Rede criada pela ativista paquistanesa em dez países apoia busca ativa de crianças fora da escola nas favelas do conjunto, entre outras ações em todo o Brasil
Por Adriana Pavlova, em 24/10/2022 às 16h
Qual é a ligação da ativista paquistanesa Malala Yousafzai com as favelas da Maré? Desde 2019, o fundo internacional que leva o nome da mais jovem ganhadora do Prêmio Nobel da Paz fincou suas raízes nas 16 favelas da região ao se tornar parceira da Redes da Maré no projeto Toda menina na escola, para a garantia de educação de meninas e adolescentes da Maré. De lá para cá, enquanto o Fundo Malala aumentava sua rede de ações no país pelo direito à educação de meninas, os elos com a Maré também se consolidaram.
Hoje já são 1.319 crianças e adolescentes fora da escola ou infrequentes identificados num processo de busca ativa, que inclui trabalho de cooperação com as redes municipal e estadual de ensino; a educadora Andréia Martins passou a integrar o seleto time da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala no Brasil – a Rede Malala – como representante da Redes da Maré; a estudante Thalita Silva Nogueira, cria da Maré, fez parte do grupo de 20 garotas de todo o país responsável pela redação do recém-lançado Manifesto #MeninasDecidem pelo Direito à Educação, representando estudantes periféricas e faveladas no documento idealizado pela Rede Malala. Um conjunto de ações que fazem parte do projeto global da entidade concebida por Malala ao lado de seu pai.
“O Fundo Malala não constrói escolas, constrói redes. Nosso trabalho tem como base o apoio e o fomento a redes nacionais e globais, de modo a pressionar governos, fazer incidências para implementar direitos, mudar leis com o objetivo de promover educação de qualidade para as meninas”, explica Maíra Martins, representante do Fundo Malala no Brasil.
O trabalho do Fundo no país é de articulação e aproximação de entidades e ativistas, como a Redes da Maré, que já vêm se debruçando de diferentes maneiras sobre o tema da educação de crianças e adolescentes:
“O tema da educação das meninas no Brasil é uma intersecção de várias agendas, como o direito dos adolescentes, discussão sobre gênero, raça e violência. Parte do trabalho do Fundo é fazer todos conversarem em busca de uma educação que faça com que as meninas brasileiras aprendam, tenham oportunidades e escolhas sobre suas vidas” completa Maíra.
O processo de aproximação do Fundo Malala no território mareense teve como marco a pesquisa Educação de meninas e covid-19 na Maré, que ofereceu um retrato dos impactos da pandemia de coronavírus na vida das estudantes da Maré, nos primeiros momentos da doença, dando visibilidade ao grave problema de falta de conexão virtual entre alunas e professores, durante as aulas remotas em 2020. Estudos e ações como essas realizadas na Maré dão a dimensão da seriedade e amplitude do trabalho da Rede Malala desde a sua criação em 2018, um ano depois da formação do grupo a nível global, que hoje reúne 80 participantes de dez países.
O time brasileiro formado por 11 educadores e suas instituições de diferentes regiões do país tem como foco quebrar as barreiras que impedem meninas de acessarem e permanecerem na escola, sobretudo as jovens negras, indígenas, quilombolas e periféricas. Os ativistas e suas associações têm em comum uma história de trabalho na defesa dos direitos.
“A Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala é fruto de um trabalho coletivo, do investimento do Fundo Malala em atores locais, instituições e ativistas, que juntos conseguem ter suas vozes amplificadas. São representantes de organizações como a Redes com forte incidência local na busca de resoluções de problemas que são nacionais. O próprio grupo de ativistas vai desenhando junto as ações, que, por exemplo, estiveram ligadas aos efeitos da pandemia em 2020 e 2021 e agora estão mais voltadas à importância da educação no ano de eleições”, explica Andréia Martins.
Um dos desdobramentos do Toda menina na escola, o projeto Busca Ativa na Maré teve início em janeiro de 2021, com uma equipe de seis articuladoras que rodam as 16 comunidades diariamente à procura de estudantes distantes dos bancos escolares. Além de localizá-las e de fazer a ponte para que voltem às aulas – buscando vaga por vaga junto às escolas – no contato com as famílias, as assistentes sociais e pedagoga que compõem o grupo identificam os problemas que levaram a criança ou adolescente a deixar a escola ou até mesmo nunca ter sido matriculada.
A partir daí, tem início um intrincado trabalho de articulação territorial para que sejam acionadas redes de apoio locais e equipamentos públicos de educação, saúde e assistência social. Durante todo o processo, a articuladora responsável faz o acompanhamento regular das estudantes, em visitas às suas casas ou por telefone. Hoje, os acompanhamentos já somam 2.635 contatos.
No período mais crítico da pandemia, 264 famílias atendidas pelo Busca Ativa também participaram de outro projeto da Redes, o Impacto de Vida, que garantiu o empréstimo de tablets e de chips de conexão para promover a comunicação entre os estudantes e seus professores, e ainda distribuiu regularmente cestas de alimentos durante dez meses, entre 2021 e 2022. Em muitos casos, a volta das crianças e adolescentes à escola dá início a um processo de transformação que envolve toda a família.
É essa a história de Rozana Rodrigues Sabino, de 34 anos, mãe de três filhos, que conheceu a articuladora do Busca Ativa justamente quando seus filhos, por falta de celular e de internet, estavam sem contato algum com a escola. Desde então, as crianças voltaram a estudar, ela se inscreveu em dois outros projetos da Redes: o curso de gastronomia Maré de Sabores e o Escreva o seu futuro, que oferece alfabetização para mulheres.
Moradora da Nova Holanda, Rozana deixou a escola aos 14 anos, quando estava na 5ª série, mas, apesar de as articuladoras terem conseguido até mesmo vaga num Centro de Estudos de Jovens e Adultos (CEJA) da Maré, ela não sentiu à vontade para voltar ao ensino formal e preferiu participar do curso na sede da Redes.
“No contato com a equipe do Busca Ativa descobri que era possível até mesmo voltar a estudar. Fui descobrindo possibilidades, como o curso de gastronomia e a alfabetização, que para mim funciona como uma forma de relembrar as aulas. A relação com os meus filhos mudou, porque agora eles se espelham em mim e querem estudar mais”, conta Rozana.
Os projetos da Redes da Maré também foram decisivos na formação da representante do conjunto de favelas no comitê de meninas de todo o Brasil responsável pelo formato final do Manifesto #MeninasDecidem pelo Direito à Educação, fruto do projeto coletivo de todas as instituições da Rede Malala. Nascida e criada na Nova Holanda, Thalita Silva Nogueira, de 18 anos, começou sua jornada como aluna do Preparatório do 6º ano, depois passou por aulas de inglês, pelo Maré sem Fronteiras, quando passou a circular mais território, e depois seguiu fazendo aulas de audiovisual, e do Preparatório para o Ensino Médio. Mas, segundo a própria Thalita, foi na formação para jovens do festival Wow, em 2018, que suas raízes mareenses falaram ainda mais alto:
“Descobri a história de lutas das mulheres da Maré, o que me ajudou a criar um vínculo maior com o território. Eu gosto do lugar onde moro, eu sei que tem defeitos e dificuldades, mas meu coração está aqui na Maré”, diz ela, que hoje está no curso técnico em administração do Colégio Pedro II.
Representante dos adolescentes das periferias no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Thalita percebeu no contato com outras participantes do comitê do Manifesto #MeninasDecidem pelo Direito à Educação que, apesar de as realidades das estudantes no Brasil serem bem diversas, na prática as lutas são muito parecidas. O grupo reuniu meninas negras, periféricas, indígenas, quilombolas, travestis, trans, trabalhadoras do campo e com deficiência para mostrar as prioridades das meninas para a educação. Entre as demandas específicas apresentadas no manifesto estão uma educação pública de qualidade, antirracista, antissexista e que combata as desigualdades sociais e a discriminação baseada em gênero.
“Percebi que as meninas quilombolas ou as que vivem em regiões muito distantes do país sofrem com a falta de informação do resto do Brasil sobre suas realidades, assim como a gente que mora na favela tem que lutar contra a informação distorcida, de pessoas que acham que toda a favela é uma coisa só, um lugar só de violências. Estamos lutando todas juntas por uma educação menos elitista, que abrace a todos, que seja acessível”, completa Thalita.
Só neste ano, além do Manifesto #MeninasDecidem pelo Direito à Educação, a Rede Malala lançou a “Carta Compromisso pelo Direito à Educação nas Eleições 2022” a candidatas/os à presidência, aos legislativos federais e estaduais e aos governos estaduais. O documento foi assinado por mais de 500 candidatos em todo o país, inclusive pela chapa do ex-presidente Lula e seu candidato a vice, Geraldo Alckmin. A Carta feita conjuntamente com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e seu Comitê Diretivo propõe um pacto com 40 pontos para que os próximos governos eleitos coloquem a educação como pauta urgente e prioritária.
“Depois das eleições, vamos engajar e monitorar as candidaturas eleitas durante os primeiros cem dias de mandato, com o objetivo de checar se pontos assumidos estão sendo cumpridos”, explica Maíra Martins.
Os 40 compromissos visam garantir o financiamento adequado à educação nos próximos governos, além da construção de sistemas de educação pública.