Novo coronavírus afeta classes sociais de maneiras distintas

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Quarto boletim “De Olho no Corona!” destaca recortes de classe, raça e gênero para entender o impacto da Covid-19

Andressa Cabral Botelho

A pandemia tem deixado em evidência quais populações sempre foram negligenciadas por falta de investimento em saúde pública e outros serviços básicos, mostrando que o mesmo vírus pode agir de maneiras distintas diante a diversidade social do Brasil. “O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O problema é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo”, comentou Guilherme Benchimol, um dos fundadores da XP Investimentos, em um evento no início de maio, deixando explícita essa desigualdade. Enquanto as classes mais altas, que têm acesso a testagens e internações em hospitais particulares, vêem os casos diminuírem entre eles, a maior parte da população brasileira – e carioca – tem dificuldades em atendimentos nas unidades de saúde, segue sem ser testada e sem previsão de chegar ao pico de casos.  

É importante recordar que os primeiros casos registrados de coronavírus na cidade do Rio foram na Zona Sul da cidade, mais especificamente Copacabana e Leblon, recorrentes a pessoas que apresentaram sintomas após voltarem de viagem de países a pandemia já tinha começado. Foi a Zona Sul quem concentrou o maior número de pessoas contagiadas no primeiro mês da pandemia. Entretanto, o cenário em 27 de maio aponta que entre os 10 bairros com o maior número de infectados, três estão na Zona Sul, um na Zona Norte e seis deles estão localizados na Zona Oeste. Entre esses, quatro (Campo Grande, Bangu, Realengo e Santa Cruz) possuem renda por pessoa abaixo de R$800 e são justamente quatro dos cinco bairros da cidade com os índices mais letais, totalizando em 544 óbitos até a quarta-feira (27), de acordo com dados do Painel Rio Covid-19.

Cabe também relembrar que a Rocinha, vizinha aos bairros da Zona Sul e Barra, que também apresenta números significativos de contaminação, foi a primeira favela a apresentar casos de coronavírus, no início de abril, e segue sendo a favela do Rio com o maior número de infectados, 156, seguida da Maré, com 153, segundo dados do Painel Rio Covid-19 e Painel Covid-19 nas Favelas (Voz das Comunidades) de quarta, 27 de maio. Devido à subnotificação dos casos, estima-se que os números sejam de 12 a 15 vezes maior que o reportado pelas secretarias municipal e estadual de saúde. Segundo painel desenvolvido pelo Voz das Comunidades, até o dia 27 de maio, as favelas do Rio somavam 906 casos confirmados e 242 óbitos por coronavírus.

Além da dificuldade do acesso em saúde pública, fatores como problemas com saneamento básico e habitações pequenas, onde moram muitas pessoas e com pouca circulação de ar são fatores que influenciam que a doença cause um impacto maior em regiões populares, como as favelas e periferias. Valdineide Bernardo, moradora de Marcílio Dias, destacou que ela e sua filha tiveram sintomas da doença, mas não foram testadas na unidade de saúde. As duas moram com o pai de Valdineide em uma casa pequena e ela percebeu a dificuldade em manter o distanciamento social. “Eu estou sendo acompanhada, mas não estou tendo os cuidados necessários, nem a minha família, para combater esse vírus, já que ele e eu somos diabéticos”, observa.

A desigualdade da pandemia

Os impactos da Covid-19 se reproduz de forma desigual, tendo como um dos atravessamentos a desigualdade racial. Conforme aponta o quarto boletim “De Olho no Corona!”, a taxa de letalidade é maior entre pessoas reconhecidas como pretas e pardas pelo IBGE, população essa que mora, em maioria, em favelas e periferias. No conjunto de favelas da Maré, 86.364 pessoas (62,1% dos moradores) se reconhecem como negras e pardas, segundo o Censo Populacional da Maré. Ainda de acordo com o boletim, dos 390 casos suspeitos de pessoas infectadas por coronavírus, 269 são pessoas que se reconhecem como negras e pardas.

Quanto ao gênero, o boletim identificou que 66% dos casos acompanhados pela equipe social da Redes da Maré eram de mulheres que apresentaram sintomas. Entretanto, a taxa de letalidade entre homens é superior. Esse é um padrão que tem acontecido mundialmente, mas ainda não há pesquisas concluídas que justificam esse comportamento. Quanto à faixa etária, o vírus é mais letal conforme a idade aumenta. Dos 63 idosos identificados pelo boletim, 16 vieram a óbito. Entretanto, 58% dos infectados na Maré encontram-se na faixa etária de 30 a 59 anos, o equivalente a 199 casos. 

Junto aos pontos destacados anteriormente, o vírus tem alto impacto àqueles que têm baixa escolaridade. De acordo com pesquisa pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS), da PUC-Rio (CTC/PUC-Rio), os óbitos de pessoas com nível superior representavam 22,5% dos casos, enquanto os de pessoas com baixa escolaridade chegavam a 71,9% dos números. Esses dados podem apontar também que quanto maior o nível de escolaridade e a renda, maior o acesso e o conhecimento a serviços básicos de saúde.

Cruzando esses dados, a pesquisa do NOIS concluiu que pessoas negras e pardas com baixa escolaridade tem 3,8 vezes mais chance de vir a óbito que uma pessoa branca com nível superior. O núcleo analisou 30 mil casos de internação por Covid-19, observando o impacto da letalidade do vírus diante as desigualdades sociais do país. 

Para Carlos Gonçalves, 29 anos, que é morador, militante negro e educador popular da Maré, o principal legado que a pandemia deixa para esses espaços populares é o crescimento da pobreza. “Como vamos manter essas pessoas se alimentando? Ficar num país mais desigual sob um governo fascista me assusta. Eu que atuo com educação popular parto do pressuposto que estou ensinando para alguém que tem comida dentro de casa. Não dá para ensinar para quem está com fome”, afirma Carlos.

Na busca de encontrar soluções para as questões sociais e econômicas enfrentadas principalmente pela população mais vulnerável, o educador acredita na mobilização popular para um novo caminho nas decisões governamentais. “Espero que possamos colocar como horizonte principal o combate à desigualdade com a permanência de um auxílio digno às pessoas. Uma guinada desse lado, é um guinada no combate as estruturas racistas também, já que não tem como a gente falar de classe sem falar de raça”, conclui.

O impacto do vírus nos povos originários

Com menos destaque nos noticiários, os povos tradicionais – em destaque indígenas e quilombolas – também vem sofrendo o impacto da Covid-19. Os indígenas que vivem em contexto urbano, por exemplo, são contabilizados como pardos, o que dificulta ainda mais no levantamento dos dados. Diante esse cenário, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) organizou um comitê nacional e desenvolveu um boletim com os números de casos confirmados, mortes e povos indígenas atingidos pelo novo coronavírus. A motivação foi o desencontro de informações entre as lideranças indígenas e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que contabiliza apenas o número de casos de indígenas em aldeias e reservas. De acordo com o boletim, em 27 de maio constava que 75 povos foram afetados, resultando em 1.471 casos confirmados e 149 óbitos, número superior à de mortes de países vizinhos, como Uruguai (22), Guiana (11), Paraguai (11), Venezuela (10) Guiana Francesa (1) e Suriname (1).

Caso semelhante é o da população quilombola. A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) criou um comitê para contabilizar os casos de quilombolas com coronavírus. Entretanto, os dados da coordenação ainda podem apresentar defasagem, tendo em vista que nem todos os quilombos reconhecidos pela Conaq possuem estrutura básica para enviar diariamente essas informações. Além disso, as autoridades de saúde não identificam se os pacientes são moradores de quilombos, ajudando ainda mais na subnotificação dos casos dessa população. Até quarta-feira (27), a Conaq identificou 203 casos confirmados e 46 óbitos por Covid-19, sendo seis no estado do Rio de Janeiro.

Além da subnotificação, que é um problema que atinge toda a população brasileira, e o não acesso a serviços básicos de saúde, seja em área urbana ou rural, a não titulação territorial e o desmatamento também são fatores que podem aumentar o impacto do novo coronavírus nessas populações. De janeiro a abril, os alertas de desmatamento na região da Amazônia aumentaram 64% em comparação ao período temporal de 2019, maior índice em quatro anos. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) foram desmatados cerca de 1.865 campos de futebol em quatro meses. Isso significa também que quem está por trás desse processo não está respeitando as normas de distanciamento social e ainda pode ser um possível transmissor do novo coronavírus a povos indígenas e quilombolas.

Mesmo com esses dados, o posicionamento do Ministério do Meio Ambiente é aproveitar o momento da pandemia para aprovar leis que priorizem a exploração desses territórios. Dentre elas, está o Projeto de Lei 2633 (antiga MP 910), que tem como proposta mudar a regularização de terras públicas não demarcadas, incluindo as terras indígenas e quilombolas ainda não tituladas.

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