Após perseguições e fakenews, Nízia Trindade também afirma que combate à desinformação agora é um programa prioritário no Ministério
Reportagem publicada originalmente no O #Colabora
“Eles têm um pênis na porta da Fiocruz. Todos os tapetes das portas são a figura do Che Guevara, as salas são figurinhas do ‘Lula livre’ e ‘Marielle vive’. É um órgão que tem um poder imenso, porque durante anos eles controlaram, através do movimento sanitarista, que foi todo construído pela esquerda, a saúde do Brasil…”
Essas palavras são da “Capitã Cloroquina”, a médica e política cearense Mayra Pinheiro, ex-secretária de Gestão do Trabalho e Educação do Ministério da Saúde (MS). Protagonista de campanhas nas redes sociais contra a vacinação de crianças, Mayra era apenas uma entre centenas de influenciadores bolsonaristas que, durante a pandemia, divulgaram fake news contra a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e sua então presidente, Nísia Trindade Lima. O presidente Jair Bolsonaro sempre repetia que iria “desesquerdizar” as instituições e gostava de citar o nome da Fiocruz como exemplo.
Nísia não só resistiu à guerra das fake news – com amplo apoio da comunidade científica brasileira e internacional – como liderou um esforço extraordinário de resistência (e ciência!) da Fiocruz para combater o coronavírus e salvar vidas na pandemia.
“Não é possível pensar em bem-estar sem abrir uma grande angular, para que nela possa caber um país com tantas desigualdades”
Nísia Trindade, Ministra da Saúde
Agora ministra da Saúde, a socióloga Nísia completou, neste janeiro de 2024, um ano à frente do cargo que é um dos mais espinhosos do governo Lula, que recebeu uma herança funesta deixada pelos dois últimos ocupantes da pasta, o general Eduardo Pazuello e o médico Marcelo Queiroga.
A atuação do MS durante a pandemia foi trágica. De acordo com o site de estatísticas Our World in Data, o Brasil terminou o ano de 2022 (último da gestão Bolsonaro) em 14º no ranking de mais de 200 países e regiões com as maiores taxas de mortes por covid-19 por 1 milhão de habitantes. Até 25 de dezembro de 2022, finalzinho do governo Bolsonaro, o número de mortos pela covid-19 era de 692.743 brasileiros. Outros 36 milhões, quase 17% da população brasileira, contraíram a doença – em termos globais, apenas 9% da população mundial pegou covid-19.
A tragédia pandêmica não ficou somente nas mortes. A transparência do Ministério diminuiu, estatísticas foram modificadas para esconder a realidade. Vacinas se estragaram em depósitos públicos. A propaganda e as mensagens de orientação para a população oscilaram entre a omissão e a confusão, beirando as raias da mentira com recomendações para o uso de cloroquina e ivermectina contra o vírus. O papel de liderança do MS junto a governos estaduais e prefeituras desapareceu – o Consórcio Nordeste, que integra todos os estados nordestinos, adotou medidas próprias no combate ao coronavírus, ignorando e criticando as recomendações ministeriais.
Somente nos primeiros dois anos de governo (2019 e 2020), Bolsonaro colocou mais 531 militares em cargos no MS, a maioria sem qualificação em saúde, elevando em 74% o total de servidores das Forças Armadas na pasta, segundo dados do Tribunal de Contas da União (TCU). Um estudo do Ipea, “Presença de militares em cargos e funções comissionados do Executivo Federal”, divulgado em maio de 2022, apontou que o total de efetivos das Forças Armadas em cargos comissionados de todos os ministérios cresceu 59% no governo Bolsonaro, enquanto o montante de militares em postos civis saltou 193%.
Em meio ao caos de gestão na pandemia no governo Bolsonaro, a Fiocruz, sob o comando de Nísia (que assumiu a presidência da Fundação em 2017), realizou dezenas de iniciativas importantes, tais como:
- Forneceu ao MS mais de 180 milhões de doses de vacinas e elevou a capacidade nacional de produção de kits de diagnóstico e processamento de resultados de testagens.
- Organizou ações emergenciais junto a populações vulneráveis.
- Ofereceu cursos virtuais para profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) no tratamento para pacientes de Covid-19 e ministrou treinamento em diagnóstico laboratorial para especialistas de Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai.
- Tornou-se laboratório de referência para a OMS em Covid-19 nas Américas.
- Coordenou o acordo entre Ministério da Saúde, Universidade de Oxford, AstraZeneca e as unidades de produção locais.
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), com mestrado em Ciência Política e doutorado em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj – atual Iesp), a carioca e capricorniana Nísia Trindade é servidora da Fiocruz desde 1987, pesquisadora de produtividade de nível superior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e sua obra acadêmica é referência na área de pensamento social brasileiro, história das ciências e saúde pública.
Esta entrevista, solicitada pelo #Colabora ao MS no final de novembro, só agora se concretizou, e mesmo assim de forma indireta, com o envio das perguntas à assessoria de imprensa, que providenciou as respostas junto à própria ministra. Isso se deve à superlotada agenda de Nísia como ministra, repleta de questões complicadas para resolver em pouco tempo, numa das pastas mais estratégicas tanto para o governo, quanto para o povo brasileiro.
A espera valeu. A ministra nos dá um balanço amplo das ações que seu Ministério empreendeu nesse primeiro ano, em sintonia com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU para a Saúde. Fala que a reconstrução e o fortalecimento do SUS é uma as suas prioridades e sinaliza o que podemos esperar até o fim de seu mandato – uma visão de saúde inclusiva:
“O que nós queremos fazer na gestão é o que chamamos de saúde para todos, e não qualquer saúde. Precisamos oferecer saúde de qualidade para todos.”
Nísia Trindade, Ministra da Saúde
Nísia enfatiza também que o combate à desinformação na Saúde – que a perseguiu na Fiocruz durante toda a pandemia – agora é um programa prioritário no Ministério. A seu jeito, diplomática e acadêmica, ela não fala em fake news, mas sim de “narrativas anticientíficas”. E o nome do programa que seu Ministério lançou é “Saúde com Ciência”, com o slogan: “Proteja sua saúde. Não compartilhe desinformação”. Confira aqui os principais trechos da entrevista.