Gênero, raça e inclusão ganham força na educação na Maré

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Nos últimos anos as ações articulando essas questões têm deixado de ser pontuais e foram incorporadas ao planejamento anual dos projetos pedagógicos

Adriana Pavlova e Hélio Euclides

Uma das 42 recomendações ao poder público da recém-lançada Carta para a Educação da Maré diz ser necessárioincluir as temáticas de gênero e raça no planejamento das ações pedagógicas das unidades escolares, estimulando discussões regulares sobre racismo, machismo e descriminação de pessoas LGBTQIAP+”. 

De olho nessa proposição e movido pelas celebrações da Consciência Negra, o Maré de Notícias foi a campo descobrir como se dá a educação com pressupostos antirracistas, antimachistas e sem preconceitos nas escolas da Maré.

A boa notícia é que, nos últimos anos, as ações articulando essas questões têm deixado de ser pontuais e foram incorporadas ao planejamento anual dos projetos pedagógicos de algumas escolas. Há trabalhos inspiradores, que vão além da obrigatoriedade do ensino da História e sobre as culturas afro-brasileira e indígena no currículo do Ensino Básico, prevista pela Lei 11.645, de 2008.

Máscaras africanas

É o caso do Espaço de Desenvolvimento Infantil Pescador Albano Rosa, na Vila dos Pinheiros. Temas de gênero, raça e inclusão perpassam transversalmente as atividades pedagógicas das 12 turmas, envolvendo de forma exemplar não apenas as crianças de 1 a 6 anos como suas famílias.

Ali, bebês brincam com imagens coloridas do cotidiano da população negra carioca do início do século passado, retratadas pelo pintor Heitor dos Prazeres; crianças preparam adereços com máscaras africanas e braceletes indígenas para a Feira Cultural de Valorização dos Povos Originários; meninas e meninos leem o livro infantil Amoras, do rapper Emicida, e aprendem a fazer mungunzá, comida à base de milho de origem africana (também chamada de canjica).

Em 2023, a tônica foi a construção da identidade dos alunos, levando em conta peculiaridades do território e a experiência dentro da escola. Segundo a diretora Gilda de Almeida, ”nossa aposta é na inclusão e para isso é importante ter um diagnóstico da comunidade”. 

Gilda revela que, durante a matrícula das crianças, “vimos que muitas famílias não conseguiam se autodeclarar pretas e pardas, houve comentário negativo sobre o cabelo de uma aluna negra e preconceito contra alunos estrangeiros”.

Antirracismo

Entre as ações desenvolvidas, foi montada uma exposição de fotografias sobre a profissão das mães e, assim, valorizá-las e empoderá-las. Além disso, a escola ampliou a oferta de materiais artísticos para autorrepresentação das crianças, como um novo estoque de lápis com variadas cores de pele. 

“A criança tem sensibilidade, leva para casa as práticas antirracistas que aprende na escola. O trabalho micro de educação vai ajudando a mudar a sociedade de uma forma mais macro”, avalia Lucélia Perrut, diretora adjunta. 

 Outro exemplo encorajador é o trabalho multidisciplinar com alunos entre 16 e 82 anos inscritos no programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA), realizado na Escola Municipal Clotilde Guimarães, em Ramos. Ali, o público é majoritariamente mareense.

Incentivados pela diretora e mulher negra Rosângela Oliveira da Silva, os professores apostam em aulas e atividades que valorizam a identidade de cada estudante.

Mandela e Suassuna

A escola discute gênero, raça, xenofobia, homofobia e potencialidades da favela a partir de autores ou pensadores como Nelson Mandela, Carolina Maria de Jesus e Ariano Suassuna. Criam, assim, um ambiente de acolhimento, inclusive para alunas e alunos transgêneros.

“São referências ligadas à representatividade do nosso público, que ajudam os alunos a olharem a própria história de outra forma e assim, elevarem a autoestima”, explica a professora de história e geografia Caroline dos Santos, ela mesma nascida na Maré. 

Caroline conta que o livro Quarto de despejo: Diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, ofereceu reflexões sobre a favela de ontem e de hoje, incentivando os estudantes a pensarem nos potencial dos moradores da Maré. 

Já a biografia do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela os encorajou a escreverem sobre suas próprias trajetórias. Trechos da minissérie O auto da compadecida, inspirada no livro do autor paraibano Ariano Suassuna, serviram para debater os preconceitos contra o povo nordestino.

Educadores à frente

Para dar conta dos temas de raça e gênero, os próprios educadores da Escola Clotilde têm buscado a formação continuada. Recentemente, o grupo fez o Circuito da Pequena África, no Centro, um passeio sobre a memória da cultura africana no Rio. 

As ações práticas de educação antirracista, antimachista e inclusiva ainda dependem do empenho pessoal dos educadores à frente das escolas ou de iniciativas de fora para dentro, estimuladas por parcerias com organizações da sociedade civil do território, como a Redes da Maré e o Luta pela Paz.

Com a experiência de quem roda as escolas da Maré desde 2009 para incentivar práticas educativas que levem em conta gênero, raça e classe, a articuladora da Redes da Maré Tereza Onã confirma a ampliação do interesse de professores, estudantes e suas famílias. 

Sua batalha é que o trabalho aconteça a partir de um planejamento pedagógico anual em cada unidade escolar. Não por acaso, Tereza foi a convidada de honra do primeiro dia de atividades na EDI Albano Rosa este ano, além de mediar uma roda de conversa apenas com alunas na EJA da Clotilde Guimarães:

“A escola ainda é um lugar muito branco. A maioria das professoras é branca e as cozinheiras, pretas. É preciso quebrar essa hierarquia racial e oferecer formação para os professores. Gosto de rodas de conversa, de apostar na multilinguagem, em misturar roupa de chita, comida típica, música, dança, porque falar sobre racismo é muito ruim, pesado, então melhor seguir pelo caminho lúdico”, diz Tereza.

Troca de saberes

É na Escola Municipal Professor Josué de Castro, na Vila do João, parceira da Redes da Maré no trabalho de articulação, que Tereza Onã tem conseguido maior avanço na troca de saberes com direção e professores. 

Já existe preparado um projeto político-pedagógico para 2024 levando em conta raça e gênero, e um projeto piloto foi posto em prática para as turmas do 7º ano. Até o fim do ano, os alunos estão assistindo aulas de afroetnomatemática com o professor Diego Marcelino, inspiradas nos conhecimentos dos povos da diáspora africana, e de memória afro-indígena na Maré, com o educador Marcos Melo.

Além disso, no projeto de articulação da Redes da Maré nas escolas, a  Casa Preta implementou ações sobre questões étnico-raciais na EDI Albano Rosa, nas escolas municipais Millôr Fernandes, Teotonio Vilela e Nova Holanda, e no CIEP Ministro Gustavo Capanema. 

Oficinas organizadas pela Casa das Mulheres sobre direitos sexuais e reprodutivos ocuparam salas das escolas municipais Professor Josué de Castro e Olimpíadas 2016, do CIEP César Pernetta e dos colégios estaduais Bahia e Professor João Borges de Moraes.

Sugestões sobre diversidade e inclusão da Carta para a Educação da Maré:  

  • Garantia de escolarização e permanência de estudantes LGBTQIAP+, com formação específica de professores para acolhimento da diversidade.
  • Ter mediadores, suporte em sala, transporte e benefícios assistenciais para estudantes PCD.
  • Incluir autores negros e história da Maré nos materiais pedagógicos.
  • Reflexão e respeito a práticas religiosas não hegemônicas.

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