Meu Caminho Até a Escola

Data:

Três anos sem Marcus Vinícius da Silva

Maré de Notícias #125 – junho de 2021

Por Diego Jesus. Editado por Dani Moura.

A vida não termina quando morremos. Como humanos, temos a oportunidade, em algum momento, de ressignificar a morte de quem nos deixou. Isso acontece quando a perda pode ser sentida por meio das boas lembranças daqueles que se foram, dos quais recordamos com carinho, transformando o luto em força para prosseguir na dura caminhada de viver em um mundo cada vez mais carente de empatia e respeito. 

Mas imagine uma mãe que perde filho ou filha para a violência. Imagine uma mulher, mãe, favelada, que tem a sua semente no mundo assassinada pela polícia. Há milhares de mães e pais nesta mesma situação no Brasil. Em 2019, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública por meio do infográfico Violência e Desigualdade Racial no Brasil, 35.543 pessoas pretas e pardas morreram em decorrência de operações policiais no país. Dezenas de milhares de mulheres e homens que viram seus filhos serem vitimados pela atuação das polícias nas áreas empobrecidas das cidades brasileiras.

Imagine, agora, uma mãe que perdeu o filho de 14 anos a caminho da escola: mochila nas costas, um amigo ao lado, uma operação policial no caminho, helicópteros da Polícia Civil atirando para baixo enquanto carros blindados, popularmente conhecidos como “caveirões”, circulavam nas ruas… Quando uma criança inocente é vítima dos tiros disparados por policiais, como ressignificar a sua morte? A única possibilidade diante de tamanha injustiça é a transição ainda mais dolorosa do luto para a luta.

Marcus Vini?cius da Silva, morto durante operac?a?o policial na Mare? em 2018

O caminho até a escola 

Marcus Vinícius da Silva não chegou à sala de aula na manhã do dia 20 de junho de 2018. Ele, na companhia do seu melhor amigo, se dirigia à Escola Municipal Operário Vicente Mariano, localizada na Vila dos Pinheiros, uma das favelas que compõem a Maré. Enquanto caminhava numa rua perto de onde estudava, Marcus foi atingido por um tiro de fuzil. Alvejado, as últimas palavras ditas por ele a Bruna da Silva, sua mãe, foram: “Mãe, a polícia não viu que eu estava com roupa e material de escola?”

Ainda não foi possível fazer a pergunta de Marcus ao policial civil que atirou nele naquele dia: se o oficial viu ou não que o garoto vestia o uniforme da rede estadual de ensino e carregava, nas costas, uma mochila vermelha, onde levava o caderno com capa do Flamengo, o seu time do coração. Os três últimos anos da família de Marcus têm sido marcados pela falta dele e de respostas, resultado de um sistema jurídico ineficiente para quem nasce “sem berço” e vive nas ditas áreas violentas das cidades brasileiras. Estas são, na verdade, as áreas violentadas pelas omissões e decisões equivocadas dos governantes.

Quanto vale a vida de uma criança? Para o Estado brasileiro, a resposta a essa pergunta vai depender se a criança vive numa área empobrecida, da sua cor de pele, do acaso de encontrar a polícia em ação, armada e no seu bairro enquanto anda em direção à escola. Estes elementos indicarão, a partir do entendimento criminoso de atuação das polícias em favelas e periferias, se crianças com tais características deverão ou não ser tratadas como humanas. A garantia dos direitos fundamentais está reservada a uma parcela da população que não vive nesses lugares abandonados pelo poder público.

O projeto de segurança pública do Rio de Janeiro se sustenta, também, na lógica de que a morte dessas pessoas por agentes do Estado não mobiliza a opinião pública o suficiente para que a letalidade policial seja corrigida por políticas de inclusão eficazes para o desenvolvimento das favelas e periferias, o que geraria a diminuição das desigualdades e da violência.

Em meio ao ilegal cotidiano de operações policiais nas favelas e periferias, as escolas públicas encontram-se diretamente ameaçadas quando os tiroteios entre a polícia e os grupos civis armados determinam que, além de correr o risco de serem alvejados, os alunos têm negado o seu direito do acesso à educação. Os confrontos são parte do cotidiano e deixam marcas nos muros, nas salas de aula e na vida de quem está dentro da escola: Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos de idade, foi morta no interior da Escola Municipal Daniel Piza, em Acari, na Zona Norte do Rio, durante uma operação da Polícia Militar, em março de 2017.

Direito à Educação

Segundo os boletins Direito à Segurança Pública na Maré, produzidos pela Redes da Maré entre 2017 e 2020, nos últimos quatro anos as escolas localizadas nos territórios tiveram um total de 58 dias letivos cancelados por conta das operações policiais. Só em 2017, foram 35 dias sem aulas, o que correspondeu a 17% do calendário escolar daquele ano. Em 2020, ano de início da pandemia do novo coronavírus no Brasil, as escolas funcionaram apenas três dias em pouco mais de um mês letivo devido às operações policiais na Maré.

A pandemia da covid-19 implicou a paralisação das atividades escolares no Rio de Janeiro por tempo indeterminado, o que agravou ainda mais a situação dos estudantes da rede pública de ensino, levando crianças e jovens das favelas e periferias a ficarem sem aulas presenciais ou em modo remoto por mais de um ano. A ineficiência e o negacionismo dos governos federal, estadual e municipal no combate à pandemia prolongaram o fechamento das unidades escolares, evidenciando, durante a crise sanitária, problemas sociais históricos, como a exclusão digital e a insegurança alimentar das famílias, agravados pela diminuição da renda e a falta de acesso à merenda escolar.

Na democracia brasileira, a educação é um direito violado à queima-roupa. A impossibilidade de estar na escola por conta dos conflitos armados tem reflexos diretos na incidência dos altos índices de criminalidade em áreas empobrecidas das nossas metrópoles. Essa arquitetura da deseducação passa pelo impedimento da formação escolar dos moradores das áreas onde há a presença do tráfico de drogas, resultado do histórico abandono da população desses territórios por parte do Estado. As ações das polícias durante as operações têm resultado em penas de morte – sentenças sanguinárias baseadas na desastrosa política de “guerra às drogas”, que viola rotineiramente os direitos fundamentais dos moradores desses territórios.

Sonhos interrompidos

Não há como contar a história de Marcus, uma criança, pois foi tirado dele o direito de viver e da sua família, de tê-lo vivo. Mas é essencial falar sobre a luta de Bruna da Silva por justiça. A mãe de Marcus Vinícius ainda está buscando, desde a manhã do dia 20 de junho de 2018, uma resposta para a pergunta feita por ele em seus últimos momentos de vida; ela não sabe sequer o nome do policial responsável pela morte do filho. 

Bruna faz parte da equipe de tecedores da Redes da Maré e transforma a sua dor em luta, por Marcus e pelas outras crianças vítimas das ditas “balas perdidas”. Em 2020, 12 crianças foram mortas em decorrência de ações policiais no estado do Rio de Janeiro, mesmo com as restrições impostas pelas medidas de distanciamento social e a determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) de proibir, por meio da ADPF 635, operações policiais durante a pandemia. Entre 2007 e 2021, segundo informações da ONG Rio de Paz, 81 crianças de 0 a 14 anos morreram vítimas de “balas perdidas” – constantemente encontradas, não por acaso, nos corpos dos moradores das favelas e periferias do Rio de Janeiro.

Para mostrar a luta por justiça travada por Bruna da Silva, está em produção o documentário Meu Caminho Até a Escola, um longa-metragem realizado na Maré. O filme apresenta um ambiente escolar ameaçado pelos cotidianos conflitos armados que acontecem nos turnos das atividades nos colégios, e pretende discutir as consequências da violência no acesso à educação. O projeto é dirigido e roteirizado por mim, e conta com o apoio financeiro do Itaú Cultural por meio da convocatória Rumos Itaú Cultural 2019-2020. Meu Caminho Até a Escola é coproduzido pela Redes da Maré e tem previsão de lançamento no primeiro semestre de 2022.

Bruna da Silva e a filha Maria Vitória durante as filmagens do documentário Meu Caminho Até a Escola, dirigido por Diego Jesus

Sobre o autor:

Diretor e roteirista do filme Meu Caminho Até a Escola. É doutorando do programa Estudos Luso-Brasileiros da Cultura e da Mídia na Universidade do Texas em Austin (EUA). Na Maré, idealizou e coordenou o projeto Escola de Cinema Olhares da Maré (ECOM), desenvolvido pela Redes da Maré. Dirigiu o documentário Ocupação, que mostra a incursão das Forças Armadas na Maré em 2014.

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