Cria do Jardim Catarina, Eloá Rodrigues sofreu ataques racistas na página oficial do concurso
Por Leonardo Nogueira em 03/11/2020 às 17h
“A gente só vai conseguir viver em uma sociedade melhor quando as pessoas conseguirem naturalizar os nosso corpos e as nossas vivências”, destacou Eloá Rodrigues (27), a Miss Beleza Trans Brasil 2020, que foi consagrada com o título no dia 24 de outubro. Entretanto, em um país que tem em sua estrutura social e econômica o racismo como algo naturalizado, a ocupação de pessoas negras em espaços de poder acaba causando desconforto em pessoas preconceituosas. Após ser eleita, Eloá teve de lidar com uma série de comentários racistas na postagem do Instagram do concurso.
“Um top3 que nos representa! Travesti, Transexual, Preta, preparadas! Buscávamos o conjunto, a essência, uma miss completa. E encontramos”, destaca a publicação do perfil oficial do concurso. Na foto estão as três primeiras colocadas do concurso, que junto à Eloá foram Luna Ventura, representante de Minas Gerais, e Raquel Eshilley, representante do Pará. Entre os comentários, muitos criticaram a escolha e questionaram a beleza de Eloá, tecendo comentários racistas.
Além dos seguidores da página oficial, um dos comentários que mais chamou a atenção foi o de Mariane Cordon Cáceres, representante do estado do Mato Grosso do Sul no concurso. Em vídeo no seu perfil no dia seguinte ao concurso, ela demonstrou insatisfação com a coroação de Eloá. “Representei lindamente o Estado do Mato Grosso do Sul, peguei um ‘Top 5’, que era minha intenção, mas eu sei que, de acordo com a minha desenvoltura e o meu resultado, eu merecia ir muito além e não deveria ter perdido ‘para isso’”. Após a repercussão da publicação, a organização do evento foi notificada e Mariane perdeu o título de Miss pela colocação de cunho racista. Como resposta, a representante do Mato Grosso do Sul alegou que o que falou não foi referente à cor ou ao gênero de Eloá, mas ao seu desempenho, que julgou ser fraco.
Eloá Rodrigues disse não ter entrado em contato com a maioria dos comentários por não ter tido tempo de responder as mensagens que recebeu nas redes sociais. Para ela, nesse momento de alegria, ela prefere curtir a visibilidade para mostrar o quão necessário ainda é debater as pautas que ela defende. Mas a equipe de produção da Miss ficou atenta às redes e está cuidando para tomar as medidas judiciais cabíveis.
Comentários de cunho racista nas redes sociais têm sido frequentes em concursos de beleza. Em 2017, a piauiense Monalysa Alcântara foi escolhida Miss Brasil daquele ano e foi duramente atacada no Twitter, onde pessoas que acompanhavam o concurso alegaram que ela ganhou apenas por ter cabelo crespo ou por entrar no concurso por cotas. Monalysa foi a terceira mulher negra eleita Miss Brasil desde a primeira edição do concurso, em 1954.
Tanto no caso de Eloá quanto no de Monalysa, os comentários podem ser enquadrados como injúria racial, de acordo com o Código Penal Brasileiro. A lei diz que ofender a dignidade de outra pessoa devido a sua raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência é crime com pena de reclusão de um a três anos.
A população preta é a maior vítima de homicídios do país. No ano de 2017, mais de 70% das pessoas assassinadas no Brasil eram pretas ou pardas, segundo o Atlas da Violência, estudo produzido por pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Enquanto a taxa de homicídios para brancos diminui, a mesma taxa sobe constantemente para a população preta.
Sobre Eloá Rodrigues
Cria do bairro de Jardim Catarina, em São Gonçalo, Eloá foi campeã duas vezes consecutivas da competição estadual no Rio, nos anos de 2019 e 2020. Antes de ser miss, ela é uma mulher transgênero, ativista pelos direitos da população preta e LGBTQI+ e presidenta do Conselho LGBTQI+ de Niterói.
Ingressou na Universidade Federal Fluminense para cursar Ciências Sociais, em 2017, através do Prepara Nem – um pré-vestibular social para pessoas trans, travestis, em situação de vulnerabilidade social e preconceito de gênero. “O Prepara Nem foi o primeiro grande divisor de águas na minha vida, tendo em vista que lá a gente não se prepara só para entrar na universidade, mas também para a militância, para a vida, para a vida em comunidade. Em especial, em comunidades trans, travestis e LGBTI”, observou.
A próxima parada da Miss Beleza Trans Brasil 2020 será no continente asiático. Eloá irá representar o país no Miss Internacional Queen, que acontecerá na Tailândia. “Ser uma mulher preta e ter a possibilidade de ir para a Tailândia representar o meu país é de suma importância, tendo em vista que um dos meus maiores sonhos é ter a minha voz ouvida e a minha militância reconhecida”, comentou Eloá.
Uma minoria dentro de outra minoria
O cenário atual brasileiro não só coloca em risco as vidas da comunidade trans, mas de todos os grupos que não fazem parte da elite hegemônica brasileira. Nos oito primeiros meses de 2020, pelo menos 129 pessoas trans foram assassinadas no Brasil. Um aumento de 70% em relação aos mesmos meses do ano passado (2019). Até o mês de agosto, todas as pessoas trans assassinadas eram do gênero feminino, sejam travestis ou mulheres trans, tendo como tendência serem maioria pessoas negras. Os dados estão no último boletim da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), divulgado em setembro de 2020.
Eloá Rodrigues carrega em seu corpo a fala de uma mulher trans, preta e periférica e sabe da importância e responsabilidade do título. “Eu usar dos acessos que eu já tenho, do título de Miss, de articulações políticas que eu tenho, para conseguir naturalizar a nossa existência, para conseguir uma vivência melhor, não só para mim, mas para outras pessoas trans, é fundamental. Usar desse título para isso, é uma das minhas maiores funções e é o que eu estou empenhada em fazer.”, complementa.