Novembro negro: acesso à saúde ainda é um desafio para pessoas pretas

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Um olhar sobre o impacto do racismo estrutural nas doenças de 56% dos brasileiros

Por: Samara Oliveira, Andrezza Paulo  e Teresa Santos

No dia 20 de novembro é celebrado o Dia Nacional de Zumbi e o Dia da Consciência Negra. O mês ainda registra o Dia Mundial do Diabetes (14), o Dia Nacional de Combate à Tuberculose e o Dia Mundial de Combate ao Câncer de Próstata (17). Essas datas parecem não ter relação, mas as doenças citadas estão diretamente relacionadas à população negra, que hoje corresponde a 56% dos brasileiros, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Diabetes

O Brasil ocupa o 6° lugar no ranking mundial de incidência do diabetes, somando 15,7 milhões de adultos afetados, de acordo com dados de 2021 do Atlas do Diabetes da Federação Internacional de Diabetes. O número elevado de casos entre a população negra e a falta de controle da doença preocupam os especialistas. 

A obstetra Gisseila Garcia é doutora em saúde pública pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao analisar para sua tese os dados de 2008 a 2019 do Estudo Longitudinal em Saúde do Adulto (Elsa Brasil), ela identificou que mulheres e homens negros apresentam mais que o dobro da probabilidade de controle glicêmico inadequado. 

O Elsa Brasil é um estudo levado a cabo pelos ministérios da Saúde e de Ciência e Tecnologia, através de um consórcio de instituições (Fundação Oswaldo Cruz/RJ, Universidade de São Paulo/USP, universidades federais da Bahia/UFBA, Espírito Santo/Ufes, Minas Gerais/UFMG e Rio Grande do Sul/UFRGS).

Segundo o Elsa Brasil, o levantamento ouviu homens e mulheres “com idade entre 35 e 74 anos, que fazem exames e entrevistas nas quais são avaliados aspectos como condições de vida, diferenças sociais, relação com o trabalho, gênero e especificidades da dieta da população brasileira”.

Maioria negra

As diferenças entre brancos e negros também é marcante no caso da tuberculose. Segundo o Observatório Epidemiológico da Cidade do Rio de Janeiro (EpiRio), em 2022 o município registrou 9.339 casos da doença, sendo a maioria (65,7%) em pessoas negras. 

Somente a Área de Planejamento 3.1, na qual a Maré está inserida, registrou 1.294 casos, ficando atrás apenas da AP 5.1 (Bangu). Dos casos registrados em território mareense e bairros adjacentes, mais de 70% foram de pessoas negras.

Com relação ao câncer de próstata, 611 homens morreram vitimados por essa doença na cidade do Rio de Janeiro em 2022, conforme dados do EpiRio. Do total, 41,5% eram pretos ou pardos. Na AP 3.1, foram 95 mortes, das quais 43,2% ocorreram em pessoas negras.

Genes e ambiente 

O historiador Paulo Roberto de Abreu Bruno, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), explica que, além dessas doenças, outros agravos são especialmente preocupantes na população negra. 

“Hipertensão arterial, anemia falciforme, e deficiência de G6PD, um distúrbio genético hereditário que pode levar à destruição dos glóbulos vermelhos após uma doença ou o uso de alguns medicamentos, são exemplos de condições mais frequentes na população negra brasileira. Doença renal crônica e asma são outros agravos que também são apontados em pesquisas como de alta incidência em pessoas negras”, diz.

Segundo o pesquisador, vários fatores atuam nesse cenário de forma inter-relacionada. A genética, por exemplo, tem um peso importante no caso de algumas doenças, tais como a anemia falciforme, a hipertensão, o diabetes e a deficiência de G6PD.

Mas as condições de moradia, renda, escolarização, entre outros, também são relevantes. Isso significa, por exemplo, que ter ou não acesso a saneamento básico, mobilidade, segurança e lazer também contribui para o desenvolvimento de algumas dessas doenças.

As relações da população com o trabalho e as condições de moradia afetam diretamente nos cuidados com a saúde. (Foto: Gabi Lino/Maré de Notícias)

Sem informação 

Paulo Roberto explica que a alimentação é outro fator importante: “O consumo de produtos industrializados ultraprocessados, bebidas açucaradas, entre outros, em lugar de alimentos saudáveis, pode prejudicar muito a saúde. Ou seja, os hábitos alimentares inadequados exercem forte influência no desenvolvimento ou no agravamento de algumas das doenças citadas.” 

Vale ressaltar que esse consumo é impulsionado tanto pela condição de classe social com baixa remuneração e desemprego, quanto pela falta de acesso a informações, por exemplo, sobre as origens e a forma como esses alimentos são produzidos.

A pobreza no Brasil está diretamente relacionado à raça: segundo dados do IBGE de 2021, a proporção de pessoas pobres no país era de 18,6% entre os brancos e 72,9% entre os negros. Segundo a mesma pesquisa, uma pessoa branca brasileira recebe em média 75% a mais que uma pessoa negra. 

Direitos negados

Para o pesquisador da Fiocruz, os direitos básicos da população negra têm tido negados — incluindo o direito à assistência à saúde que respeite a diversidade. 

“A negação de direitos que se sustenta por meio de uma ideologia racializada é, sem dúvida, um fator de extrema importância na elevação da incidência das doenças citadas entre a população negra brasileira”, analisa.

Ele destaca também que “o passado escravista afeta sobremaneira o presente da população negra brasileira, sobretudo se considerarmos que, ao fim do escravismo colonial, não houve uma reforma agrária no país, um processo que possibilitasse à imensa massa de libertos as condições necessárias para que se estabelecessem com um mínimo de dignidade”.

Assuntos relacionados:

Como o passado escravocrata ainda afeta a saúde dos homens negros?

Vamos falar sobre direitos sexuais e reprodutivos para as mulheres da Maré? 

Acesso negado a mulheres negras

Crimes centenários

O historiador aponta que o código penal brasileiro atual, por exemplo, conserva elementos dos códigos criminais do século 19, nos quais os africanos e seus descendentes eram o público-alvo preferencial. Diante disso, o psicológico e outras questões que atravessam a saúde dessa população também são afetados por outras instâncias sociais. 

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado este ano, em 2022 o sistema penal do Brasil registrava 832.295 pessoas privadas de liberdade (em presídios e sob custódia das forças de segurança). Desse total, 68,2% eram negras, o que equivale a 442.033 pessoas 

 “Se considerarmos que cada uma delas tenha cinco pessoas próximas — filhos, pais, irmãos, cônjuges etc — chegaremos a um número expressivo de mais de dois milhões de brasileiros que sofrem, direta ou indiretamente, as consequências da privação de liberdade e de afeto”, diz Paulo Roberto.

Mudanças profundas

Para o pesquisador, a reversão desse cenário exige mudanças profundas. Porém, avanços já podem ser notados. Na área da educação, as cotas raciais nas universidades figuram como um dos possíveis pontos de partida. 

Já na saúde,  a ampliação da formação crítica de profissionais negros também pode acelerar este processo. 

“Também é preciso pensar na transformação do sistema de saúde como um todo, de modo que as pessoas em situação de maior precariedade tenham a garantia de acesso à saúde e a continuidade nos seus tratamentos e cuidados”, ressalta.

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