Segundo dados da Unicef, em 2020, quase 1,5 milhão de crianças e adolescentes de seis a 17 anos não frequentavam a escola
Por Hélio Euclides, em 20/07/2021 às 07h
Editado por Edu Carvalho
“Um livro, uma caneta, uma criança e um professor podem mudar o mundo”, essa frase da ativista Malala Yousafzai resume os elementos da educação. Mas a evasão escolar é o componente que separa os itens e traz como resultado uma maior desigualdade acadêmica e por sua vez, social. Com a pandemia, muitos estudantes ficaram distantes do ensino, e grande parte teve dificuldade para acesso ao material didático compartilhado de maneira remota, processos que afastaram ainda mais quem passou a fazer da sala de casa o ambiente da aula. Na medida que a vacinação avança e há reabertura escalonada, profissionais da educação saem em busca desses alunos, para garantir o término da formação.
Segundo o estudo “Cenário da Exclusão Escolar no Brasil – um alerta sobre os impactos da pandemia da Covid-19 na Educação”, lançado pela UNICEF, em parceria com o Cenpec Educação, no ano de 2019 havia quase 1,1 milhão de crianças e adolescentes em idade escolar obrigatória fora da escola no Brasil. Com a pandemia, a situação piorou. Em novembro de 2020, quase 1,5 milhão de crianças e adolescentes de seis a 17 anos não frequentavam a escola. E não para por aqui: 3,7 milhões estavam matriculados, mas não tiveram acesso às atividades escolares e/ou não conseguiram se manter aprendendo em casa. No total, são 5,2 milhões de meninas e meninos que não tiveram o direito à educação
Para muitos, a pandemia revelou diversos problemas a serem resolvidos pelo Estado em relação ao pilar número um do desenvolvimento de um país. Isso é o que defende Jonatan Peixoto, de 21 anos, morador da Nova Holanda, que atua como estagiário na educação inclusiva. Ele percebe que muitos alunos não conseguem conectar as aulas por não compreender os aplicativos, não possuem dispositivos e mesmo tendo material, os responsáveis não conseguem acompanhar seus filhos e netos.
Quem concorda com o colega de ofício é Lucas Ferreira, professor que atualmente coordena a Lona Municipal Cultural Herbert Vianna, na Nova Maré, além de atuar no setor de inclusão de pessoas com deficiência na instituição Luta Pela Paz, sediada na Maré. Para ele, a evasão escolar geralmente está ligada a uma questão de renda e raça. “É o Estado falhando em garantir a permanência das pessoas pobres e pretas na escola. Os mais vulneráveis à evasão estão principalmente nas séries mais altas, onde nas quais muitos alunos largam a escola para trabalhar e ajudar no orçamento familiar”, detalha.
No quadro dos fatores que compõem a evasão, o que não falta são motivos. Como atrair e manter a criança e o jovem assistido? “A solução é a garantia de direitos básicos como segurança alimentar para jovens em idade escolar, formação técnica e profissionalizante e políticas públicas que acolham os alunos e ofereçam espaços de desenvolvimento de potencialidades”, comenta Ferreira.
Incentivo para alunos na escola
Até metade da década de 1980, metade da população brasileira estava fora da escola. À época, educadores importantes como Paulo Freire e Darcy Ribeiro formaram ações diretas de impacto para transformar a realidade, e até hoje são vistos como símbolo de resistência para uma educação digna e que abarque todas as classes e segmentos da sociedade.
Desde então, demais iniciativas foram criadas com o mesmo objetivo. É o caso do Projeto Nenhum a Menos, da ONG Redes da Maré, que iniciou um trabalho de construção de grupo de famílias do conjunto de favelas para manter o contato. Mesmo durante a pandemia, as atividades seguiram, com material de apoio à campanha de saúde e manutenção do trabalho, realizado antes da crise sanitária. O meio utilizado? O WhatsApp, possibilitando também vídeos chamadas, feitas com agendamento de horários para atualização de dados, distribuição de matérias e orientações pedagógicas.
Inês Cristina, coordenadora da iniciativa, descreve o perfil de quem, infelizmente, vive com o abandono escolar. “Quem teve dificuldade de manter o vínculo escolar, de se alimentar, de se manter trabalhando, de manter estrutura de conectividade, de frequentar aulas remotas ou receber material impresso para acompanhar o que estava sendo oferecido pelas escolas foram os estudantes pretos, pardos, pobres das periferias e favelas do Brasil. É mais uma face do racismo estrutural”, expõe.
Segundo o Censo Maré, concluído em 2019, somente 42,4% dos domicílios do território possuem computador e internet. Destaca-se ainda que apenas 18,96% da população da Maré concluiu o ensino médio. De acordo com pesquisa realizada no final de 2020 da C6 Bank/Datafolha, quatro milhões de estudantes brasileiros abandonaram os estudos. Uma análise da UNESCO sobre os impactos da COVID-19 no ensino superior mostra que 17,4% dos alunos não pretendem retornar. Os analistas de educação apontam diversos fatores extraescolares e pedagógicos que contribuem para a evasão escolar, como a gravidez na adolescência. A média nacional de adolescentes grávidas é de 18% e na região do Complexo do Alemão e Maré chega a 26,34%, segundo a Nascer Brasil/Fiocruz em 2013.
“Ainda temos a questão do trabalho infantil, já que muitas crianças estão nas ruas trabalhando, fruto das dificuldades das três esferas governamentais de se organizarem para financiar os programas de auxílio emergencial, de segurança alimentar e educação”, avalia Cristina. Ela defende que é preciso a garantia das condições de funcionamento pleno das escolas para garantir o acolhimento com segurança, já que no caso do Rio de Janeiro, das mais de 1.500 escolas, 500 não têm condições de funcionamento pleno, algo em torno de 30% de toda a rede pública da cidade.
Para aprender, é preciso se apreender os conhecimentos e dinâmicas trazidas pelos estudantes, responsáveis e fatores externos que dialogam com a subjetividade. “É preciso trazer o encantamento para quem aprende e ensina, construir sentidos na escola para os estudantes, criar um ambiente para ser e pensar sobre si mesmo e a vida, uma escola que ofereça experiências que podem transformar as realidades, dialogar com a comunidade e valorizar cada estudante e família como parte deste processo em parceria”, sinaliza.
Uma busca ativa por alunos
A Redes da Maré vem realizando encontros periódicos com diretores desde o início da pandemia. Houve apoio às escolas quando algumas foram invadidas, para testagens das equipes em parceria com o Conexão Saúde e acompanhamento das visitas junto com o comitê de saúde. Outra estratégia é o projeto Busca Ativa, criado a partir de um monitoramento da frequência escolar pensada e executada como política intersetorial de articulação do sistema de garantia de direitos, envolvendo todos os setores da sociedade que podem apoiar a participação dos estudantes e famílias no processo escolar.
O objetivo maior do projeto Busca Ativa é incluir a criança que esteja fora da escola ou em situação de evasão. A iniciativa começou em janeiro, com atuação nas 16 favelas da Maré, a partir de demandas repassadas pelas escolas. São sete articuladores que realizam visitas domiciliares para entender o que ocorre, inserir a criança na escola e depois acompanhar. O projeto tem o convênio com a Secretaria Municipal de Educação e apoio das Fundações Malala e Itaú. A ação nasceu da metodologia do trabalho realizado de 2013 a 2016, com o Aluno Presente e do Nenhum a Menos.
Os locais de mais ações são a Vila do João, Vila dos Pinheiros, Conjunto Esperança, Nova Holanda, Parque União, Rubens Vaz e Parque Maré. São 456 cadastros, desses 314 foram encaminhados para o projeto Impacto de Vida, para ter segurança alimentar e saúde. Essas famílias recebem cestas básicas, internet e tablete para continuar nos estudos. “São famílias que não sabem a necessidade de buscar material impresso nas escolas. Falta informação e orientação, por isso em alguns casos encaminhamos para os serviços de saúde e assistência social”, comenta Elza Sousa, assistente social do projeto Busca Ativa.
A assistente relata um caso que demonstra a importância da ação: o caso de um adolescente que caiu da laje, fraturou a bacia e precisou de cirurgia, o que causou afastamento das aulas. O Projeto ajudou na necessidade de transporte para as consultas, intermediando para que o estudante tivesse acesso de políticas públicas. “Dialogamos com a Secretaria para que ocorra soluções. Na questão estadual são apenas quatro escolas no território, o que não absorve todos os estudantes e conseguir uma vaga é difícil. Em outro caso, o sistema estava indicando que o menino da Maré teria que estudar em Bangu. O projeto colabora para o diálogo e mostra o valor da educação para a vida, tanto da criança, quanto para a família”, conclui Sousa.
Geruso Oliveira é pai do jovem Lucas, morador da Nova Holanda. Ele avalia que os projetos de incentivo à permanência do estudante são fundamentais no território. “Sou grato ao projeto Peritech Maré, de oficina de robótica, realizado no Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, localizado na Nova Holanda, onde a equipe ajudou muito o meu filho, que estava desanimado com os estudos. Hoje ele é um jovem dedicado só tenho que agradecer a iniciativa”, conta.
Na favela muitos alunos vão à escola por falta do básico em casa. “Vejo pouco investimento nessa juventude vulnerável, que precisa se sentir orgulhosa, com sentimento de dever cumprido ao estudar. Falta incentivo dos que estão à frente da pasta de educação. Por isso, faltam muitas coisas nas escolas públicas. Por outro lado, o que se encontra são iniciativas de muitos professores que acreditam no aluno”, diz Oliveira.
É preciso correr atrás
As dificuldades que a pandemia trouxe aumentam os riscos de evasão escolar, e o Brasil, que vinha avançando nos últimos anos, pode retroceder até 20 anos no acesso à educação. Para Daniel Remilik, conselheiro tutelar e professor, o assunto merece urgência nos debates. “Recebemos muitas denúncias de escolas informando da evasão de alunos. Na maioria dos casos são meninos. Não consigo falar de números, mas a maioria dos casos vêm do CIEP Estadual César Pernetta, localizado no Parque União, que só em uma semana de junho foram seis evasões. Precisamos agir, no preparatório da Redes da Maré estamos trabalhando o tema Inclusão, acessibilidade e engajamento”, comenta.
A Secretaria de Estado de Educação (Seeduc) informou que está fazendo uma busca ativa para que os alunos não parem de estudar e retomem o vínculo com a escola. Adiantou que as direções estão mobilizadas para reaproximar os jovens que, de alguma maneira, não acessaram a plataforma virtual ou receberam as apostilas. Completou que em relação a Maré, os números de taxa de aprovação e reprovação, respectivamente, das escolas são: Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes (93,5% e 6,5%); CE Bahia (97,1% e 2,9%); CE Tenente General Napion (69% e 31%); e Ciep Cesar Pernetta (77% e 23%).
Até o fechamento da matéria a Secretaria Municipal de Educação não tinha retornado o contato.