Como um dos maiores conjuntos de favelas do Rio de Janeiro enfrentou crises e epidemias ao longo de sua história e agora encara a covid-19
Por Ana Clara Alves e Jonatas Magno em 09/10/2020 às 9h50
Desde a sua fundação, em 1940, a Maré atravessa crises de saúde. surtos e epidemias – e agora encara o calvário da pandemia do coronavírus. Historicamente esquecida por agentes públicos, governos e instituições, a população do conjunto de 16 favelas que se espalha pela Zona Norte carioca conta só com ela mesma na luta pelo bem estar. As muitas dificuldades das comunidades com problemas de habitação, saneamento e segurança são potencializadas em momentos como o atual.
Antes, vamos entender as crises de saúde, seus tamanhos e dimensões. Um surto acontece com o aumento repentino de casos de uma doença em região específica – como a meningite nos anos 1970. Epidemia se dá quando uma doença atinge grande número de indivíduos, sem imunização adequada, em uma região específica – a dengue e a aids são dois exemplos. Pandemia é o contágio em mais de dois continentes, aproximadamente ao mesmo tempo.
A covid-19 conta quase 35 milhões de casos e pouco mais de 1 milhão de mortes mundo afora (até dia 4 de outubro). O geógrafo Luiz Lourenço, formado na UERJ e professor de pré-vestibular comunitário na Maré, constata a dificuldade para se precaver do coronavírus. “Na favela, a gente tem capacidade para transformar o nosso espaço e evitar epidemias? Não, não tem. E aí a covid-19 bota isso em evidência. O adensamento das casas é muito forte em algumas áreas. Por exemplo, no P.U (Parque União) tem muita gente aglomerada em pouco espaço, e a infraestrutura não dá conta do saneamento, que é quase inexistente. Ao mesmo tempo, a arquitetura das casas não permite maior circulação de ar.”
A abertura gradual do comércio e o retorno de alguns setores levaram ao crescimento de número de casos na cidade. Com a alta demanda e pouca estrutura para tratamento e testagens, muitos casos são ignorados pelas autoridades de saúde – as subnotificações. Logo, o número de casos e óbitos deve ser ainda maior.
No início do ano, a Redes da Maré publicou nota comentando a situação precária de saúde carioca. O sistema havia sofrido desmonte devido a cortes nos recursos e as Clínicas de Saúde da Família, o Centro de Atendimento Psicossocial e as equipes de Consultório na Rua, àquela altura, não conseguiam garantir o atendimento. Muitos profissionais saíram pela falta de condições de trabalho, e seus postos não foram preenchidos. Os profissionais que ainda continuaram em serviço trabalhavam em escalas de greve. Além da precariedade, ainda lidavam com a ausência de itens básicos.
“Adoecem os moradores, sem conseguir atendimento, adoecem os trabalhadores da saúde por não conseguirem trabalhar e garantir seu futuro. Adoece toda uma comunidade que sofre com a falta de direitos básicos”. O texto da Redes da Maré combina com a pandemia. Segundo Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), a testagem em massa da população é uma das maneiras mais eficazes de evitar a proliferação do coronavírus. Todavia, segundo a 13ª edição do Boletim “De Olho no Corona!”, publicada dia 30 de julho, que auxilia no monitoramento dos casos suspeitos na Maré, os dados mostram que a cada dez pessoas sintomáticas, apenas três tiveram acesso à testagem. A escassez dos materiais necessários para a fabricação dos testes e a dificuldade em estabelecer uma cadeia logística eficiente são fatores que dificultam a testagem e afetam ainda mais as favelas.
O Painel Unificador Covid-19 nas Favelas do Rio de Janeiro, da organização Comunidades Catalisadoras (Comcat), apresenta dados de 25 comunidades, com objetivo de unificar dados produzidos por diferentes organizações que atuam nas favelas do Rio e da Região Metropolitana. Os números são mais elevados em comparação aos da Prefeitura. Dia 9 de outubro, de acordo com os números do painel criado pela Comcat, a Maré apresentava 1.667 casos e 126 mortes. Já a Prefeitura falava em 701 ocorrências e 123 óbitos.
Arboviroses (Dengue, Zika, Chikungunya e Febre Amarela)
Nas crises de saúde ao longo dos 80 anos de existência da Maré, mudam apenas a doença e sua intensidade. Desde o fim do século 19, quando surgiram os primeiros registros da dengue no Brasil, o mosquito Aedes aegypti tem sido um desafio para a saúde pública brasileira. Inicialmente, lidava-se com a epidemia de dengue e febre amarela. Mas agora, o mosquito apresenta desafios ainda maiores ao trazer outras duas doenças sérias – chikungunya e zika – que têm preocupado autoridades sanitárias de todo o país.
Na Maré, existe um projeto voltado para o enfrentamento das arboviroses, o Heróis contra Dengue (antigo Xô, Dengue) que fortalece ações de conscientização contra dengue, zika, chikungunya e febre amarela. Norbert Lehmann, membro fundador e presidente da Ireso (Instituto de Relações e Projetos Educacionais e Sociais Rio de Janeiro), um dos principais apoiadores do projeto, explica o que lhe motivou a criá-lo: “Comecei este projeto já em 2010, em uma escola católica na área portuária do Rio. O gatilho foi a morte da Janine, de 4 anos, na favela onde tratei crianças. A menina morreu de dengue hemorrágica na fila em frente ao hospital. Não esquecerei o lamento da mãe e dos outros familiares dela. O mais trágico sobre este caso é que, se a mãe tivesse conhecido os sintomas e o curso da doença, poderia ter reagido muito mais cedo. A morte da pequena Janine era evitável. Portanto, ficou claro para mim que a educação é a chave na luta contra esses arboviroses”. De volta à Alemanha, ele começou a desenvolver o projeto, hoje em quatro escolas públicas do Estado do Rio: duas em Maricá, uma em Teresópolis e uma na Maré.
Participante do projeto em 2016 e 2017, Lorena Froz disse que o trabalho de conscientização do governo e do projeto deu possibilidade das pessoas conhecerem mais sobre as arboviroses: “As pessoas entenderam os sintomas, como evitá-los, ganharam consciência sobre a doença. Mas não acho que tenha sido de uma hora para outra. O projeto é um multiplicador. Os jovens de 11 a 14 anos aprendem o necessário para poder transmitir o conhecimento na Maré, explica Lehmann.
Meningite
A meningite foi uma angústia no Brasil dos anos 1970. Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Carlos Fidelis Ponte explica que a doença é endêmica – quando a população consegue conviver com o mal. Em 1971, o país enfrentou uma epidemia da doença, por causa do êxodo rural, movimento que envolveu cerca de 20 milhões de pessoas, segundo o pesquisador. “Essas pessoas chegavam nos grandes centros e não eram recebidas como deveriam. Foram para zonas degradadas, terrenos baldios ou favelas”.
Para Ponte, deu-se aí a expansão dos cinturões de miséria que cercam os grandes centros brasileiros. O aglomerado de pessoas em situação precária favoreceu o contágio. A meningite surgiu em Santo Amaro, bairro da zona sul de São Paulo.
À época, o Brasil vivia uma ditadura que apostava na propaganda de país do futuro, que se desenvolvia velozmente. Logo, seria ruim que chegasse ao povo a informação de uma epidemia relacionada à miséria. A censura impediu que fossem tomadas as devidas precauções, o que contribuiu para a doença se espalhar, com grande índice de letalidade da doença.
A falta de informação atrelada a dificuldades territoriais impediam moradores da Maré de tratar das doenças. Isaías Francisco de Araújo, conhecido como Mascote, morador desde 1962 da Rua Praia de Inhaúma, no Morro do Timbau, recorda as dificuldades: “Ninguém tinha muito recurso. Médico muito longe. (…) Antigamente tinha o chazinho da vovó, que todo mundo acreditava muito. A maioria apelava para ele.”
A doença, no início restrita às crianças, passou a atingir adultos. A meningite, que antes só tinha do sorotipo C, passa para o sorotipo A, rápido e letal. Não havia estrutura para debelar a doença e, dentro das comunidades populares, as pessoas sequer sabiam como identificá-la. Por conta da vacinação, os números atuais de meningite são baixos – em torno de 2 casos para cada 100 mil habitantes por ano.
Por mais que as comunidades populares sejam mais propensas a propagação de doenças e surgimento de epidemias, elas continuam à margem na visão do Estado. Como nas outras crises, as formas mais efetivas de combate surgem em iniciativas internas, voluntárias, com os moradores como agentes ativos. O auxílio público não chega.
A desigualdade se mostra também na análise por raça. Para cada dez brancos que morrem vítimas da covid-19 no Brasil, são 14 óbitos de pretos e pardos, segundo a rede de TV CNN, que se baseou em base nos boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde divulgados até junho. A doença que realmente não tem cura, no Brasil, é a insensibilidade social.
Ou como ensina Bell Hooks, em “Vivendo de Amor”: “É a falta de amor que tem criado tantas dificuldades em nossas vidas, na garantia da nossa sobrevivência. Quando nos amamos, desejamos viver plenamente. Mas quando as pessoas falam sobre a vida das mulheres negras, raramente se preocupam em garantir mudanças na sociedade que nos permitam viver plenamente.”