“Nosso maior problema atualmente é não ter vacina pra todos”, diz José Cerbino Neto, titular da Fiocruz

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Por Luciana Bento, em 28/02/2021 ás 06h, editado por Edu Carvalho.

Há um ano, o Brasil registrava seu primeiro caso de contágio da covid-19. Passados 12 meses, contabilizamos mais de 250 mil mortes em decorrência do vírus e mais de 10 milhões de casos. Referência mundial para planos de imunização, demos lugar a outro título: o de pária sanitário. Sem plano e estratégia, atrasamos a possibilidade de vacinação, recusando propostas de compra das vacinas e deslegitimando esta que é a única saída para vencermos essa batalha. 

Em entrevista exclusiva para o Boletim Conexão Saúde – De Olho no Corona, o infectologista e pesquisador titular do Instituto Nacional de Infectologia da Fiocruz e do Instituto D’Or, José Cerbino Neto fala sobre os pontos cruciais do combate ao coronavírus no país, os critérios para as prioridades na vacinação e imunização dos moradores de favelas, além de defender a aquisição rápida de vacinas para toda a população.

“Nosso maior problema é a falta de vacinas. Tem muito mais gente querendo se vacinar do que gente com medo. À medida que as pessoas perceberem que a vacina é segura e que ninguém está virando jacaré, as dúvidas vão se dissipando”, avalia.

O Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19, em andamento no País, está compatível com o nosso histórico de vacinação?
José Cerbino Neto: Estamos vivendo uma situação em relação à Covid-19 bem diferente da que enfrentamos rotineiramente com a estratégia do Programa Nacional de Imunização (PNI), começando pelo fato de não termos vacina suficiente para vacinar todo mundo – o que é uma novidade em relação às nossas campanhas passadas.
Já executamos amplas campanhas de vacinação há muito tempo, temos uma larga experiência e um programa muito bem-sucedido em todos os aspectos (eficiência, equidade, adesão, alcance populacional). Temos que usar este conhecimento e estrutura a nosso favor, eles nos colocam em grande vantagem em relação a outros países.
Agora, no momento, a gente tem muitas incertezas: sobre as datas de disponibilização das doses, sobre quantas doses vão estar disponíveis, a proporção de cada vacina, qual delas vai estar disponível e em que momento.A gente está trabalhando com mais de uma vacina, que foram liberadas com autorização pra uso emergencial. Tudo isso é inédito.

Temos que reconhecer que existe uma série de desafios novos para o programa. Não é simples. Mas não podemos deixar de utilizar o que temos de vantagem – nossa expertise, nossa estrutura e nosso conhecimento – para enfrentar este desafio da melhor maneira. Temos boa posição do ponto de vista operacional mas aparentemente não estamos numa posição tão boa do ponto de vista estratégico, de aquisição de vacinas. Me parece que temos perdido tempo, há um nível de incerteza grande em relação à disponibilidade das vacinas para a população.

Partindo desta realidade, o que poderia ser feito para correr atrás do tempo perdido e acelerar a vacinação no Brasil, num movimento compatível com o desafio imposto pela pandemia?
José Cerbino Neto: Duas coisas ajudariam: a primeira é fazer todos os esforços para adquirir o maior número de vacinas o mais rápido possível. A gente precisa de mais vacinas, rapidamente. Precisa estar claro que esta é a prioridade e precisamos estar certos de que todos os esforços estão sendo direcionados neste sentido.
Outra coisa é que nosso programa de imunização sempre foi centralizado, principalmente do ponto de vista normativo. Nunca houve dúvidas por parte do município sobre como ele deveria utilizar aquela dose, em quem ele deveria aplicar, em que momento deveria ser esta aplicação. Neste momento, esta coordenação do programa poderia estar mais clara, com regras melhor colocadas.
As campanhas e os calendários sempre caminharam juntos em todas as cidades e estados. Esta coisa de cada cidade estar em uma faixa etária diferente, uma priorizando idosos, outra os profissionais de saúde, não ter uma clareza maior deste tipo de recomendação, é um problema.

Falando sobre prioridades, populações de territórios de favelas, por suas especificidades – como por exemplo, um alto índice de trabalhadores autônomos, que não podem ficar em casa – não deveriam estar entre os grupos prioritários para vacinação contra Covid-19?
José Cerbino Neto: A priorização já é uma contingência. Na verdade, a gente deveria ter vacina pra todo mundo. O ideal seria não precisar priorizar alguns grupos, como acontece normalmente nas campanhas de vacinação.
Realmente não é uma questão simples e nenhum país está fazendo isso com facilidade, mas no momento em que a gente precisa fazer estabelecer prioridades, quanto mais claras forem as regras, as orientações e os parâmetros pra isso, melhor.

Podemos levantar várias questões do ponto de vista teórico e epidemiológico questões que fariam sentido para alterar a ordem de prioridades que foi estabelecida. Existe, por exemplo, uma reivindicação para colocar os professores entre as prioridades, ou a população de rua, por conta de sua vulnerabilidade.
Ao mesmo tempo, estes profissionais que não estão parando, pessoas que não têm possibilidade de trabalhar em casa, que precisam pegar transporte público, ficam mais expostas até mesmo do que pessoas que estão nos grupos prioritários. Teoricamente haveria razões para elas serem vacinadas primeiro, mas do ponto de vista operacional fica muito difícil você identificar pontualmente estas pessoas fora de grandes grupos, como idosos e profissionais de saúde.


São desafios que estão sendo colocados e fazem com que as decisões possam não ser 100% justas. Agora, precisamos ter em mente que cada vez que a gente ‘’sobe’’ uma população, a gente “desce” outra. Se um grupo entra em prioridade, outro vai pro final da fila.
O programa tem o histórico de alcançar todo mundo, de ter equidade. Acho que se conseguirmos manter os parâmetros do programa, vamos ser bem-sucedidos e vacinar a população de favelas e periferias com agilidade também. De novo: temos que ter vacina para todos e usar nossa expertise histórica em vacinação. Porque quanto menor a distância de tempo entre os grupos prioritários, menor será o impacto. Se precisar esperar um mês para começar a vacinar o próximo grupo prioritário, complica muito.

Temos visto que a vacinação na Maré, por exemplo, está bem mais lenta do que em bairros da zona Sul e na Barra da Tijuca, locais mais ricos da cidade. Por que isso acontece?
José Cerbino Neto: A Prefeitura apresentou este dado e, embora seja inquietante, ele tem algumas explicações possíveis. Um componente forte é o alto número de profissionais de saúde vacinados até agora: eles tendem a se distribuir de forma desigual na cidade, em média são profissionais que estão mais nas zonas Sul e Norte.
E tem algumas diferenças mais sutis, como o número de idosos por bairro, mas é uma questão que precisaria ser melhor investigada. Mas o percentual de vacinados ainda é muito baixo e concentrado em grupos específicos, isso pode trazer distorções que com o tempo serão diluídas.

Qual o ponto que precisamos chegar na vacinação para que a contaminação desacelere e o número de óbitos caia?
José Cerbino Neto: Tem uma discussão sobre a imunidade de rebanho que, em minha opinião, ficou um pouco fora de contexto. Ela não se aplica em todas as doenças. Por exemplo, a gente não vacina pra Influenza ou pra Febre Amarela procurando imunidade de rebanho porque, pelas próprias características da doença, elas não se prestam a este tipo de fenômeno.
A imunidade de rebanho é um fenômeno que acontece e não uma estratégia de controle. Mas ela em algum momento começou a ser utilizada como se fosse uma estratégia a ser alcançada e isso não cabe.
No momento em que a gente tiver as pessoas do grupo de maior risco vacinadas – e os dados que temos até hoje da vacina mostram que a proteção é muito alta para formas graves da doença e óbito é muito alta – a gente vai ter muito menos pessoas sendo internadas, morrendo por Covid-19.
Isso tem se confirmado em países onde o índice de vacinação é mais alto, como Israel e Inglaterra. Isto já vai trazer a gente muito mais próximo do normal. Ainda vai ter gente se infectando, mas estes desfechos mais dramáticos vão ser menos frequentes.
Porque a gente convive com outras doenças infecciosas, como a Influenza e a Meningite, mas isso não impede que a sociedade funcione. No momento em que a gente conseguir minimizar os eventos mais graves, a gente já vai ter uma outra percepção coletiva, uma outra vibe na população.

E as pessoas que não querem se vacinar e estão entrando em uma narrativa de negação da vacina?
José Cerbino Neto: Os níveis de rejeição à vacina no Brasil, historicamente, são muito baixos, comparados a outros países. Todos os dados que temos de cobertura e pesquisas sobre resistência sobre vacinação mostram que, no geral, isso não é um problema.
A gente tem grupos isolados que podem fazer um barulho grande, mas a procura pela vacina contra a Covid-19 é enorme, muito mais gente quer ser vacinada. E eu acredito que a informação, campanhas educativas, são a grande saída para enfrentar esta questão. O nosso maior problema atualmente é ter vacina pra todo mundo que quer se vacinar.
À medida que a vacinação for caminhando, as vacinas forem se mostrando seguras e as pessoas verem que não estamos tendo nenhum grande evento adverso, que as pessoas estão ficando menos doentes, não tem ninguém virando jacaré, a resistência tende a diminuir.

Luciana Bento é jornalista e assessora de imprensa.

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