Cultura é resistência social

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Projetos e produtores culturais redirecionaram suas forças para criar conteúdos on-line e ajudar a diminuir os impactos da pandemia, mesmo sem o apoio do Estado

Maré de Notícias #116 – setembro de 2020

Flávia Veloso

O ano de 2020 tem sido um pesadelo vivo para todo o Mundo. No Brasil, a taxa de desemprego atingiu 13,3% da população, no segundo trimestre de 2020 – o terceiro pior número já registrado no histórico de pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Fora dos números oficiais ainda estão aqueles que trabalham informalmente, sem carteira assinada, como diaristas, pedreiros, comerciantes e muitas outras categorias, inclusive a dos trabalhadores da Cultura.

Dito como um dos primeiros setores a parar e um dos últimos a ser retomado, a realidade dos produtores culturais não tem sido de paralisação. Com as atividades presenciais suspensas, a forma de se consumir Cultura migrou para os meios virtuais. Segundo dados do YouTube informados à Revista Exame, a procura por conteúdos ao vivo cresceu 4.900%, durante o período de isolamento social.

Artistas locais e independentes encontraram nas lives e em plataformas, como Instagram, Facebook e YouTube, uma maneira de continuar produzindo e, principalmente, manter contato com o público. É o caso do ator, palhaço, músico, escritor e poeta Jujuba Cantador. Com todas as suas atividades presenciais paralisadas desde o início da pandemia, Jujuba tem feitos lives, semanalmente, em suas redes sociais. Mas ter visualizações não é sinônimo de ganhar dinheiro.

“Quem faz Cultura não é quem está na grande mídia, mas o cara que está na esquina, na favela, no interior, batucando pandeiro, tocando cavaquinho, dançando no baile (…). Estes são os verdadeiros fazedores de Cultura.” Jujuba Cantador, artista.

Fazer Cultura dá trabalho – e trabalho tem de ser pago

A renda de 88,6% dos trabalhadores diminuiu durante a pandemia, devido à suspensão e cancelamento de contratos, diminuição de jornadas de trabalho e demissões, como informa pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), que analisou efeitos da crise causada pela COVID-19.

Nem quem tinha dinheiro certo para receber do Estado, recebeu. A Lei Municipal de Incentivo à Cultura Carioca, conhecida também como Lei do ISS, seleciona – anualmente – centenas de produtores e projetos culturais para serem financiados, mas muitos pagamentos estão atrasados, em 2020.

De acordo com Jujuba Cantador, que faz parte da mobilização SOS Cultura Carioca e ainda não recebeu a verba para seu projeto inscrito, 40% dos aprovados não receberam um centavo sequer da quantia até o fechamento dessa matéria, enquanto outros ainda não receberam integralmente o valor prometido.

O SOS Cultura Carioca é um movimento que nasceu a partir das demandas dos espaços de Cultura e artistas em relação à pandemia. Ele tem como objetivo garantir o pagamento de editais já aprovados pela Prefeitura, manutenção de contratos em vigor entre organizações da sociedade civil e a Prefeitura, e medidas que auxiliem na renda dos trabalhadores do setor.

Como é feito o repasse do ISS?

Empresas que pagam Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN) podem se cadastrar a cada ano, como contribuinte da Lei de Incentivo, e escolher um projeto cultural para apoiar. Ao recolher os impostos das empresas cadastradas, a Prefeitura do Rio de Janeiro repassa 1% (que já foi 0,35%) aos projetos aprovados para que recebam a verba. É a maior Lei de Incentivo à Cultura em âmbito municipal, do País.

Uma Lei para todos, mas que pode não chegar a todos

Outra medida tomada, desta vez para todo o País, é a Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc – em homenagem ao escritor e compositor Aldir Blanc, autor da canção “O bêbado e a equilibrista”, que morreu de COVID-19, em maio, aos 73 anos de idade. A Lei pretende repassar R$3 bilhões de reais a estados e municípios, distribuídos em renda mensal de R$600 reais por, pelo menos, três meses, a trabalhadores da economia criativa, subsídio mensal para espaços culturais, ao menos 20% do total para ações de incentivo (como editais, chamadas públicas, prêmios e outros) e linhas de crédito com condições especiais para pagamento.

Na cidade do Rio, o cadastro para pessoa física e espaços ficou disponível entre 29 de junho e 31 de agosto. Durante o mês de agosto, a Prefeitura realizou fóruns com profissionais e moradores da Zona Oeste, Zona Norte, Zona Sul e Centro, para dialogar sobre a aplicação da Lei no município. Ainda não há informações sobre como e a partir de quando os recursos serão liberados.

Outros pontos da Lei Aldir Blanc que estão gerando reclamações são a obrigatoriedade de os equipamentos culturais prestarem contas, mensalmente, de como o dinheiro foi gasto em prol da produção artística e a preocupação se o subsídio chegará a quem mais precisa (artistas e técnicos periféricos e de regiões do interior).

A Lona da Maré foi um dos espaços que migrou as atividades para o on-line – Foto: Douglas Lopes

Equipamentos de Cultura e pandemia

Durante a pandemia, muitos espaços estão sendo usados para ações de combate ao novo coronavírus, o que dificulta a produção de conteúdo artístico. É o caso do Centro de Artes da Maré (CAM), equipamento de Cultura que funciona na Nova Holanda. O CAM, que até poucos meses atrás, era palco de projetos artísticos, passou a abrigar cestas básicas e virou uma das referências de enfrentamento à pandemia na Maré.

Para Junior Perim, fundador do Circo Crescer e Viver – que tem direcionado suas forças para o combate à COVID-19, assim como o Centro de Artes da Maré – e ex-secretário de Cultura do município do Rio, todo o setor cultural, periférico ou não, deveria ter sido direcionado para mitigar os impactos da pandemia. “Como cidadão, eu esperava mais de instituições culturais, mais do que reclamar a proteção da sua existência. O que precisa ser protegido num momento como este é aquilo que tem vitalidade, gera emprego e coloca sua infraestrutura à disposição de mitigar os impactos da pandemia”, observa.

O ex-secretário ainda cita como exemplo a experiência da favela da Maré. “[Os produtores e espaços de Cultura da Maré], por exemplo, pegaram seu capital social, capital simbólico, e se lançaram à tarefa de diminuir os impactos da pandemia sobre a população que vive no território onde atuam. O centro do Rio está tomado por populações de rua, pessoas em vulnerabilidade social, e é o lugar onde há mais equipamentos de Cultura na cidade. O que esses locais fizeram? O setor se colocou em uma luta corporativa para si mesmo. A Cultura não vem estabelecendo uma força no imaginário popular, não vem se colocando importante para a população brasileira. Se ela não for importante para a população, dependendo da orientação ideológica dos governos vigentes, eles não vão olhar para o setor”, completou.

Jujuba também destaca a falta do olhar do Estado sobre a Cultura popular, que pode acabar de fora dos investimentos da Lei Aldir Blanc: “O problema dos governantes em relação à Cultura é exatamente como eles a enxergam e administram os mecanismos que possam favorecer o enriquecimento e reconhecimento da importância que a Cultura tem no nosso País. Quem faz Cultura não é quem está na grande mídia, mas o cara que está na esquina, na favela, no interior, batucando pandeiro, tocando cavaquinho, dançando no baile, fazendo capoeira, dançando maracatu, dançando ciranda… Estes são os verdadeiros fazedores de Cultura.”

Na contramão da falta de investimentos públicos, procurando dar suporte às artes e aos artistas periféricos, vieram iniciativas como a “Chamada pública: novas formas de fazer arte, cultura e comunicação nas favelas”, da Redes da Maré, que dará bolsas para projetos artísticos e de comunicação favelados, e o Programa de Incentivo à Cultura, do Instituto Moreira Salles, voltado para trabalhos artísticos diversos, procurando atender a demandas como diversidade de raça, gênero, regionalidade, contexto social e cultural.

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