Medidas Provisórias aprovadas pelo governo federal não protegem trabalhadores formais

Data:

Mesmo após milhões de demissões e reduções de salário durante a pandemia do novo coronavírus, trabalhadores ainda têm seus direitos negados

Flávia Veloso

Demissões e reduções salariais. Essa tem sido a realidade de muitos trabalhadores formais desde o início da pandemia do coronavírus. Com o objetivo de manter os postos de trabalho, o Governo Federal aprovou Medidas Provisórias (MP) que alteram provisoriamente algumas leis trabalhistas, criando alternativas para que os empregadores mantenham seus quadros de funcionários. Contudo, as medidas não parecem cumprir a promessa de impedir que uma crise financeira se instalasse nos lares brasileiros sustentados pelo emprego formal.

Nos meses de março e abril, período em que começaram a ser implantadas as medidas de isolamento social no país, 1,5 milhão de trabalhadores foram demitidos. E muitos brasileiros, mesmo com seus empregos mantidos, tiveram seus salários cortados ou reduzidos diante das medidas provisórias que foram aprovadas. De acordo com dado divulgado pelo Ministério da Economia no dia 11 de maio, mais de 7 milhões tiveram seus salários e jornadas reduzidas e contratos suspensos. 

Com isso, muitas dúvidas surgem sobre a legalidade das decisões tomadas pelos patrões durante a pandemia da Covid-19. 

O que são as MPs 927 e 936?

A primeira das Medidas aprovadas, MP 927, em 22 de março, estabelece uma série de reajustes nas jornadas de trabalho e em alguns outros pontos. De todos os temas abordados pela MP, destacam-se a possibilidade de trabalho remoto (também chamados de teletrabalho ou home office); antecipação de férias individuais ou coletivas, antecipação de feriados e utilização de banco de horas. 

Em seguida, dia primeiro de abril, chega a MP 936, que autoriza redução de salário em 25%, 50% ou 70% por até três meses, proporcionalmente à redução jornada de trabalho; e suspensão e contrato de trabalho por até dois meses. Para ambos os casos, o trabalhador tem direito a solicitar o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, um benefício pago pelo governo federal e que varia conforme a redução salarial imposta.

Possíveis acordos

Suspensão de contrato (o trabalhador recebe o valor do seguro-desemprego que teria direito caso fosse demitido) Redução de jornada de trabalho e salário (o trabalhador recebe o valor do seguro-desemprego que teria direito caso fosse demitido)
Empresas com faturamento bruto superior a 4,8 milhões no ano de 2019 pagam 30% do valor e o governo federal paga os outros 70%
Caso o faturamento bruto seja inferior a 4,8 milhões no ano de 2019, o governo federal paga 100%
Redução de 25%: governo federal paga os 25% e a empresa paga os outros 75%
Redução de 50%: governo federal paga os 50% e a empresa paga os outros 50%
Redução de 70%: governo federal paga os 70% e a empresa paga os outros 30%

*O empregador tem 10 dias para informar o Ministério da Economia sobre o acordo. O governo federal tem 30 dias para pagar a primeira parcela a partir da celebração do acordo, desde que o empregador tenha devidamente informado o Ministério da Economia.

Direitos trabalhistas ameaçados

Embora as MPs tenham sido apresentadas como meios de proteção ao emprego formal, os trabalhadores terão seus direitos ameaçados. Todo reajuste de jornada, contrato e salário poderá ser feito individual ou coletivamente entre patrão e empregado, sem a mediação de sindicatos. A função dos sindicatos é proteger esses direitos e o bem-estar do trabalhador, impedindo que o empregador tome decisões que favoreçam somente ao seu lucro, não ao empregado.

De acordo com a Medida Provisória 937, o trabalhador fica sujeito, portanto, a abrir mão de suas férias, trabalhar durante feriados e fazer duas horas-extras por dia até pagar o banco de horas, quando as atividades voltarem ao normal.

Cerca de um mês após sua aprovação, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a Covid-19 como doença ocupacional, que se equipara a acidente de trabalho. O texto original previa que o trabalhador só poderia atestar contaminação no trabalho mediante comprovação. Vale ressaltar que o transporte público é um dos locais de maior risco de contágio.

Demissão durante a pandemia

Não há qualquer ponto das MPs que impeça os patrões de mandar embora seus funcionários durante o estado de calamidade pública, mas todos que forem dispensados sob regime de redução ou suspensão de jornada de trabalho não podem ser demitidos por justa causa durante esse período. O empregador deve manter a demissão sem justa causa pelo mesmo tempo depois de restabelecer a normalidade do contrato.  

O trabalhador que for mandado embora receberá suas indenizações proporcionais (aviso-prévio, salário dos dias trabalhados, 13º salário, férias acrescidas de um um terço de seu valor e férias vencidas, caso tenha) e 40% de seu saldo do FGTS.

Se a empresa fechar devido a falência causada pela pandemia, a pessoa demitida nesta condição mantém suas indenizações, mas recebe da empresa somente 20% do saldo do FGTS. Entretanto, a Caixa Econômica Federal divulgou nova versão do manual do FGTS em que, caso a empresa quebre por esse motivo, o empregado pode acessar integralmente seu benefício sem precisar apresentar certidão emitida pela Justiça do Trabalho, por meio do Aplicativo FGTS para celular.

Ainda que muitas flexibilizações tenham sido adotadas para manter os postos de trabalho e proteger as empresas, muitos empregadores estão ignorando as leis, deixando os funcionários desamparados.

“A grande adoção dos acordos [de redução de jornada e salário e suspensão de contratos] demonstra que essa á uma saída que é benéfica aos empregadores. E aqueles que optam pela demissão irregular dos funcionários não podem pautar tal escolha como única saída possível. Pelo contrário, é mais uma atitude irresponsável e descompromissada com os direitos trabalhista no país, e que merece ser repreendida”, disse Karen Custódio, advogada formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pós-graduanda em Direito Público na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

Esclarecendo algumas dúvidas

Karen Custódio possui canal de consultoria jurídica no Instagram e no Facebook, com uma proposta de interação jurídica, desmistificando e diminuindo as barreiras entre a população e o Direito. Confira as dúvidas em questões trabalhistas vividas durante a pandemia que ela esclareceu para alguns leitores do Maré de Notícias.

Maré de Notícias – André, morador da Rubens Vaz e atualmente morador de Niterói, e outros funcionários de uma rede hoteleira foram demitidos sem receber rescisão. Os funcionários tiveram que recorrer a ajuda jurídica particular e conseguiram valer seus direitos. Caso eles não tivessem como conseguir um advogado particular, o que poderiam fazer?

Karen Custódio – A justiça trabalhista brasileira permite que qualquer indivíduo possa ajuizar, ou seja, “dar entrada em um processo” trabalhista sem necessidade de constituir advogado. Durante a pandemia, o trabalhador por fazer isso por meio do site da Justiça do Trabalho. Após a normalização do serviço presencial, o indivíduo deve ir ao fórum ou vara de Justiça do Trabalho mais próximo e iniciar com a reclamação escrita ou oral (falada). Na forma escrita, ela será redigida pelo próprio trabalhador, e, posteriormente, entregue ao funcionário da vara de trabalho para seguir com os procedimentos. Já na forma verbal, caberá ao trabalhador narrar ao escrivão ou secretário da vara o ocorrido, devendo estes escreverem os fatos narrados, gerar duas vias do documento com data e assinatura do trabalhador.

MN – Elaine, moradora do Parque União, ficou quase 40 dias sem trabalhar a mando do patrão, sem qualquer explicação. Na semana passada ela foi demitida, mas ainda não recebeu nada, nem referente aos 40 dias que trabalhou, e a empresa pediu que ela aguardasse resposta. A empresa podia tê-la deixado sem trabalhar durante esses dias sem nenhuma explicação? Ela já deveria ter recebido durante esses dias que não trabalhou? O que ela deve fazer agora?

KC – Aquele empregador que impediu o exercício do trabalho sem ter realizado a suspensão do contrato de trabalho deveria ter notificado afastamento do trabalho ou férias, e tem obrigação de realizar o pagamento salarial do seu empregado. A empresa poderia, sim, ter deixado sem trabalhar, justificando o risco de contágio pela doença, assumindo que isso significa custear seu salário pelos dias que perduraram o impedimento ao trabalho. Diante da demissão, é preciso observar que a data de demissão a constar na carteira de trabalho tem que ser aquela em que a mesma foi comunicada da demissão, lhe sendo devida todas as verbas rescisórias cabíveis. O prazo para pagamento das verbas rescisórias, conforme art.477, §6º da CLT, é de 10 dias úteis após o fim do aviso prévio trabalhado – quando no mesmo que assina a rescisão, o empregado encerra as atividades laborais. Assim, constando correta a data de demissão da empregada, a mesma deve contar o prazo de 10 dias úteis para o recebimento das verbas rescisórias, incluindo os valores dos 40 dias trabalhados, com juros e correção monetária. Se por acaso, passado o prazo, o referido pagamento não tiver sido realizado, cabe à empregada acionar a justiça em busca de seus direitos trabalhistas.

MN – Como fica a questão do pagamento caso o empregador imponha férias coletivas?

KC – O empregador que optar por adotar férias coletivas aos seus empregados deve comunicá-los imediatamente e realizar pagamento antecipado com acréscimo do 1/3 constitucional, que é uma garantia constitucional que assegura o gozo de férias anuais com, pelo menos, um terço a mais do salário. A legislação prevê que o prazo entre a data da comunicação e a data de pagamento é de 30 dias. Porém, no atual cenário, esse prazo tem se flexibilizado e é possível ser estendido. O que também foi flexibilizado foi a data de pagamento do acréscimo do 1/3 constitucional, que em situação normal deve ser efetuado até dois dias antes do início das férias, e, atualmente, permite-se o pagamento do mesmo até 20 de dezembro de 2020. Quando o período de férias for inferior a 30 dias, o pagamento deve ser proporcional ao tempo de férias. Se o funcionário teve 10 dias de férias coletivas, receberá 1/3 do salário referente aos 10 dias e o restante do pagamento deverá ser pago quando o funcionário tirar os demais dias de suas férias, ou seja, os 20 dias restantes.

MN – Os sindicatos podem ajudar caso o trabalhador se sinta injustiçado? A qual(is) outros(s) órgão(s) ele pode recorrer durante esta pandemia?

KC – Os sindicatos possuem um papel de extrema importância na justiça do trabalho brasileira. A eles, no artigo 8º, III da Constituição Federal, foi legitimada a defesa dos interesses coletivos ou individuais dos trabalhadores, e, atualmente, a atuação dos sindicatos é mais que necessária para a tutela e defesa da saúde dos trabalhadores que representam. É poder e dever dos sindicatos mover ações coletivas para tutela da saúde dos trabalhadores que representa quando se encontrarem em situação de restrição de direito ou, por exemplo, em grau de desigualdade, quando diante de um acordo que fere direitos trabalhistas e constitucionais dos trabalhadores. Além dos Sindicatos e da Defensoria Pública da União – que presta assessoria jurídica gratuita -, os trabalhadores podem recorrer ao Ministério Público do Trabalho, que fornece serviços como busca de explicações sobre os direitos trabalhistas, espaço para denúncias de irregularidades trabalhistas como aquelas referentes às condições e meio de ambiente de trabalho, conduta antissindical, entre outras. Em tempos de pandemia, você não precisa sair de casa para ter acesso aos serviços do Ministério Público do Trabalho, podendo ter acesso ao seu canal “Fale com o MPT”.

Multas trabalhistas já somam quase um bilhão de reais

Uma pesquisa realizada pela plataforma de educação Finance Technology Education (Finted) e a empresa Datalawyer Insights aponta que valores de causas trabalhistas já ultrapassam R$899,28 milhões de reais (valor até 18/05/2020). O montante pode ser consultado na plataforma “Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho”, que atualiza em tempo real os dados de processos que citam “Covid-19”, “coronavírus” ou “pandemia”.

Para Karen Custódio, o aumento de ações trabalhistas é resultado de conflitos e confusões gerados pelas MPs 927 e 936 e as demissões em massa por patrões que desconsideram as regras trabalhistas ou que estão em falta com o pagamento salarial dos empregados, sem ter feito nenhum tipo de comunicação ou acordo. 

Ela aponta que os empregadores devem ser punidos: “Para esses casos, seria razoável adotar um sistema punitivo, no qual seriam aplicadas multas com o objetivo de frear essas condutas, que são danosas aos trabalhadores. Também [são danosas] à rapidez dos processos, contribuindo com o superaquecimento do Poder Judiciário, em um dos momentos mais conturbados da história contemporânea do país.”

Canais de suporte jurídico em questões trabalhistas

Esclarecimento de dúvidas sobre direitos e denúncia de irregularidades trabalhistas, más condições e conduta antissindical (Ministério Público do Trabalho): http://mpt.mp.br/pgt/fale-com-o-mpt

Atendimento via telefone pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro: disque 129

Atendimento on-line pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro: http://coronavirus.rj.def.br/

Contatos por e-mail e telefone da Justiça do Trabalho do Rio de Janeiro: http://www.trt1.jus.br/ultimas-noticias/-/asset_publisher/IpQvDk7pXBme/content/atendimento-das-unidades-judiciarias-e-administrativas-sera-feito-por-e-mail-ou-telefone/21078#p_p_id_101_INSTANCE_IpQvDk7pXBme_

Compartilhar notícia:

Inscreva-se

Mais notícias
Related

‘Rio de Encontros’ Podcast debate crise climática e qualidade do ar no Rio

O programa, apresentado pela jornalista Anabela Paiva, conta com a participação da geógrafa Renata Gracie, coordenadora do Observatório de Clima e Saúde da Fiocruz, e de Everton Pereira, geógrafo e coordenador de direitos urbanos e socioambientais da Redes da Maré.

Pré-matrícula para creches do município começa nesta terça, dia 10 de dezembro

A Redes da Maré também dará apoio às famílias das crianças durante o período de pré-matrícula das creches, dando início à 4ª edição da campanha Vamos pra escola.