Mostra Maré de Música une nomes consagrados a artistas periféricos, pondo a Maré no mapa dos melhores shows da cidade
Por Adriana Pavlova
Maio de 2019, Centro de Artes da Maré abarrotado de gente: Mart’nália entoa o hino à alegria “Canta, canta, minha gente” ao lado dos músicos do grupo Nova Raiz do Samba, enquanto centenas de pessoas explodem de felicidade repetindo em coro os versos “a vida vai melhorar”. Fevereiro de 2020, dezenas de músicos da Orquestra Voadora caminham em cortejo pelas ruas da Nova Holanda tocando e arrastando atrás um montão de crianças radiantes, que, horas depois, ainda dançam ao som da voz do cantor BNegão, no CAM. Junho de 2020, num respiro em meio à pandemia de covid-19, a cantora Céu canta e conta histórias no instagram da Redes da Maré. Junho de 2021, no palco do CAM, o canto arretado de Juliana Linhares ecoa ao lado dos Três Forrozeiros, lembrando que o sotaque nordestino é parte fundamental da paisagem sonora da Maré.
Quatro cenas, quatro flashes, quatro momentos pinçados da Mostra Maré de Música, projeto ambicioso que desde 2019 movimenta e consolida a cena musical na região, ao unir nomes consagrados da música brasileira a artistas independentes locais e de outras periferias. A lista de músicos que passaram pelo Centro de Artes da Maré em shows presenciais gratuitos (até fevereiro de 2020) e gravados (desde meados do ano passado, por conta da pandemia, disponíveis no canal de youtube da Redes) é longa e poderosa, comprovando que o projeto idealizado pela Redes da Maré já caiu no gosto do público e inseriu definitivamente a Maré no concorrido circuito de shows do Rio de Janeiro. Um palco que já teve, entre outros, Duda Beat, Teresa Cristina, Liniker, Larissa Luz, Rubel, Tico Santa Cruz, Tambores do Olokun, Amora Pêra, Chico Chico, Letrux, Lucas Hawkin, MC Marechal, Deize Tigrona, Afrofunk, Priscila Tossan, Yoùn, Joca, Zola Star e a banda Canto Cego.
Como se vê, é uma mostra que aposta em diferentes sonoridades, do trap ao samba, com produção de altíssima qualidade. Em tempos de trabalho escasso, sobretudo no meio das artes, a equipe emprega mais de 30 pessoas (a maioria cria da Maré), só nos bastidores, para dar conta das filmagens enquanto os shows não voltam a ter público ao vivo. Tudo levantado com o patrocínio fundamental do Natura Musical (2019) e do Itaú Cultural (2020 e 2021), além do apoio do Boca do Trombone na luz e no som.
Não por um acaso, há artistas que já se transformaram em parceiros assumidos, como a cantora paulistana Anelis Assumpção, que esteve no palco do CAM em 2019 ao lado da rapper e poeta Yas Werneck com participação do poeta e músico Rodrigo Maré. E na pandemia, fez uma live com o músico Curumim e presença, mais uma vez, de Rodrigo Maré.
“É sempre uma incógnita o que um artista independente, em processo de formação de público em outra cidade, vai encontrar. E o show na Maré foi um dos mais importantes na minha vida, um dos shows mais poderosos, no sentido da troca genuína, das pessoas que estavam ali para ver aquela apresentação”, lembra Anelis.
Nesses três anos de Mostra Maré de Música, muitas vezes os encontros até podiam parecer inusitados mas, no palco, revelaram uma grande química entre os artistas. Não foram poucos em que essa magia aconteceu, contagiando a plateia no Centro de Artes da Maré ou em casa. Misturas nascidas da cabeça antenada e incansável da produtora Geisa Lino, idealizadora, coordenadora e curadora do projeto, que em 2021 conta com a parceria de Bia Policicchio e Rodrigo Maré na curadoria. Personagem-chave da cena musical na Maré na última década, tendo coordenado shows históricos na Lona Cultural Herbert Vianna, Geisa afirma que um dos focos principais desde o início da mostra foi apostar numa produção caprichada, sem deixar nada a dever a outros palcos com mais investimento em outras áreas da cidade:“Como o artista recebe um cachê simbólico, a prioridade sempre foi oferecer um som impecável e, agora, uma filmagem de alta qualidade. É um show profissional que valoriza o trabalho dos convidados, permitindo conexões e encontros impensados, que garantem também mais visibilidade aos artistas periféricos”, diz Geisa, que destaca ainda que outro objetivo é valorizar a economia local. Nos shows de 2019, com a presença de público, foi feito um mapeamento de comerciantes da Maré para que pudessem vender produtos, comida e bebida, dentro e fora do Centro de Artes.
O impacto da mostra na economia da Maré é evidente e pode ser medido por quem está nos bastidores, como o fotógrafo Patrick Marinho, que opera uma das quatro câmeras responsáveis pelo registro dos shows e making of. Criado no Morro do Timbau e morando atualmente na Vila do Pinheiro, Patrick começou a frequentar em 2017 os shows no Centro de Artes que deram origem à Mostra Maré de Música. Diante de apresentações gratuitas de nomes do porte das cantoras Céu e Luedji Luna e de grupos como Metá Metá, ficou tão encantado que logo começou a registrar as apresentações para o seu portfólio. No passo seguinte, foi convidado pela produção para fotografar as apresentações e, recentemente, passou a integrar a equipe de comunicação da Redes. Foi o trabalho na mostra que manteve sua família nos piores momentos da pandemia.
“Com as diárias que comecei a ganhar nas filmagens, consegui dividir as despesas para o sustento da minha mãe, irmãs, avó e padrasto. Depois que fui contratado, passei a morar sozinho”, diz Patrick, que na adolescência foi aluno da Escola de Cinema Olhares da Maré (Ecom), outro projeto da Redes. “Os shows do Centro de Artes são um marco para a Maré. Ter show 0800 (de graça) na nossa comunidade igual aos que pagamos para entrar é algo inusitado.”
A mostra também deu novo impulso para músicos da Maré, como o pessoal do grupo Os Forrozeiros, liderados pelo tocador de triângulo José Afonso Aguiar, o Sabiá. Honrando a influência nordestina que faz parte da história da Maré, o grupo especializado em forró pé de serra é uma espécie de coringa do evento, apresentando-se com frequência no Centro de Artes da Maré, antes mesmo de a mostra se tornar oficialmente “Mostra Maré de Música”. Não é à toa que Sabiá chama Geisa Lino de madrinha dos Forrozeiros.
“O som sempre foi de qualidade, mesmo no começo, quando as apresentações ainda eram um pouco improvisadas. De edição em edição, toda a estrutura foi melhorando até ficar top. Tocar com artistas de fora como Amora Pêra e Chico Chico foi ótimo, mas ter a chance de um show gravado ao lado de Juliana Linhares chamou a atenção para o nosso trabalho. Recebemos elogios do pessoal que frequenta a feira de São Cristóvão e convite para tocar no teatro em Manguinhos”, diz Sabiá.
Além da produção requintada que envolve as edições gravadas apresentadas pela MC Martina, outro ponto de investimento é no marketing digital do evento. A página no instagram (@mostramaredemusica) oferece um belo passeio pelo histórico da mostra, apresentando cada artista e dando destaque a uma música gravada durante o show. Uma identidade digital que inclui o making of das apresentações, lançado como uma forma de esquenta, sempre antes de os vídeos dos shows irem para o youtube da Redes.
Sem dúvida, uma estrutura muito diferente dos primeiros shows com grandes nomes da cena musical carioca na Lona Cultural, por volta de 2014, quando as apresentações eram feitas em esquema de guerrilha, com pouco dinheiro e muita vontade. Passaram por lá artistas como Jards Macalé, Bnegão, Otto e Abaoyomi Afrobeat Orquestra, e também muitas bandas da periferia, que se apresentavam no Favela Rock, evento que marcou época na Maré.
Tudo isso serviu como balão de ensaio para o que viria depois, em 2017, quando Geisa Lino já estava à frente da coordenação do Centro de Artes da Maré. Começaram ali shows em parceria com a mostra de artes visuais Travessias, do Galpão Bela Maré, como os de Rico Dalasam e Ava Rocha. Neste cenário, em dezembro de 2017, aconteceu apresentação da cantora Céu, com “Catch a fire”, show emblemático, que abriria as portas para uma nova fase de espetáculos, pavimentando o caminho para o início da Mostra Maré de Música.
“Montamos um palco na frente ao CAM, Céu veio sem cachê, porque aproveitamos a vinda dela ao Circo Voador e o show daqui foi muito incrível”, lembra Geisa. Para o público que acompanha a mostra desde 2019, outro acerto é justamente as múltiplas sonoridades:
“Os shows agradam diferentes públicos porque os produtores são daqui e sabem que a marca da Maré é a diversidade: tem as tradicionais rodas de samba da Nova Holanda mas também a galera do rock da Baixa”, opina a professora Érika Batista, completando. “Um evento como a Mostra Maré de Música, feito por gente daqui, cria uma relação muito forte de pertencimento.”
PRÓXIMAS ATRAÇÕES
- 13/11 – Maíra Freitas e Késia Estacio
- 11/12 – Larinhx + Ciana, Ikinya e Ebony
MOSTRA MARÉ DE MÚSICA EM NÚMEROS
- Equipe nos bastidores: 31 pessoas (70% são moradores da Maré)
- Número de artistas envolvidos desde 2019: 120
- Oito shows ao vivo em 2019, com público de 3 mil pessoas
- Oito shows gravados e exibidos no youtube em 2021