No mês em que a Ação Civil Pública comemora dois anos, Justiça suspende normas para operações na Maré e a possibilidade de mais violações assusta moradores
Jéssica Pires
As operações policiais que durante três dias levaram medo e morte à Maré no mês de junho descumpriram, claramente, as determinações judiciais da Ação Civil Pública, uma enorme conquista de moradores e organizações que atuam no bairro. Uma das determinações da ACP fala sobre o horário das operações, que devem acontecer no período diurno. No segundo dia de ação, a operação foi iniciada por volta da meia-noite. Nas operações, não foram identificadas a presença de ambulâncias. No último dia de ação pessoas foram feridas e poderiam ter sido socorridas caso essa determinação tivesse sido cumprida.
Houve também a morte de Sheila Machado de Oliveira, de 28 anos, atingida por tiros enquanto ia para o trabalho. Para a equipe do Eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré, essa morte poderia ter sido evitada, se a ACP estivesse sendo cumprida e a operação contasse com uma ambulância. De acordo com a equipe, mortes e pessoas feridas jamais podem ser consideradas e contabilizadas como efeitos colaterais das ações. “A gente precisa exigir que os órgãos e o sistema de Justiça cobrem do Governo do Estado o cumprimento de determinações que não proíbem a atuação da Polícia, mas, sim, fazem com que a Polícia repense sua maneira de atuar, de forma a preservar as vidas de quem mora na Maré”, acrescenta Lidiane Malanquini, coordenadora do Eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes.
Retrocesso
Após esses três dias de operação, a Justiça do Rio intimou o secretário de Estado da Polícia Militar, coronel Rogério Figueiredo de Lacerda, e o Comando de Operações Especiais da Corporação (COE), para prestarem esclarecimentos sobre a operação policial que resultou na morte de Sheila. Uma audiência na sede do Tribunal de Justiça marcada para o último dia 27 foi cancelada. A medida atendia a um pedido da Defensoria Pública do Estado e cobrava explicações sobre denúncias de violações dos direitos humanos durante a ação do dia 12.
Para nossa surpresa – e motivo de grande preocupação das organizações locais que lutam pela garantia de uma política de Segurança pública que preserve vidas, de moradores da Maré e de defensores de direitos humanos – uma decisão da juíza Regina Lucia Chuquer de Almeida Costa Castro, da 6ª Vara de Fazenda Pública da Capital, suspendeu a liminar que tornava vigentes as determinações da Ação Civil Pública da Maré no dia 19 de junho. Isso quer dizer que todas as normativas da Ação Civil Pública da Maré podem ser anuladas, aumentando a possibilidade de violações de direitos nas operações policiais da Maré.
Em seu despacho, a juíza escreveu: “Alguns podem concordar que a técnica escolhida seja a melhor, outros podem dela discordar. Entretanto, o que a Constituição da República não permite é a ingerência de um dos Poderes na competência atribuída a outro, equivalente à proibição de alteração de políticas públicas escolhidas pelo chefe do Executivo”. De acordo com a juíza, os conhecimentos técnicos que traçam a política de Segurança praticada na Maré e demais espaços da cidade só podem ser fiscalizados pelo Ministério Público e não é função do Poder Judiciário intervir. A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Redes da Maré e outras organizações locais irão recorrer da decisão.
A luta continua
As favelas da Maré são marcadas por uma trajetória de mobilização popular que inventa e reinventa os espaços e as dinâmicas do território. A garantia de direitos também passa por esse processo. O Maré de Notícias já contou histórias de pessoas e movimentos que lutaram pela garantia do acesso à água, à educação, à cultura, à saúde e a outros recursos. A disputa pelo direito a uma política de Segurança pública que preserve vidas também segue essa lógica. E os moradores da Maré não vão desistir.
O aumento dos episódios de violações de direitos fundamentais durante as operações policiais na Maré, que vão da violência psicológica ao assassinato, motivou uma mobilização popular para discussão e encaminhamentos sobre a política de Segurança pública do território e estratégias de redução de danos. Em 2017, o Fórum Basta de Violência Outra Maré é Possível, já abordado no Maré de Notícias (inclusive na Edição 99), colheu ideias de moradores para sistematizar um Plano de Redução de Danos às Violências na Maré. Era o embrião da ACP.
Mas o que é uma Ação Civil Pública?
A Ação Civil Pública é um instrumento jurídico que representa e manifesta um ou mais direitos coletivos e parte da mobilização de uma quantidade significativa de pessoas que têm problemas parecidos e que precisam assegurar direitos previstos na nossa Constituição. Então, em vez de cada cidadão abrir um processo individualmente, são colhidas informações e provas que denunciam um padrão de violação e que resultam em medidas obrigatórias que precisam ser seguidas para a garantia do bem comum. A ACP busca reprimir ou prevenir, entre outras coisas, danos ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio público, aos bens e direitos de valor artístico, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos e religiosos, podendo estabelecer multa ou obrigando a cumprir determinados tipos de ações. Uma ACP pode apresentar decisões nos níveis municipal, estadual e/ou federal.
“Apenas com a execução de uma política pública de Segurança cidadã, que não trata o território da favela como local de exceção, é que será possível garantir os direitos fundamentais e o direito à cidade com serviços essenciais à população do Rio de Janeiro que mora nas favelas”, afirma Maria Júlia, defensora pública há 18 anos e coordenadora do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública. O Plano foi desenvolvido com propostas de 287 moradores, colhidas nas redes sociais e nas ruas. A pergunta que orientou a consulta pública foi “O que o Estado pode fazer para diminuir as violências na Maré?” e resultou em 20 ações que se organizam a partir de cinco metas prioritárias a serem cumpridas pelo Estado. Esse Plano orientou a produção da Ação Civil Pública da Maré, pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. É importante ressaltar que a Maré é o único conjunto de favelas que tem uma Ação Civil Pública.
O fato é que sem a mobilização de organizações e moradores da Maré, a Ação Civil Pública não existiria. “Na verdade, a prestação de contas e o controle da atividade policial deveriam ser algo normal em qualquer democracia, mas não é por aqui. Desde então, uma das pautas principais do Fórum Basta de Violência tem sido a ACP. Nos mobilizamos para que suas decisões sejam cumpridas e para que moradores e trabalhadores da Maré saibam dos seus direitos”, comenta Lola Werneck, coordenadora de liderança juvenil da organização Luta Pela Paz. Desmontar a ACP não é só contrariar o desejo de moradores e organizações que lutam pelo direito à vida no território. É expor, ainda mais, 140 mil pessoas à morte, à violência física e psicológica e à lógica perversa que classifica a perda de homens, mulheres e crianças faveladas como simples “danos colaterais”.
Junho de 2013, junho de 2016, junho de 2018 e junho de 2019
O mês de junho, tragicamente, tem um histórico de operações marcadas por muitas mortes e violações de direitos na Maré. Junho de 2013 ficou marcado como o “mês da chacina”. Foram 10 mortes durante uma operação do Batalhão de Operações Especiais (Bope). A motivação da operação foi um assalto que aconteceu na Avenida Brasil e a morte de um policial que entrou na Maré em decorrência do assalto. A Maré viveu uma madrugada sangrenta, com ações truculentas dos homens do Bope em diversos pontos da favela. A operação teve uma grande repercussão nas mídias sociais e imprensa, e mobilizou moradores e organizações da sociedade civil a se manifestarem.
Em 2016, a ação do dia 29 de junho também foi um marco: a intervenção violenta dos homens da Polícia aconteceu em locais próximos às escolas na Maré. A Redes da Maré abrigou mais de 200 pessoas durante a operação. Organizações locais e presidentes de Associações de Moradores se uniram para denunciar as violações desta operação no Plantão Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ). O resultado foi o fim imediato da operação e a proibição da realização de operações policiais na Maré durante a noite. O Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) da Defensoria Pública do Rio iniciou, então, a produção de uma ação maior.
Em 2017, entrava em vigor a Ação Civil Pública da Maré, que determinava que a Secretaria de Estado de Segurança apresentasse um plano de redução de riscos e danos para se evitar violações de direitos humanos durante operações policiais no Complexo da Maré. Se as determinações da ACP fossem cumpridas, talvez a Maré não teria perdido o jovem Marcus Vinícius, em junho de 2018.
O mês de junho de 2019 não foi diferente. A Maré viveu três dias de terror e medo nos últimos dias 10, 11 e 12. Os três dias de operação contaram com a forte presença armada de policiais do Comando de Operações Especiais da Polícia Militar (COE), do Batalhão de Operações Especiais (Bope), do Batalhão de Choque (BPChq), do Batalhão de Ações com Cães (BAC) e do Grupamento Aeromóvel (GAM). Foram relatadas inúmeras violações de direitos nas favelas Conjunto Esperança, Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Pinheiro e Salsa & Merengue, Parque União, Rubens Vaz, Nova Holanda e Parque Maré; e o resultado fúnebre: três pessoas feridas e uma mulher morta. Sem falar nas unidades de saúde e das escolas, cujos atendimentos foram interrompidos.
A ACP da Maré estabeleceu que:
• a Secretaria de Segurança do Estado definisse um plano de redução de danos para o enfrentamento das violações de direitos humanos na Maré;
• fossem instaladas câmeras de vídeo e de áudio e implantado o sistema de localização por satélite (GPS) nas viaturas;
• uma ambulância ficasse de plantão na Maré nos dias de operação;
• mandados de busca e apreensão só devem ser cumpridos no período diurno;
• fosse feita fiscalização da atuação dos policiais durante as operações, em tempo real, por meio do monitoramento das câmeras nas viaturas.
Apesar das determinações da ACP nem sempre serem cumpridas, de 2017 para 2018 o número de operações policiais e mortes diminuíram na Maré:
Operações (2017) 41 x 16 (2018)
Confrontos armados (2017) 41 x 27 (2018)
Mortos (2017) 42 x 24 (2018)
Dias sem aula (2017) 35 x 10 (2018)
Dias de fechamento dos postos de saúde (2017) 45 x 11 (2018)