Descontinuidade do tratamento e a desigualdade social são determinantes para a letalidade da doença
Por João Gabriel Haddad* e Rebekah Tinoco*
Pela primeira vez em uma década a taxa de óbitos por tuberculose a cada 100 mil habitantes no estado do Rio de Janeiro aumentou, segundo o Boletim Epidemiológico da Tuberculose do Ministério da Saúde. No caso da Maré, especificamente, o médico de família Humberto Sauro, responsável técnico da Secretaria Municipal de Saúde que tem sob sua supervisão as 16 favelas, “o risco é semelhante e alto na totalidade do território; sempre maior para os mais pobres, com pior moradia ou sem nenhuma”.
Embora as mortes tenham diminuído de 2020 para 2021, os casos de tuberculose no conjunto de favelas da Maré subiram, indo de 216 em 2020 para 246 em 2021. Além disso, nos primeiros seis meses de 2022, 11 pessoas morreram por tuberculose na Maré, alcançando o número total registrado de óbitos durante o ano de 2020.
Letalidade maior
Pelos dados de 2021, o Rio de Janeiro é o segundo estado com maior incidência da doença, com 67,4 casos a cada 100 mil habitantes, atrás apenas do Amazonas, com 71,3. O aumento registrado não foi somente na taxa de mortalidade (ou seja, quantas pessoas a doença matou); a de letalidade (quantos morreram entre aqueles que adoeceram) também subiu. Isso significa que há mais chances de uma pessoa morrer ao ser contaminada pela bactéria causadora da tuberculose. Segundo o Ministério da Saúde, em 2019, a letalidade no Rio de Janeiro era de 6,58%; em 2021 a taxa subiu para 6,72%.
Quatro grupos são considerados de risco permanente: indígenas, privados de liberdade, pessoas com HIV/Aids e aquelas que vivem em situação de rua. A doença atinge em especial as regiões com menores índices de desenvolvimento socioeconômico, como explica a gerente de Doenças Pulmonares e Prevalentes da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro-SMS-Rio, Ana Paula Barbosa.
“A tuberculose é uma doença com grande determinação social, advém da pobreza e a perpetua, à medida que os grupos sociais mais atingidos são aqueles com maiores vulnerabilidades.”, diz ela.
Negros e pobres são mais atingidos
As condições das moradias estão intimamente ligadas à disseminação da doença. “Casas pequenas, com pouca ventilação e iluminação, e geralmente com grande número de pessoas em cada cômodo facilitam a transmissão e prevalência da doença”, diz Humberto Sauro, que também supervisiona os conjuntos de favelas do Alemão, Penha, Vigário Geral, Manguinhos, Jardim América e Cidade Alta.
As ações específicas para cada comunidade são de responsabilidade das unidades de atenção primária da região. Elas cuidam individualmente de fatores como a adesão ao tratamento, diagnóstico da tuberculose latente e fatores decorrentes do tratamento sob influência de drogas.
As populações preta e parda não compõem somente o percentual dos mais pobres do país: nelas estão mais de 69% dos novos casos confirmados de tuberculose em 2021. A proporção desse grupo entre os casos totais vem aumentando desde a realização do primeiro relatório do Ministério da Saúde, em 2012, quando o número era de 61,9%.
Percentual de casos novos de tuberculose pulmonar por raça/cor. Brasil, 2012 a 2021
Fonte: Boletim Epidemiológico da Tuberculose do Ministério da Saúde (2021)
Doença “esquecida”
Os especialistas alertam para uma queda artificial na taxa de incidência da tuberculose, identificada nos anos de 2020 e 2021. “Isso provavelmente aconteceu devido à redução do acesso aos serviços de saúde, por receio da própria população em relação à covid-19”, explica Ana Paula Barbosa. Sem a busca por atendimento nos centros de saúde, pode ter havido subnotificação de casos ou pior: aqueles em tratamento contra a tuberculose não voltaram para continuar o combate à doença.
Outros problemas decorrentes da pandemia de covid-19 podem ter afetado a identificação de doentes pela tuberculose, como o remanejo de profissionais da saúde e a redução do orçamento ou mesmo a interrupção de alguns serviços de saúde. A expectativa é que, com a diminuição dos casos e mortes associados à covid-19, os registros de tuberculose voltem a subir — é o que prevê a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (SES-RJ).
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Doença persistente
A tuberculose é uma doença infecciosa bacteriana, que acomete principalmente os pulmões. A enfermidade foi identificada em 1882 por Robert Koch, embora as evidências indiquem que ela estava em circulação entre a humanidade há cerca de dez mil anos. A transmissão acontece através do contato de pessoa a pessoa, a partir de gotículas expelidas pelo doente que contaminam outros indivíduos.
Fatores como má alimentação e higiene pessoal precária podem favorecer o estabelecimento da doença. A tosse é o principal sintoma da tuberculose, e por ser associado a outras doenças de tratamento simples, como a gripe ou o resfriado, muitas vezes é negligenciada pelo paciente.
Além da tosse persistente e seca no início da doença, outros sintomas indicativos da tuberculose são cansaço excessivo, febre durante o dia, suor abundante à noite e emagrecimento. O Ministério da Saúde recomenda que, persistindo esses sinais por mais de três semanas, a pessoa procure um centro de saúde para que seja investigada a possibilidade de ser tuberculose. Se o doente fizer parte de algum grupo de risco ou ter comorbidades a procura por ajuda médica deve ser feita antes desse prazo.
O tratamento da tuberculose exige o uso, por seis meses, de antibióticos e outros medicamentos, distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A persistência é essencial e, muitas vezes, até mesmo vital: muitos abandonam o tratamento quando os sintomas desaparecem por acharem que já estão saudáveis.
Segundo a SES-RJ, “essas interrupções geram aumento nos casos de resistência medicamentosa, o que dificulta ainda mais o tratamento do usuário e dos seus contatos que venham a ser contaminados, visto que há a transmissão de um bacilo já resistente a determinada medicação”. De acordo com o Ministério da Saúde, no estado do Rio de Janeiro, 14,8% dos pacientes abandonam o tratamento contra a tuberculose. A taxa é maior que a média brasileira, que é de 12,1%.
Como deter a doença
Segundo Ana Paula Barbosa, o combate à doença no município do Rio recebeu um reforço de R$19,5 milhões destinados a políticas de segurança alimentar para os pacientes em tratamento. A verba foi destinada à compra de vales-alimentação, além de ser empregada na mobilização de equipes da área de saúde, um fórum para os agentes comunitários e o lançamento da Cartilha de Tuberculose, além da atualização do atual Guia de Referência Rápida — Tuberculose.
A secretaria também inaugurou o Centro de Inteligência Epidemiológica buscando garantir transparência das informações sobre doenças. Uma das medidas do novo centro foi a publicação do Boletim Epidemiológico de Tuberculose.
(*) João Gabriel Haddad e Rebekah Tinoco são estudantes universitários vinculados ao projeto de extensão Laboratório Conexão UFRJ, uma parceria entre o Maré de Notícias e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)