Por Alexandre dos Santos em 02/02/22 às 14h.
Moïse Kabagambe foi assassinado com requintes de crueldade e covardia no quiosque onde trabalhava. Foi torturado e deixado amarrado chão porque seus assassinos têm certeza (ou a impressão) de que o crime pode passar impune. Afinal, Moïse era preto, pobre e imigrante vindo de um continente que só aparece nos noticiários como sinônimo de tudo o que há de negativo: pobreza, corrupção, fome, golpes de Estado, violência, terrorismo etc.
Esse crime revela muito do que estamos nos tornando. A morte de Moïse, executada sem aparente remorso, mostra como chegamos ao fundo do poço. E como sempre damos um jeito de descer mais um degrau na nossa própria desumanização.
O filósofo Thomas Hobbes defendeu, no século XVIII, que são as leis, as regras sociais, o respeito à vida (mesmo que imposto pelo Estado) que impedem que nos exterminemos. Ele chamou essa situação limite e hipotética de “estado de natureza”, onde, sem qualquer regra social o homem seria “o lobo do próprio homem”, afundando na própria violência e insensatez.
Estamos nos esforçando pra chegar lá. Insensíveis e mergulhados numa espiral de violência. Uma violência racista que vem de longe. Desde as argumentações religiosas do século XV para justificar a escravização até as argumentações iluministas e de que os povos do continente africano seriam pagãos, sem história, incivilizados e sem intelecto porque estavam em um estágio inferior no desenvolvimento da humanidade (“comprovado” pelo darwinismo social). “Metade demônio, metade criança”, como escreveu Rudyard Kipling em “O Fardo do Homem Branco”, reflexo de toda a arrogância da branquitude europeia neocolonial. Pura construção da narrativa e da imagem da pessoa negra como inferior, como lembra a doutora Rosane Borges (@_rosaneborges ).
O assassinato de Moïse – e de todas as pessoas negras – escancara a presença dessas imagens do passado alimentando o racismo de hoje. É o “racismo estrutural” que o doutor Silvio Almeida (@silviolual ) tanto discute.
A morte de Moïse – e todas as mortes violentas nesse Brasil racista e xenófobo – é a morte da nossa humanidade.
Alexandre dos Santos é jornalista e professor de História do Continente Africano no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio.