Por Dentro do Saneamento Básico na Maré

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Jéssica Pires

Uma das principais recomendações da Organização Mundial da Saúde para prevenção do coronavírus é lavar sempre e bem as mãos. Mas tem sido um desafio tentar cumprir esta simples tarefa em meio ao descaso do saneamento das favelas. Em abril, mês que teve aumento no número de casos confirmados e suspeitos de Covid-19 na Maré, o acompanhamento “De Olho no Corona!” recebeu 11 denúncias de falta de água em diferentes favelas da Maré.  

O pouco investimento em saneamento afeta nossa saúde. Mas não só. “Os moradores podem acabar perdendo uma consulta médica, uma entrevista de emprego, aulas”, reforça o Breno Henrique, oceanógrafo, morador de Bento Ribeiro Dantas e coordenador do projeto Cocozap, sobre o quanto a estrutura de saneamento impacta, por exemplo, na mobilidade das pessoas. 

O Cocozap é uma iniciativa da organização Data_Labe, que atua na Maré e que recebe e sistematiza relatos sobre o saneamento básico do território, usando o WhatsApp. O objetivo do projeto é mobilizar moradores e mapear os desafios do cotidiano de desigualdades em termos de acesso a serviços públicos de saneamento para incidir em políticas públicas na área. Conheça mais no site do projeto. Em 2020, foram recebidas 42 queixas sobre os serviços de saneamento nas 16 favelas da Maré via Cocozap. A região que apresenta o maior número de problemas sinalizado pelos moradores é a Nova Holanda, terceira favela da Maré em número de habitantes, que concentra 42,9% de reclamações, de acordo com a equipe do projeto.

Já ouviu falar em ‘racismo ambiental’?

Mas por que algumas áreas de uma mesma cidade têm mais estrutura de saneamento do que outras? Para o líder negro Benjamin Franklin Chavis Jr, que lutou pelos direitos civis nos Estados Unidos, a resposta é o “racismo ambiental”. Segundo ele, racismo ambiental é “a discriminação racial no direcionamento deliberado de comunidades étnicas e minoritárias para exposição a locais e instalações de resíduos tóxicos e perigosos, juntamente com a exclusão sistemática de minorias na formulação, aplicação e remediação de políticas ambientais.” Em outras palavras: as condições que vivemos sobre o saneamento básico na Maré, por exemplo, é, segundo ele, um resultado de um processo de formulação de políticas que exclui o nosso território. Não é um acaso, é um projeto.

E um novo capítulo desta história está sendo escrito. Em 15 de julho, foi sancionada a reforma do marco legal do saneamento. Atualmente, os serviços de saneamento são prestados, em sua maioria, pelo setor público – como a Cedae, por exemplo. “É possível que a privatização dos serviços prejudique ainda mais a distribuição entre as regiões da cidade”, sinaliza a equipe do Boletim “De Olho no Corona!”. Na edição de número 16 do boletim, os pesquisadores reforçam que o marco legal esvazia o sentido do saneamento como um direito humano (aqui o boletim). O Data_Labe também produziu uma matéria muito importante pra gente entender mais sobre essa questão da privatização

Nossa memória e condições de saneamento na Maré

A favela mais antiga da Maré é o Morro do Timbau. Não é coincidência. Nos anos de 1940,  era uma das únicas áreas possíveis de ser habitada, já que a região era formada por arquipélagos. A segunda favela mais antiga é a Baixa do Sapateiro, ocupada originalmente por migrantes nordestinos que chegaram em busca de trabalho. A solução que encontraram foi a construção de palafitas sobre o lamaçal. Depois da Baixa, muitas outras palafitas foram surgindo no Parque Maré, Rubens Vaz e Parque União. O descarte dos dejetos nessas construções, levantadas por tocos de madeira, era feito nos próprios alagadiços. 

A garantia de água também foi um processo que contou com a participação de moradores. Muitos contam que precisavam atravessar a Av. Brasil com tonel para transportar água para a favela. As mulheres, inclusive, foram fundamentais nessa luta! No site do Maré de Notícias você encontra outras histórias interessantes sobre esse processo.

E, até hoje, as condições de saneamento da Maré refletem uma realidade de desigualdades do Brasil. Os Indicadores de Desenvolvimento Sustentável do IBGE apontam que, em 2015, 18,5 milhões de domicílios brasileiros (27%, de um total de 68 milhões) eram inadequados para moradia. No estado do Rio de Janeiro, eram quase 900 mil domicílios nessas condições. Para a pesquisa, um domicílio adequado precisa ter saneamento básico, rede de abastecimento de água, coleta de lixo e uma quantidade máxima de moradores por dormitório. Boa parte dessas habitações, definidas pela pesquisa como inadequadas, fazem parte da realidade de favelas e periferias.

De acordo com o Censo Maré, de 2013, dos cerca 47 mil domicílios estimados, 417 só têm acesso à rede de água na parte externa e 151 não têm acesso. 8.300 não usam filtro ou água mineral. Em outras palavras, boa parte dos moradores da Maré não consome água tratada. A situação mais crítica é na Nova Maré, onde um em quatro domicílios não usa filtro ou água mineral. “Coleta e tratamento de esgoto eu não sei nem por onde anda. Sei que sai da minha casa, passa por muito vazamentos, vai para o valão e depois pra baía mesmo tendo uma estação de tratamento gigantesca ao lado da maré (ETE Alegria). Sem contar o problema de alagamento, que mistura esgoto com água de drenagem, com lixo.” A fala da Ruth Osorio, moradora de 22 anos do Parque Maré, mostra um pouco do cenário do saneamento na Maré.

O lixo é outra questão importante. Do descarte à coleta. A segunda é realizada na porta de 71,5% dos domicílios. Mas como isso não acontece diariamente, a forma de jogar fora os resíduos também afeta a saúde da população. O descarte incorreto do lixo impacta diretamente na proliferação de muitas doenças, como a leptospirose, por exemplo. “O lixo ali é bem complicado. As lixeiras enchem muito rápido, os caminhões não passam todo dia. Acho que essa coleta tinha que ser todo dia”, diz Gimenez Coutinho, morador do Salsa e Merengue há 20 anos.

A estrutura do saneamento básico na Maré reflete uma situação comum a outras pautas no território: a falta de investimento do poder público em favelas e periferias. É importante que a gente continue cobrando por isso. Cada um fazendo a sua parte a gente só fortalece o legado dessa luta antiga aqui na Maré!

Direção de produção e conteúdo: Geisa Lino

Direção de Captação Audiovisual: Drika de Oliveira

Captação de imagens: Gabi Lino e Douglas Lopes

Edição: Drika de Oliveira 

Narração: Jéssica Pires

Reportagem e texto: Jéssica Pires

Revisão de texto: Jô Hallack e Andreia Blum 

Agradecimentos dessa edição: Breno Henrique, Carlos Marra, Julia Rossi, Ruth Osório, Paulo Ronaldo, Helena Edir e Atanásio Amorim (em memória).

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