Organizações não Governamentais (ONGs) tentam suprir carência por meio de projetos alternativos
Maré de Notícias #129 – outubro de 2021
Por Gracilene Firmino
Devido à pandemia de covid-19, consultas e tratamentos para outras doenças foram suspensos ou remarcados para um futuro distante – e isso vale tanto para exames de rotina e consultas preventivas ao acompanhamento de enfermidades graves, como câncer. Isso é o que tem acontecido com o atendimento ginecológico na Maré. Mulheres relatam que o que já era complicado, piorou na pandemia. Elas são maioria no conjunto de favelas da Zona Norte do Rio. Segundo o Censo Maré de 2019, as mulheres são quase 71 mil, enquanto os homens somam 68 mil. Por isso, coletivos e organizações civis tentam preencher essa lacuna na atenção à saúde feminina oferecendo alternativas para as mareenses.
Ter acesso a um especialista, como obstetra ou ginecologista, é um direito garantido por lei no Brasil, mas nem todas têm acesso a ele. Marcela Gomes, de 20 anos, fotógrafa e distribuidora do jornal Maré de Notícias, conta que jamais conseguiu atendimento ginecológico nas clínicas da família da região. “Todas as vezes em que tentei marcar uma consulta a resposta era a mesma: ‘Seu nome está na lista.’ Muitas mulheres contam o mesmo, que não conseguem ser atendidas por um ginecologista”, diz.
Sem atendimento, nem informação
Segundo Marcela, ver um clínico geral nas unidades de saúde da Maré já é difícil, e a situação piora quando se fala de especialidades como saúde da mulher. “O atendimento público especializado não existe aqui. Tive um problema ginecológico há alguns anos e precisei buscar ajuda na rede particular e gastar um dinheiro que minha mãe se desdobrou para arranjar. Fiquei seis meses sem menstruar, era um problema que poderia ser algo sério e não consegui o atendimento via Sistema Único de Saúde. Hoje em dia, se tivesse algum outro problema parecido, não poderia arcar com isso. E como ficaria?”, cobra.
Sobre o acesso a métodos contraceptivos, Marcela diz ter conhecimento de que eles existem e estão disponíveis nas clínicas, mas não todos e nem sempre. “Não conheço ninguém que já tenha realizado exames clínicos ou laboratoriais nas clínicas da família daqui. Também nunca tive essa oportunidade. Acesso a métodos contraceptivos, como preservativo, pílulas anticoncepcionais e injeções são mais fáceis de conseguir. Mas também nem sempre tem e como não existe um acompanhamento, muitas pessoas que conheço acabam se medicando por conta própria. Não tem assistência para as mulheres que estão iniciando seu período reprodutivo. O sistema de saúde para a mulher aqui é sucateado”, critica.
Organizações civis colaboram
Andreza Dionísio, assistente social e articuladora da Casa das Mulheres da Maré, conta que já esteve nos dois lados do atendimento e tenta entender a estrutura da saúde pública primária. “Enquanto usuária, tinha raiva quando não conseguia o atendimento. De fato, a consulta de rotina praticamente não existe nas unidades básicas de saúde. Mas, agora, trabalhando nesse meio, tento ressignificar essa assistência. O problema é estrutural e é mais complexo do que pensamos.” Andreza está à frente das ações relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos na Casa da Mulher e acompanha de perto essas demandas.
Já Júlia Leal, também assistente social e coordenadora da Casa das Mulheres, fala sobre a possibilidade de maior capacitação para que os médicos da família sejam capazes de acompanhar a saúde da mulher de forma mais aprofundada. “As mulheres não têm acesso a todos os métodos contraceptivos. Até porque nem todos os médicos são capacitados ?ar? colocar um dispositivo intrauterino (DIU), por exemplo.”
A Casa das Mulheres completa cinco anos de existência em outubro, mantendo-se fiel à sua gênese, com mulheres protagonistas em diversas lutas por direitos e melhorias. A entidade implementa um conjunto de projetos e ações, com metodologias inovadoras, para o enfrentamento da violência, inclusive obstétrica e ginecológica. A Casa promove duas ações principais com o intuito de fortalecer o acesso à saúde. “Não há médicos o suficiente nas clínicas da família. O acesso à saúde na Maré não está fácil. Além disso, a gestão municipal anterior sucateou as unidades básicas de saúde, promovendo um verdadeiro desmonte. Hoje, até onde temos conhecimento, todas as clínicas da família têm médico. Mesmo assim, ainda está ruim; existem muitos pontos a serem melhorados”, relata.
Outra questão abordada por Andreza e Júlia, que influenciou na piora do atendimento na saúde, foi a pandemia de covid-19. “As consultas ginecológicas não foram consideradas essenciais na pandemia, isso vem prejudicando a saúde como um todo e no longo prazo”, diz Júlia. Mas a Casa das Mulheres vem atuando para minimizar esses impactos. “Nosso instituto oferece uma palestra sobre saúde da mulher e quem assiste pode marcar uma consulta ginecológica com inserção de DIU. Também realizamos a capacitação de médicos das clínicas para realizarem esse procedimento. Além disso, contamos com uma parceria com a Coordenadoria Geral de Atenção Primária (CAP) 3.1, o que facilita essa interação”, conta a coordenadora da Casa das Mulheres.
Segundo Andreza, o problema central da saúde na Maré é a falta de profissionais. “Na primeira vez que oferecemos a palestra recebemos apenas 20 inscrições. Agora, o número de pessoas interessadas subiu para 600. O atendimento à mulher, que deveria ser básico, não existe”, resume.
Além da Casa das Mulheres, outros locais buscam melhores condições de saúde para a mulher mareense. Um deles é o Espaço Casulo, que promove acolhimento, fortalecimento e incentivo às práticas de autonomia, saúde, autogestão e coletividade com e para mulheres prioritariamente pretas e faveladas. Como prioridades, o projeto apoia a autoestima, o fortalecimento, a independência e a coletivização de saberes, com uma abordagem reflexiva sobre práticas cotidianas junto à comunidade. Suas atividades incluem: atendimento psicológico, roda de gestantes e de Ervaria e Fitoterapia.
Outro espaço no qual as mulheres podem buscar apoio é o Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa (CRMM-CR). O projeto integra o Núcleo de Estudos em Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Localizado na Vila do João, o CRMMCR tem como objetivos atender e oferecer acompanhamento psicossocial e jurídico, orientar nas desigualdades de gênero e fortalecer a cidadania das mulheres em situação de violência doméstica.
Prefeitura garante que há atendimento
Atualmente, sete clínicas da família atendem os territórios que compõem a Maré. A área de atuação de cada uma é determinada pela disposição das ruas. Levando em consideração uma divisão igualitária entre as clínicas e a quantidade de habitantes da Maré (cerca de 140 mil), teríamos 20 mil pessoas atendidas por unidade. Mas, em nota, a Secretaria Municipal de Saúde garante que as mulheres têm acesso ao atendimento especializado: “Elas podem acessar por dois caminhos: espontaneamente, quando for um caso mais urgente, e por meio do agendamento, após ser avaliada por um enfermeiro na própria clínica. Todas as unidades possuem médicos. São ao todo 22 profissionais de saúde atuando na Maré, entre 20 e 40 horas semanais, para atender a população”.
Segundo a Prefeitura, mesmo com a estrutura incompleta, a moradora da Maré conseguirá ser atendida e ter as informações e o acompanhamento de que precisa. “Apesar de haver vagas ainda em aberto para médicos na região, a equipe multiprofissional tem se esforçado muito para dar todo o suporte necessário aos usuários, com foco pautado na Estratégia de Saúde da Família.” Perguntada sobre o acesso a métodos contraceptivos, a secretaria disse que eles estão disponíveis “por meio das consultas e do planejamento familiar, que também pode ser feito individualmente em consultório. Nos últimos meses de julho, agosto e setembro, houve 28.947 atendimentos a mulheres em idade fértil nas unidades da Maré.”