Maré tem população de cidade, mas faltam linhas de ônibus

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Há 14 anos, o bairro Maré, com 137 mil moradores, tinha 3 linhas que ligava a Zona Sul ao território. Atualmente só há uma

Por Brenda Magalhães*, em 05/09/2022 às 11h20

Você já se perguntou quantas vezes precisou sair de casa mais cedo para percorrer um longo trajeto ou atravessar uma passarela até chegar ao ponto de ônibus? Ou quantas vezes precisou gastar o seu dinheiro pegando mototáxi, simplesmente porque esse ponto é distante da sua casa e você não pode se atrasar? Essas perguntas induzem a outro questionamento: por que os moradores da Maré não têm direito a transporte público? 

Uma viagem de mototáxi da praia de Ramos à Nova Holanda, que dura em média 10 minutos e possui um percurso de 1,6 quilômetro, chega a custa R$ 15. Ou seja, quatro vezes mais que o valor da passagem de ônibus atual. Já o trajeto de Copacabana – Parque União, que tem distância maior de quase 14 vezes, 22 quilômetros, pode ser feito com apenas R$ 4,05.

A luta para se ter dignidade e visibilidade na Maré não é de hoje. E isso aparece de forma escancarada no campo da mobilidade urbana nas 16 favelas.  A Maré foi formada a partir de remoções e habitações “provisórias” para um projeto de “modernização” do Rio de Janeiro, durante o governo estadual de Carlos Lacerda (1960-1965). Superficialmente o projeto ajudaria na criação de uma nova imagem de cartão postal do Rio, mas por trás, haveria algo muito cruel: segregaria parcela da população tornando-a marginalizada. 

Entretanto, esse projeto segregacionista não conteve os mareenses. Eles construíram um espaço de resistência, de debate e de luta por direitos. É uma região maior do que 96% dos municípios brasileiros, com 139.073 habitantes, segundo o Censo da Maré de 2013. Mas é aí que retomamos o ponto de partida desta reportagem: boa parte desses moradores precisa se deslocar todos os dias para o trabalho, para a escola ou para deixar o filho na creche, mas sofre com a falta de um projeto urbano de integração de transporte entre as comunidades adjacentes ou entre elas e os bairros da cidade. São 16 favelas comprimidas na extensão de uma dezena e meia de quilômetros – hoje, inexplicavelmente, isoladas entre si

Em meados de 2008, circulavam diariamente pela Maré no horário da manhã as linhas 126 (Túnel Santa Bárbara/Copacabana) e 127 (Copacabana/Aterro), da Empresa Real Auto Ônibus. As linhas faziam ponto final, inicialmente, na Rua Darci Vargas ou popularmente chamada Rua do Valão, ambos com o itinerário Zona Sul-Maré. A moradora da Nova Holanda Ana Maria de Oliveira, 55, tem saudade desse tempo.

“O transporte me facilitava muito por ser dentro da comunidade, por não ter que atravessar a Avenida Brasil para poder pegar do outro lado e ajudava na passagem porque era uma condução só. Eu pegava aqui e ia direto para o meu trabalho”, diz a mareense. Ana diz que seria ótimo se a linha voltasse não só para atender as pessoas que trabalham longe da Maré, mas também para quem quer transitar entre uma comunidade e outra.”

Também eram frequentes ônibus que possuíssem um itinerário Maré-Centro, como o 320.  Daniele Cabral (46), atual moradora do piscinão de Ramos, afirma que sempre pegava a linha na Nova Holanda para ir e voltar do trabalho, e que a existência desses ônibus na Maré facilitava muito o deslocamento e melhorava a qualidade de vida dos moradores. 

Jaqueline Lopes (37), cria do Piscinão de Ramos e secretária da Associação de Moradores da Roquete Pinto, revela que apesar do problema, “nunca se teve, nem pelos moradores ou por autoridades públicas, uma proposta de implementação de transporte público na região”. Para ela, trata-se de um direito escasso e já naturalizado pelos residentes das comunidades. Vale registrar que a própria dirigente da Associação admite que jamais tinha se questionado sobre o assunto. 

De acordo com o Censo Maré 2013, 32% dos estudantes frequentam escolas, creches e universidades fora da comunidade. Para Jaqueline se fosse estabelecido um ponto estratégico desde a vila do João até as outras comunidades pertencentes ao território, seria de grande ajuda a essa população. A secretária comenta ainda que a Praia de Ramos possui poucos projetos que provoquem questionamentos como esse, e por isso exalta o trabalho da Redes da Maré como eixo e socorro de todas as 16 favelas componentes desse território.

A Kombi estrelinha 

No Piscinão, em consequência à falta de transporte público, os moradores se juntaram e criaram, mesmo que de forma limitada, um transporte alternativo:  a famosa kombi “estrelinha”, que faz o itinerário Piscinão-Bonsucesso, circulando pela Penha e Lobo Júnior, por 4 reais. Segundo Hélio Silva (43) professor de Educação Física e dono do ponto das kombis, a regularização “foi chata e burocrática, e demorou mais de 20 anos”. Quem conseguiu regularizar esse transporte alternativo foi Gilberto Cardoso (55), mais conhecido como Galo, que tentava implementar o veículo desde o ano 2000.

Kombi “estrelinha” estacionada no ponto final, na Praia de Ramos.  Foto: Brenda Magalhães

Hélio afirma que se tivesse algum ônibus rodando pelo Piscinão e fizesse o mesmo trajeto, o serviço de kombi seria extinto. Entretanto, como “nunca teve e nunca passou pela cabeça dos administradores, o transporte vem a calhar muito bem”. Ele diz ainda que a kombi facilitou a vida de muita gente e que, constantemente, são parabenizados pela prestação de serviço à comunidade. 

É o que reconhece a autônoma e moradora da Praia de Ramos, Alice Magalhães (38).”A gente pega a condução na ‘porta’ de casa, e desce na ‘porta’. Facilita muito a nossa vida na correria do dia a dia. Se não fosse a kombinha, com certeza seria tudo mais difícil para nós”, afirma a moradora. 

Mas se a kombi estrelinha ajuda na mobilidade urbana de parte de quem vive no Piscinão, isso já não acontece com as demais 15 favelas da Maré em relação ao transporte público. A nossa reportagem procurou as empresas de ônibus que não responderam a essa pergunta.

*Comunicadora da primeira turma do Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias

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