Artistas da Maré criam podcast de ficção durante pandemia

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Peça sonora BECOS, criada por seis jovens artistas da Maré, é lançada durante a pandemia de covid-19

Por Thaís Cavalcante em 16/12/2020 às 12h
Editado por Edu Carvalho

Andar por um beco é conhecer o miolo da favela, é descobrir o que faz parte da imaginação de quem a construiu. Um convite do cotidiano a uma travessia afetiva, que faz conhecer de perto suas questões sociais. Conheça o podcast BECOS, uma história de ficção que imita a realidade, criada por seis jovens artistas da Maré, na cidade do Rio, durante a pandemia do coronavírus.

Os personagens de BECOS vivem encontros, alegrias, violências e outras vivências cotidianas que geram identificação de realidades. Não à toa, eles têm nomes, gostos e hábitos. As diferentes perspectivas dos artistas trouxeram ainda mais vida ao formato sonoro – que envolve e aproxima o ouvinte. No Conjunto de Favelas da Maré existem inúmeros artistas e no projeto é possível conhecer o trabalho intenso de alguns deles: Rodrigo Maré, Jonathan Panta, Matheus de Araujo, MC Martina, Thainá Iná e Thais Ayomide.

Thaina Iná, espirituartista, narradora audiovisual e cria do Parque União, conta que a produção durante a pandemia foi um acontecimento. “Ainda que não mencionemos isso na história, isso está no processo que foi a distância. A gente se conectava pela plataforma de vídeo Zoom. Foi a falta de proximidade que estimulou a gente”, diz. Completa, ainda, que a conexão existia principalmente pelas múltiplas experiências. “Tô falando de um lugar que eu vivo, mas não vou olhar para isso como um fator limitante. Foi um compromisso primeiro com a gente e depois com o que atravessa a gente. Por que a gente só fala da fome de comida? Existem outras fomes”. Para matar essa fome de arte, poesia e cultura os jovens se juntaram durante cinco meses e criaram quatro atos.

Ouça os quatro atos e acompanhe o programa BECOS no Spotify.

Matheus de Araújo foi um dos primeiros a experimentar possibilidades no projeto a partir da produção de vídeo-poema. Ele, estudante de Letras, escritor do zine A reza e do livro Maré Cheia, mora na Rubens Vaz e garante que a narrativa do BECOS foi uma maneira de apontar soluções, não problemas. “Quando se fala em favela, a dor sempre fica em primeiro plano. Nós estamos calejados, por isso deixar a violência sempre primeiro plano é negar também nossa diversidade e potência. Foram decodificações artísticas intensas, mas discutidas com mais facilidade porque o grupo já se conhecia”, conta.

A ideia inicial é que fosse realmente uma peça, mas não sonora. A pandemia mudou o rumo do projeto e uniu ainda mais a ideia de construir experimentos de escrita, vídeos e músicas. “A ideia da peça sonora surgiu depois do exercício de esquetes. A produção criativa foi um desafio e depois de se adaptar foi mais fácil produzir”, diz. A narrativa é tão envolvente que não é difícil acreditar que muita coisa narrada ali não é ficção, pois traduz, em detalhes, a realidade favelada.

Atualmente, o projeto tem a produção de vídeo-poema e seu podcast em todas as plataformas de streaming da internet. O desejo de Matheus é que o programa chegue não só nas plataformas de streaming, mas também em rádios comunitárias e seja divulgado em jornais locais, veículos que são como pontes diretas para que o conteúdo que veio de dentro, volte para dentro. Thaina Iná concorda com o colega: “Que o podcast chegue em vários lugares, mas principalmente no raio de 100 metros de casa. Foi uma provocação de como a gente consegue gerar interesse e fazer uma reflexão em cima do que a gente vive. Esse ponto de gerar o alcance é outro passo fundamental”.

Descubra como foi o processo de criação do grupo no meio da pandemia de covid-19.

BECOS é uma realização da organização de arte e justiça social People’s Palace Projects e da ONG Redes da Maré. Lideranças do projeto, como a diretora da Redes Eliana Sousa e Silva, a diretora de teatro do País de Gales, Catherine Paskell, e o diretor artístico do People’s Palace Projects, Paul Heritage, se juntaram com propósitos bem parecidos para a criação do projeto. “Tivemos a vontade de produzir conhecimento a partir do próprio território. Sendo ele não o objeto de estudo, mas o centro da produção”, diz Paul.

“Os encontros com esses jovens tão talentosos duraram cinco meses. Isso diz mais que saúde mental, é sobre bem-estar e a necessidade de criar durante a pandemia, apesar de tudo o que estava acontecendo. A gente fez uma imersão e teve que inventar uma maneira de criar junto. Vejo uma confiança deles na arte. Como falam, é a arte que salva”, conclui.

Assista ao trailer visual da peça sonora BECOS.

Pesquisa Construindo Pontes

O podcast BECOS foi o braço artístico da pesquisa Construindo Pontes, Atravessando Becos: Cultura e Saúde Mental, que pretendeu investigar o bem-estar e a saúde mental dos mareenses, população de vive em seu cotidiano experiências potentes e criativas, mas também de violência urbana e desigualdade social. O que mostra que a arte também é um instrumento de pesquisa. Durante os projetos realizados junto à Redes da Maré, todos tiveram um elemento artístico como forma de narrativa. Uma união de experimento de dados, pesquisa e narrativa. 

Para que o estudo fosse feito de forma mais completa, abrangeu as áreas da saúde, ciências sociais e cultura. Foram cercas de 1.400 entrevistas com moradores da Maré, dentre eles residentes e usuários de drogas da região. Também foram levantados os serviços de saúde e apoio social e cultural existentes.

Paul acredita que essa é uma pesquisa única sobre o impacto da saúde mental na população mareense e que pretende utilizá-la de três formas. A primeira, com a publicação dos dados acadêmicos em revistas que sejam validadas e dialogue com outros pesquisadores da área. A segunda é sobre o material trazer facilidade para a implantação de políticas públicas, pois investir em cultura na favela é como investir em saúde pública. A terceira é trazer o diálogo para toda a comunidade envolvida, percebendo qual o impacto gerado a partir das diferentes produções sobre o local.

Além do podcast já lançado, há também o projeto de fotografia A Maré de Casa, um ensaio que reuniu depoimentos em foto e texto de moradores durante a quarentena e o isolamento social. Para 2021, a expectativa é o lançamento de dois livros do cientista político Luiz Eduardo, um com artigos sobre a conclusão da pesquisa e outro com narrativas, a partir das vivências dos artistas locais que participaram ativamente do programa.

O projeto tem realização da People’s Palace Projects (Queen Mary University of London) e da Redes de Desenvolvimento da Maré com apoio do Arts and Humanities Research Council, Economic and Social Research Council e pelo Global Challenges Research Fund. 

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