FLUP 2020: Literatura sem barreiras

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Em meio à pandemia, festival literário carioca faz integração com outras seis cidades do mundo para tratar de questões raciais

Por Andressa Cabral Botelho em 30/10/2020 às 11h

A pandemia nos deu a oportunidade de, por meio da internet, estar perto de pessoas que em dias comuns, jamais seria possível e é exatamente assim, conectada, que vai acontecer a 9ª Festa Literária das Periferias. A FLUP 2020 vai romper as barreiras da cidade do Rio e chegar a outras seis capitais do mundo – Paris, Edimburgo, Madrid, Lisboa, Berlim e Joanesburgo. Estas sete cidades também irão debater sobre literatura e o impacto do caso George Floyd no mundo ao longo dos dias 29, 30 e 31 de outubro e 1, 6, 7 e 8 de novembro.

Toda a programação tem sido oferecida de forma virtual, através do Instagram e Facebook e do canal do YouTube da FLUP. Se antes a proposta era promover encontros presenciais e criar redes de afetos e contatos, agora o Festival consegue ampliar a conversa internacionalmente, alcançando assim, um público mais diverso. “Agora, estamos falando para pessoas de todos os estados do país e mesmo de outros países lusófonos. Com as mesas internacionais, certamente falaremos para os países de que essas pessoas vêm, como a Espanha e o mundo hispânico na mesa da Rita Bosaho e da Lucía Mbomio, a França e o mundo francófono na mesa da Assa Traoré e a África do Sul e todo mundo anglófono na mesa do Achille Mbembe”, destacou Júlio Ludemir, um dos fundadores da FLUP. Os painéis internacionais acontecem graças a uma parceria com o Just Festival – festival de justiça social e direitos humanos de Edimburgo (Escócia) – e o TIFA – Toronto International Festival of Authors, o maior festival de palavras e ideias do Canadá.

Este ano, a feira foi fragmentada em dois momentos virtuais. O esquenta da Flup começou em 12 de maio, com o ciclo de debates Uma revolução chamada Carolina, homenageando a autora Carolina Maria de Jesus. Como resultado da primeira fase da FLUP, será publicado um livro onde mulheres negras, incluindo catadoras de material reciclável do ABC Paulista, farão uma releitura de Quarto de despejo. As mesas contaram com a presença 46 pessoas negras.

A segunda fase começa a partir do dia 29 de outubro homenageando Lélia Gonzalez, uma das referências dentro do Movimento Negro Unificado (MNU) e do feminismo negro, como mencionou Angela Davis, militante do movimento negro dos Estados Unidos. O início da segunda fase é marcado pelo encontro que acontece a partir das 19h com Flávia Rios e Márcia Lima, mediado por Alex Ratts, três pesquisadores que se dedicaram a desenvolver trabalhos sobre a homenageada. O momento é importante também pois será o dia do lançamento do livro Por um feminismo afrolatinoamericano, uma coletânea de ensaios, artigos e entrevistas de Lélia, organizado por Flávia e Márcia. Em paralelo, Flávia e Alex escreveram juntos o livro Lélia González: retrato de um feminismo negro (2014). 

A escolha das duas autoras tem relação ao tema principal da FLUP, que é homenagear figuras importantes da história e como elas retratam questões de raça, classe e poder em seus escritos. Para além desse ponto, a proposta é também chamar atenção para o trabalho desenvolvido por Carolina Maria de Jesus e Lélia Gonzalez no campo do feminismo negro. A própria Angela Davis questionou em 2019 sobre o nosso desconhecimento de Lélia, que também vale para Carolina e outras autoras negras brasileiras: “Por que no Brasil vocês precisam buscar essa referência [de feminismo] nos EUA? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderiam aprender comigo”. 

O contato de leitores com autores e autoras negras brasileiras ainda é restrito. Em levantamento feito pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (Gelbc), da Universidade de Brasília (UnB), foram analisados mais de 600 romances nacionais publicados por grandes editoras entre 1965 e 2014. Dos títulos, 10% foram escritos por pessoas negras e 30% por mulheres, o que nos faz entender que as editoras têm uma preferência por um gênero e raça. Mas o cenário tem se transformado.

Autoras como Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento*, por exemplo, possuem vasta produção intelectual – as duas últimas são nomes de referência no MNU -, mas passaram a ter reconhecimento de um público mais geral no final dessa década, graças a pesquisadores e pesquisadoras que tem organizado e publicado as suas obras e a editoras organizadas por coletivos do movimento negro, a  exemplo da Editora Malê e Filhos da África, ou selos como o “Feminismos Plurais”, da Editora Pólen, criado idealizado pela Djamila Ribeiro

Passado e presente conectados 

“A comida no estômago é como o combustível para as máquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo deixou de pesar. Passei a andar mais depressa. Eu tinha impressão que eu deslizava no espaço. Comecei sorrir como se estivesse presenciando um lindo espetáculo. E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer?” O trecho de Quarto de despejo: Diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, poderia ser dito por qualquer pessoa que hoje enfrenta a fome de frente, diante a pandemia que tornou evidente os problemas de segurança alimentar do país. 

Ao mesmo tempo que se volta 60 anos para entender a realidade da autora nesse livro, muitas pessoas olham para 2020 com a mesma insegurança que Carolina expôs em sua obra. Em 2018, cerca de 10,3 milhões de brasileiros não tinham acesso regular à alimentação básica, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), um aumento de 3 milhões em cinco anos. No mundo, 815 milhões de pessoas não têm o suficiente para se alimentar, segundo as Nações Unidas. Apesar de antigo, a fome segue sendo um assunto recorrente e urgente.

Em seus escritos nos anos 1980, Lélia Gonzalez buscou entender sobre a formação da diáspora negra, que se dá a partir dispersão dessas pessoas de suas terras originárias para outros locais da África, Europa, Ásia ou América devido à escravidão. A partir da formação das diásporas negras, pode-se compreender o processo de desigualdade e racismo e a busca por estratégias de resistência para viver e sobreviver nesses locais. Anos depois, é possível recuperar esses estudos e entender que a produção de racismo e violência policial que acontece na diáspora brasileira é semelhante a que aconteceu com George Floyd nos Estados Unidos em 2020 e a que ocorreu com Adama Traoré, em 2016 na França. 

Pensando nessa relação diaspórica, atravessada por violência e racismo, que une a população negra, os painéis internacionais da FLUP abordam a questão racial após o assassinato de George Floyd e os impactos do racismo na população negra. Uma das convidadas é Assa Traoré, mulher negra e ativista francesa que luta no movimento contra o racismo e violência policial desde a morte de seu irmão, Adama, e um dos principais nomes do movimento Black Lives Matter na França. Além dela, também irá participar em outro momento o ativista senegalês Mamadou Ba, que hoje mora em Portugal e constantemente sofre diversas ameaças devido a sua luta constante pela vida e direito dos migrantes e minorias étnicas. 

* Os textos da historiadora e militante do MNU Maria Beatriz Nascimento também são raros de se encontrar. Diante disso, o antropólogo Alex Ratts organizou o livro Eu sou atlântica, com textos dele esmiuçando a obra de Beatriz Nascimento, além de ter também artigos e poesias da autora. 

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