Publicação de cartas de crianças moradoras da Maré completam dois anos

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Continuidade da violência e pandemia afetam crianças e adolescentes

Por Gracilene Firmino, em 14/10/2021 às 07h.

Em agosto de 2019, a Redes da Maré reuniu e entregou à Justiça mais de 1.500 cartas e desenhos de crianças do conjunto de favelas, pedindo paz e respeito. O material estava acompanhado de uma petição pedindo para que fosse restabelecida uma Ação Civil Pública que regula e restringe as operações policiais na Maré. O pedido, aceito pela Justiça em 2017, ajudou a diminuir todos os índices de violência ao longo de um ano, mas acabou suspensa em junho de 2019. Diante do apelo dos moradores, a ação foi revalidada, restabelecendo parâmetros mínimos para as ações, como a exigência da presença de uma ambulância e o veto a operações durante o horário de entrada e saída de alunos das escolas. Dois anos depois da ação Cartas da Maré, as crianças mudaram mas as violações de direitos não.

De lá para cá, outro grande acontecimento alterou completamente o cotidiano não apenas do favelado mas de pessoas do mundo inteiro: a pandemia de covid-19. Em junho de 2020, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, determinou a proibição de operações policiais em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia causada pelo coronavírus. Segundo Fachin, as ações só podem acontecer em hipóteses consideradas excepcionais e devem ser justificadas por escrito pela autoridade competente. Determinação que não vem efetivamente sendo cumprida. Segundo o Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, que traz dados sobre as dinâmicas de violência no território no primeiro semestre de 2021, ocorreram sete operações policiais nesse período. Essas ações provocaram oito mortes e sete dias sem atendimento médico nas unidades de saúde.

Uma das cartas entregue à Justiça pela Redes da Maré.

Violência segue afetando jovens moradores da Maré

Algumas das crianças que escreveram cartas na ação, hoje, são adolescentes. Essa faixa etária é amplamente afetada pela violência. Segundo levantamento feito pelo Instituto Fogo Cruzado, três adolescentes foram baleados por mês em 2021, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Os números, colhidos no período entre 1° de janeiro e 21 de setembro, mostram que 30 jovens foram vítimas de arma de fogo no Grande Rio este ano. Desses, 10 morreram. Alessandra Larissa de Campos, de 17 anos, Joycy Dayana de Campos, de15 anos, e Agatha Mirian de Campos, de 12 participaram do “Cartas da Maré” e assim como na infância, ainda se sentem inseguras agora na adolescência.

“Elas estão bem. Mas em relação à segurança, não mudou muito desde que elas escreveram as cartas. Agora elas já estão adolescentes e, por causa da pandemia, ficam mais em casa. Ficam apavoradas quando tem tiroteio, nada mudou. Elas acreditam que tem que mudar muita coisa ainda, sobre a questão da violência. Estão sem aulas, isoladas e vivendo em uma situação que pode trazer risco a vida delas”, conta Wanir Campos, responsável pelas adolescentes.

Crianças em 2018 em frente ao Tribunal de Justiça do Rio.

Saúde mental abalada

“Um dia eu estava no pátio da escola fazendo educação física. De repente, o helicóptero passou dando tiro para baixo. Aí, todo mundo correu para o canto da arquibancada. Quando passou o tiro, a gente correu para dentro da escola até minha mãe me buscar. Quando deu mais tiro, eu estava em casa”. “O ruim das operações nas favelas é que não dá para brincar muito. E também morrem moradores nas comunidades. Também têm muita violência”. “Eu não gosto do helicóptero porque ele atira para baixo e as pessoas morrem”. Essas são apenas algumas das frases escritas pelas crianças em 2019 na ação “Cartas da Maré”. Na época a situação no conjunto de favelas era alarmante.

Em boletim semestral publicado naquele ano, a Redes da Maré mostrou que 27 pessoas morreram apenas no primeiro semestre de 2019, 10% a mais que ao longo de todo o ano de 2018, quando 24 pessoas foram mortas. Além disso, 15 pessoas faleceram durante as 21 operações policiais ocorridas no primeiro semestre. As outras 12 morreram durante os 10 confrontos entre facções da região. O mesmo boletim também informou que, ao longo do primeiro semestre daquele ano, as escolas e os postos de saúde tiveram 10 dias de atividades suspensas por causa de tiroteios. O número foi o mesmo em 2018. Já em 2017, antes da Ação Civil Pública, as crianças ficaram sem aula durante 35 dias e os postos de saúde somaram 45 dias fechados.Em 2017, 41 operações policiais foram realizadas.

Yasmin Holmer, de nove anos, fala do que mais sente falta por estar em meio a pandemia de covid-19 e pela violência. “Doida pra estudar e brincar principalmente. Mas mesmo sem pandemia nem sempre dá para brincar na rua, me sinto muito mal”. Quando perguntada sobre o que desejaria para o lugar onde mora, a menina é sincera. “Pois é… Às vezes, sinto vontade de ir embora daqui. Mas, ao mesmo tempo, não quero por conta da escola e dos amigos”. A pesquisa “Construindo Pontes” mostra que pessoas em situações de violência são mais vulneráveis ao sofrimento mental. Segundo o estudo, o medo de que alguém próximo seja atingido por arma de fogo chega a 71%. Estresse pós-traumático, ansiedade, depressão e tentativas de suicídio são alguns dos transtornos frequentes.

A pesquisa pioneira foi liderada pela organização inglesa People’s Palace Projects e pela Redes da Maré. Realizada entre 2018 e 2020 com 1.411 moradores acima de 18 anos, teve como desdobramento a 1ª Semana de Saúde Mental da Maré, a Rema Maré, que aconteceu entre os dias 23 a 28 de agosto deste ano. As crianças são peças-chave quando se fala de cuidados de forma geral e com a saúde mental, não pode ser diferente. É preciso estar atento e proteger os mais vulneráveis, esse é um dever de todos e uma obrigação do Estado.

Princípio da Proteção Integral

As crianças e adolescentes do Brasil estão protegidas por lei. Essa proteção é absoluta descrita como “Princípio da Proteção Integral”. Estes princípios têm a finalidade de assegurar os direitos fundamentais da criança e do adolescente com normas protetivas diferenciadoras das aplicadas aos adultos, com base na Constituição e declarado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dando-lhes proteção integral e prioridade absoluta. O princípio da proteção integral assegura direitos e privilégios que diminuam sua fragilidade pressuposta. Ele se encontra descrito no artigo 6º da Constituição Federal de 88, e no 3º do ECA.

“Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

“Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata a lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.”

Responsáveis e crianças moradoras da Maré em frente ao Tribunal de Justiça do Rio, na sessão para recibimento das cartas.

No artigo 227 da Carta Magna do Brasil encontramos o princípio da Prioridade Absoluta. “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem com absoluta prioridade, direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. A destinação privilegiada dos recursos públicos para as garantia da proteção da criança e do adolescente estão elencadas nos artigos 59,87,88 e 261, parágrafo único, do ECA.

Apesar da violência, moradoras têm esperança de dias melhores

Rayssa Fagundes Sampaio e Rayane Fagundes Sampaio, ambas com 14 anos, são irmãs gêmeas e, apesar de reconhecerem o quanto são expostas à violência, falam sobre felicidade. “Sobre mudanças na Maré desde que escrevemos as cartas, não vemos muitas. A violência não mudou em nada, ao meu ver até piorou. Mas eu estou bem graças a Deus. Principalmente de saúde. Já tomei a primeira dose da vacina e estou muito feliz por isso. Apesar da minha vida não ter melhorado muita coisa, sou grata a Deus pela minha saúde e da minha família”, conta Rayane.

As gêmeas fazem parte do projeto “Nenhum a menos”, na Lona Cultural da Maré Herbert Vianna, onde participam de diversas atividades. “Lá, nós fazemos danças,aula de música e de circo,capoeira e robótica. Mas por conta da pandemia está tudo parado. Sentimos muita falta. Pois as aulas nos ajudavam muito e nos mantinham ocupadas. Nos sentimos muito bem lá. Agora, ficamos mais em casa. Não vejo a hora da pandemia acabar para tudo voltar ao normal. As aulas voltaram mas ainda não estão 100%, não são todas as semanas nem todos os dias que tem aula. É muito ruim ficar só em casa. Me sinto chateada e muito presa. Gostaria de poder estar saindo, encontrando mas com os meus amigos e outras coisas assim. Me faria muito bem”, diz Rayssa.

E deixa um recado aos governantes mais uma vez. “Queria dizer para os nossos governantes de modo geral que prestem mais atenção nas nossas comunidades. Na classe pobre, nas escolas da Maré. Lembrando que as aulas voltaram e nós crianças e adolescentes não temos nem alimentação na escola e, quando temos, é de péssima qualidade. Nós merecemos mais.”

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