbais e corporais, situações cotidianas de abuso. Lideradas por Bárbara Santos, precursora do movimento, elas mantêm seu foco sempre em mulheres, especialmente as negras, com realidades bem próximas às suas. “Trabalhamos com histórias reais, que são resultado de muito laboratório. Por meio delas, montamos uma peça baseada no racismo e no machismo que nos atravessa. Não é apenas entretenimento – trazemos sempre uma reflexão e uma pergunta para a nossa plateia”, conta Carolina Netto (33), integrante do coletivo. A técnica do Teatro-Fórum, na qual a barreira entre palco e plateia é quebrada para o debate social tomar seu espaço na ribalta com a participação do público, gera identificação e conscientização em níveis imprevisíveis durante os espetáculos apresentados pelo Grupo. “Muitas pessoas se chocam, choram e ficam angustiadas com o que a gente mostra. Mas são histórias que merecem ser contadas”, aponta Carolina, esclarecendo que homens e mulheres brancas, muitas vezes, se sentem incrédulos e perturbados ao se identificarem em uma situação semelhante a dos opressores retratados na apresentação. “Nossas peças são, geralmente, recebidas com bastante impacto. Já tivemos convidados na plateia que, durante o fórum, tentaram emplacar um discurso de defesa da opressão como forma de aliviarem suas consciências”, avalia.
Projetos semelhantes de sensibilização e capacitação de mulheres da periferia vêm surgindo e se fortalecendo no Rio de Janeiro, muitos deles ajudando a desmistificar o medo e a repulsa contra o termo “feminista”. Karolayne Cristine, de 19 anos, por exemplo, confessa que sua relação atual com o movimento é bem diferente da que teve quando o descobriu de maneira superficial. “Eu tinha a mente bem fechada e conservadora. Meu primeiro contato foi o de repulsa, porque me apresentaram o feminismo de forma desvalorizada, como se fosse um desmerecimento”, conta. O que mudou a mente de Karolayne foram as aulas no curso pré-vestibular oferecido pelo Centro Comunitário de Capacitação Profissional Paulo da Portela, em Oswaldo Cruz. Ali, ao aprender Cidadania, ela teve contato com feministas, transsexuais e agentes públicos que a ensinaram novas realidades e até novas maneiras de encarar o seu próprio papel social. “Quanto mais você estuda, menos ignorante fica”, brinca a jovem, hoje declaradamente ativista e integrante da Marcha das Mulheres. Ela esclarece: “Eu sigo a linha do feminismo que aborda a vida nas periferias e o movimento negro, abrangendo outras situações, como o preterimento da mulher negra na faculdade, sua hipersexualização e todo o nosso contexto histórico”, aponta, citando os séculos de avanços que as mulheres brancas tiveram, enquanto as negras ainda lutavam pelo fim da escravidão.
A força que o sangue jovem tem para pulsar o movimento em áreas nas quais ele ainda não chegou é inestimável. Pela internet, as novas gerações de mulheres vêm aprendendo e disseminando conceitos e lutas em torno do feminismo, alcançando mulheres ainda alienadas sobre o assunto. No Complexo da Maré, a produtora de conteúdo AMaréVê foca o seu trabalho principalmente na forma como a figura feminina é representada no meio audiovisual. O Grupo foi idealizado por Suzane Santos, Karina Donaria, Jéssica Pires e Mayara Donaria, quatro jovens moradoras da região que se envolvem, ativamente, na vida política e social do bairro, ao mesmo tempo em que se transformam em catalizadoras do estilo de vida dali. “Nós não discutimos os temas, apenas. Nós vivemos isso”, explica Mayara. “Nós fazemos esse recorte de gênero, porque ele não existe nos lugares onde a gente vive. Produzimos juntas e tem dado bastante certo”, comenta Mayara, citando festas, vídeos, fotografias e palestras em escolas públicas como algumas das vertentes de seu trabalho.
O empoderamento sexual pela subversão do funk
Nas periferias do Rio de Janeiro, o feminismo também encontra um de seus grandes paradoxos: o funk. Ao mesmo tempo em que o ritmo é encarado por alguns líderes do movimento como forma de opressão e hipersexualização da mulher pelos homens, há vertentes que defendem o poder que ele proporciona de autocontrole sobre o corpo e a sexualidade. É o caso do Afrofunk Rio. Usando o gênero musical como gancho, o Grupo intercala movimentos corporais com histórias contadas sobre os ritmos africanos e suas tradições milenares. Do dancehall ao baikoko, passando pela dança dos orixás, as meninas entendem como o ritmo carioca é parte de uma expressão cultural que deve ser respeitada e celebrada. Comandado por Taisa Machado e Sabrina Ginga, o coletivo aplica oficinas regulares na Fundição Progresso, na Lapa, e outras edições itinerárias que ramificam e potencializam o alcance das aulas. “O grande diferencial do nosso trabalho são as informações históricas. Você entende por que cada movimento é executado, e então toma consciência de que as mulheres rebolam há mais de 8 mil anos como uma função social”, esclarece Taísa, enquanto Sabrina acrescenta: “temos um discurso muito voltado para a liberdade, principalmente do corpo e do sexo. Costumamos dizer que nossa aula é afrocentrada, porque segue práticas de origens africanas. Dessa forma, debatemos que o corpo, a sedução e o sexo não são pecados nem errados. Assim, empoderamos nossas alunas”.O curso se divide em três módulos: o primeiro foca na libertação das pernas e do quadril; em seguida, o Grupo trabalha os arquétipos de deusas e alguns deuses do candomblé – Iansã, Oxum e Iemanjá, assim como Ogum, Xangô e Oxóssi; por fim, é apresentado um panorama geral de ritmos como o kuduro, dancehall e sons tradicionais da Bahia e do Rio de Janeiro. Na turma, há mulheres tanto da Zona Sul e do Centro quanto de Nova Iguaçu e da Tijuca, a maioria em torno dos seus 20 anos. “Trabalhamos também com a galera ‘tombamento’, o pessoal que curte rap e funk, mas que não se sente seguro em nenhum dos dois ambientes. Principalmente meninas mais novas, gays e transsexuais”, lembra Taisa.
Durante as oficinas, ela e Sabrina oferecem um local seguro para que as alunas possam se expressar sem os olhares e comentários opressores de homens que, majoritariamente, “inundam” os espaços onde o funk é celebrado. A reação é palpável: “Sempre levamos a conversa em torno da liberdade corporal e de como ela influencia a maneira que você se veste, como você anda e a atitude que você tem. E essa é uma questão muito delicada, por mais que não pareça. Para muitas meninas, é uma vitória poder e conseguir usar um shortinho durante aquele período. Ali, ninguém repara se você tem ou não celulite. Elas estão em um ambiente seguro, sem padrões e sem cobranças estéticas”, esclarece Sabrina. E, por mais que esse não seja o foco, é inegável que o feminismo permeia o trabalho realizado pelo Afrofunk. “O que a gente aborda de fato é a liberdade, sabe? A liberdade de dançar e conhecer seu corpo. De entender a sua música e a sua história!”, defende Taisa.