Por que as favelas são mais atingidas pelas enchentes?

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Alagamentos desiguais na cidade: a culpa não é só sua, morador

Com Jéssica Pires e Lucas Feitoza

No fim do ano passado a Maré sofreu com mais de 20 dias sem abastecimento de água. Dessa vez a pauta também é sobre esse recurso fundamental, mas chamamos atenção para o quanto e principalmente o porquê a Maré e outras favelas sofreram com a chuva torrencial que acometeu toda a cidade do Rio de Janeiro no dia 7 de fevereiro. 

Em quatro horas, choveu na Zona Norte do Rio mais do que o volume esperado para todo o mês de fevereiro. As principais vias da cidade tiveram a circulação interrompida ou comprometida. Cinco pessoas morreram no estado do Rio de Janeiro devido às chuvas: duas na capital (entre elas uma criança), uma em São Gonçalo, uma em Niterói e uma em Saquarema.

As históricas e grandes enchentes na capital também tem relação com o relevo específico da região: está localizada entre as montanhas e o mar, um clima tropical úmido e tem a mata atlântica. Essas características tornam a região propícia a ter chuvas volumosas. 

Mas é fundamental destacar o quanto historicamente os impactos desses alagamentos ocorrem de maneira desigual em partes específicas dessas cidades. Uma das pessoas que perdeu a vida por conta das enchentes foi a menina Ayla Sophia, de 2 anos, em um desabamento no Morro Chácara do Céu, que fica no Alto da Boa Vista. As enchentes nas favelas Manguinhos e Jacarezinho, vizinhas da Maré, deixaram dezenas de famílias com muitas perdas materiais e casas completamente inundadas.  

A enchente para a Maré:

A dona de casa Gláucia Rosa, 37 anos, que mora na Vila do Pinheiro, na região conhecida como Obrinha, relatou o sufoco que passou com seus filhos: Yasmin de 18 anos e Celso Ysake de 12 anos (que é uma pessoa com deficiência e fez uma cirurgia no braço). Gláucia havia deixado o filho cortando o cabelo em um ponto da favela e com a chuva só conseguiram voltar para casa às 21h da noite.  “Eu tive que pegar a cadeira de banho da minha colega para poder buscar ele, mesmo ele falando comigo pelo telefone, eu sou mãe e só sosseguei quando ele estava aqui comigo, graças a Deus pessoas de bom coração me ajudaram”, conta. 

Glaucia desabafa que por conta das chuvas perde consultas do filho. Esse transtorno também é vivido por outras mulheres que fazem parte do Especiais da Maré, grupo de apoio a mães de pessoas com deficiência. Além da enchente, outro problema que a família enfrenta é a falta de acessibilidade nas ruas e os buracos que dificultam a locomoção com a cadeira de rodas. 

A administradora Ana Freire, de 26 anos, mora no Salsa e Merengue e conta que tinha chegado em casa quando começou a chuva e que teve crise de ansiedade com medo dos estragos que ela poderia causar. Ana relata que estava preocupada porque a rua estava com lixo acumulado a uma semana sem coleta seletiva. A moradora acredita que pelo crescimento da favela nos últimos anos o sistema de esgoto não tem dado conta e isso, associado ao lixo jogado na vala de esgoto, tem feito transbordar. A moradora reclama da falta de planejamento urbano e desabafa: “Antes eu não tinha medo de chuva, hoje em dia morro de medo, a gente sabe que a culpa não é da chuva, a favela não tem qualquer assistência. Qualquer chuva eu já fico em estado de alerta”.

Falta de planejamento urbano é a principal causa dos alagamentos 

O processo de desenvolvimento dos territórios modifica a natureza dos solos, incluindo o processo de infiltração pela impermeabilização, decorrente do uso e ocupação do solo por edificações, estradas, praças, ruas, etc. Um exemplo comum na Maré desse processo é o asfaltamento de ruas de paralelepípedos. 

Para a doutoranda em Geografia na PUC Rio e pesquisadora sobre saneamento e justiça ambiental na Maré, Julia Rossi, é fundamental entender que a culpa dos alagamentos não deve ser dada apenas ao descarte indevido do lixo por parte dos moradores: “porque na verdade existem bueiros que ficam entupidos e assoreados por causa do lixo, mas ao mesmo tempo você tem uma falta de manutenção nessa estrutura. A capacidade do esgoto não aumentou com o aumento da população da Maré”.  De acordo com a Carta de Saneamento da Maré elaborada pela Redes da Maré, DataLabe e Casa Fluminense, a Maré é um dos bairros que mais cresceu entre 1990 e 2000, ocupando a 9ª posição entre os bairros mais populosos da cidade. 

Ou seja, é de responsabilidade do Estado planejar, administrar e garantir a manutenção dos pontos (abastecimento de água potável, o esgotamento sanitário, a limpeza urbana e a drenagem e manejo de águas pluviais urbanas) que compõem o saneamento básico das cidades. A desobstrução e limpeza de bueiros, bocas de lobo e correlatos, por exemplo, é uma das demandas de responsabilidade do Estado disposta na Lei nº 14.026 de 15 de Julho de 2020 (Lei do Saneamento). Portanto, as cidades devem também possuir um sistema de drenagem das águas das chuvas que seja suficiente para não causar danos para a população.

A responsabilidade pública diante do saneamento básico também relaciona-se com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 6 e 11 – que visam, respectivamente, assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos, e tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.

É importante entender, que esses aspectos que estão dentro do conceito de saneamento básico devem funcionar de forma conectada, como uma cadeia. A coordenadora de projetos socioambientais do Eixo Direitos Urbanos e Socioambientais da Redes da Maré, Mariane Rodrigues, reforça:  “Sem o esgotamento sanitário adequado, a sua água fica contaminada. Então você não tem água potável. Sem a limpeza urbana, a drenagem das águas da chuva também não vai funcionar da forma correta”. Outro elemento que Mariane chama atenção é para a necessidade de manutenção e fiscalização dentro dessa cadeia de funcionamento efetivo do saneamento: “é um trabalho constante. Não adianta só instalar os bueiros ou bocas de lobo. Você tem que fazer a fiscalização preventiva. Não basta ter água encanada, ela precisa ser constantemente fiscalizada. A inteligência da cidade precisa olhar para infraestrutura, ver onde não está dando certo e fazer de fato a manutenção desses espaços. Olhar a infraestrutura e instalação desses pontos de drenagem”

Segundo Julia Rossi, o compartilhamento de informações e educação ambiental para a população também é responsabilidade do Estado. “Informar os moradores, criar todo um processo de entendimento do que fazer com esse lixo, com os resíduos, com esses encanamentos, o que é saneamento. A educação ambiental é uma responsabilidade do poder público”, reforça.

De acordo com o Censo Maré, 62,1% dos 140 mil moradores da Maré se autodeclaram negras ou pardas e desse total cerca de 70.878 habitantes da Maré são mulheres, em porcentagem esse número representa 51% da população, ou seja a maioria. Assim como às moradoras Ana e Gláucia, as mulheres, e também as pessoas pretas são as mais afetadas pelas enchentes. Destacar e evidenciar como essa parte da população é mais impactada por desequilíbrios ambientais faz parte do conceito “racismo ambiental”. Para a pesquisadora a reflexão também “é uma forma da gente trazer uma reparação para essas populações e pensar em medidas específicas para essas pessoas que são mais impactadas. 

O que fazer diante de uma enchente? 

Um dos principais reflexos do impacto dos alagamentos na cidade é percebido na mobilidade urbana. A circulação se torna um enorme desafio em dias de fortes chuvas na cidade. Então, uma das principais recomendações, é, para quem puder, evitar a circulação por segurança e para não sofrer com horas perdidas no trânsito. Em locais onde alagamentos e enchentes são comuns, a solidariedade e o apoio mútuo são fundamentais. Também se torna importante fazer registros sobre as situações nas quais sua rua ou região são colocadas em consequência das enchentes. 

ACP da Maré

Essa produção de evidências apoia a cobrança do Estado e também de empresas privadas que atendem a população, sobre a execução correta e efetiva dos serviços de saneamento. Um exemplo de mobilização que surge a partir dessa organização de informações é a ACP (Ação Civil Pública) do Saneamento Básico da Nova Holanda. Há 11 anos essa iniciativa busca soluções para os problemas de saneamento básico na  Nova Holanda. Ela surgiu a partir de uma denúncia anônima na ouvidoria do Ministério Público em 2012 e desde então uma investigação está sendo realizada. “Foi a iniciativa de uma pessoa que nos trouxe até aqui”, afirma a advogada Moniza Rizzini Ansari, que integra a área de incidência política da Redes da Maré e participou de um encontro sobre a ACP no dia 7 de fevereiro, no Centro de Artes da Maré. “Essa ACP mostra que o direito não é só uma conquista mas também precisa da mobilização para a manutenção dele, o desconhecimento faz com que você haja no ilegalismo” afirmou também Shyrlei Rosendo, coordenadora do Eixo Direitos Urbanos e Socioambientais da Redes da Maré.

A Maré começa aqui

Desde março de 2022 o eixo da Redes da Maré, que pensa em ações e projetos sobre questões ambientais no território, vem realizando intervenções artísticas com os mareenses, sobretudo crianças e adolescentes, chamando a atenção para o descarte de lixo, a falta de manutenção da rede de drenagem da água das chuvas, assim como para o racismo ambiental, como a recorrência de entupimento dos bueiros, demonstrando a ausência de políticas públicas, visando sensibilizar os moradores para o cuidado necessário as águas da Baía de Guanabara. As intervenções são feitas a partir das tampas dos bueiros, com desenhos e pinturas. 

Saneamento também é questão de saúde

Caso você tenha contato direto ou indireto com a água das enchentes procure lavar a região o mais rápido possível com água corrente e sabão. Caso tenha álcool disponível, também é recomendado passar, após a lavagem, na região. Se tiver algum tipo de ferida ou machucado exposto, o ideal é procurar uma avaliação médica. Caso tenha algum sintoma nos dias seguintes como dores de cabeça, diarréia, febre, procure uma unidade de saúde para atendimento. 

A Águas do Rio informou no dia das enchentes que equipes operacionais e agentes comerciais da concessionária atuaram no Conjunto de Favelas da Maré, além de outras comunidades, para prestar apoio aos moradores. A Prefeitura informou que equipes da Comlurb e da subprefeitura foram  mobilizadas para atuação não só na Maré, mas em todos os locais afetados, “realizando limpeza, dando suporte aos moradores e minimizando os impactos para as próximas chuvas”.

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