Recomeçar é possível

Data:

Cursos para Jovens e Adultos auxiliam os que querem trilhar novos caminhos

Maré de Notícias #101 – junho de 2019

Jéssica Pires

“Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela, tampouco, a sociedade muda”. O pensamento do educador e filósofo Paulo Freire, que é referência para muitos que constroem a Educação no Brasil, reflete de forma cristalina o cenário da educação nos territórios periféricos do País. Sobretudo para aqueles que se afastaram do processo de aprendizagem, que enfrentam muitos desafios e têm poucos incentivos para recomeçarem o percurso escolar. Na Maré, questões que são motivos conhecidos para a evasão e o afastamento das salas de aula, desde a infância, são somadas aos desafios específicos de territórios periféricos e favelados. Contudo, há uma que marca na maioria das narrativas: a necessidade prematura de garantir a renda própria ou da família. Com o passar dos anos e a necessidade do retorno, seja para reinserção no mercado de trabalho, permanência nele, ou ainda a busca por direitos que não foram garantidos durante a vida, a volta às salas de aula passa por desafios ainda maiores e estruturais: a necessidade de garantia de renda permanece, falta incentivo familiar, demandas do lar e parentais, falta de tempo, pouca proximidade das escolas e dificuldade de circulação na cidade.

Estratégias falhas

Se as políticas públicas para a Educação Básica visivelmente não são eficazes, considerar que elas deem conta da reinserção e permanência de jovens e adultos no sistema de ensino é uma estratégia falha. É preciso entender as especificidades. “Você deixa de ver esse sujeito como alguém que vê o mundo de uma forma específica e passa a comparar com outros sujeitos que têm formas específicas de ver e agir, até por conta de suas experiências com a própria aprendizagem, e passa a comparar e ensinar da mesma forma que se ensina para crianças. Isso me preocupa muito”, diz Edvânia Ferreira Bezerra, Coordenadora Pedagógica pela UFRJ do Escreva Seu Futuro, projeto de alfabetização de mulheres e uma parceria entre a Redes da Maré – Casa das Mulheres da Maré, Universidade Federal do Rio de Janeiro (URRJ) e a marca de cosméticos L’Oréal – Lancôme. 

A grande questão, segundo Edvânia, é que a Educação de Jovens e Adultos ainda não é, de fato, considerada e tratada como um segmento da educação, e não tem políticas públicas para atender às necessidades específicas dos estudantes. A EJA ainda é tratada como uma alternativa para “escoar” jovens e adultos com baixo rendimento escolar ou ainda existe como projeto de organizações da sociedade civil, como é o caso da Redes da Maré.

Dificuldades

A disponibilização de Centros de Educação de Jovens e Adultos, com acessibilidade, facilidade de acesso da população de diferentes bairros, acesso à internet banda larga, entre outras ferramentas de apoio, é uma disposição da Lei Municipal nº 5.977, de 23 de setembro de 2015. Porém, não é o que vemos. De acordo com Alciclea Ramos dos Santos, moradora da Nova Holanda, educadora de jovens e adultos há nove anos e professora do projeto Escreva Seu Futuro, as escolas que oferecem turmas de educação para jovens e adultos não conseguem garantir a flexibilidade, o olhar individualizado e métodos de ensino que consigam garantir a permanência dessas pessoas.

 “É importante refletirmos também para qual perfil que o incentivo à educação se constitui. É um perfil muito específico de pessoas que estão nesse quadro de evasão. Quem são essas pessoas? Onde moram? Então existe um desinteresse em considerar as especificidades desse perfil”, reflete Alessandra Pinheiro, tecedora da Redes da Maré e coordenadora geral do projeto Escreva Seu Futuro.

 Segundo Alessandra, essas dificuldades são muito maiores para as mulheres. “Elas se tornam muito mais vulneráveis a essa evasão por conta dessas responsabilidades domésticas assumidas apenas pelo fato de ela ser mulher”, diz.

Alfabetização de Mulheres na Maré

Vania da Costa Silva, tem dois filhos e é nascida e criada na Nova Holanda. As dificuldades surgiram bem cedo para ela e aos 9 anos de idade parou de estudar. Foram questões familiares e de saúde que impediram Vania, ainda na infância, de dar continuidade à sua formação. Maria do Carmo de Araújo, tem 3 filhos e veio do Nordeste com 14 anos. Ainda com essa idade havia apenas frequentado algumas aulas do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral). Ao chegar ao Rio, a necessidade de trabalhar e as dificuldades de acesso à escola foram os motivos para o estudo ser deixado de lado.

As duas mareenses fazem parte da turma da professora Alciclea Ramos no projeto de Alfabetização de Mulheres. “Eu gosto de fazer curativos, faço em quem precisar, meu sonho é ser Técnica de Enfermagem. E também estou fazendo o curso de Gastronomia para ser chefe de cozinha”, revela Vania. Para Maria do Carmo, era muito constrangedor não conseguir preencher documentos com dados pessoais e, hoje, é motivo de orgulho para ela e toda a família o seu retorno às salas de aula. Seu desejo é fazer graduação em Biologia.

De acordo com Edvânia Bezerra, são muitas as mudanças percebidas no campo da subjetividade e da autoestima de mulheres – e também de homens – que reingressam para o ambiente escolar: “O sonho deixa de estar estagnado na sua mente, para estar em ação com o seu aprendizado”, diz.

Educação para Jovens e Adultos na Maré


                Em 2017, foram 35 dias em que as escolas da Maré tiveram suas atividades suspensas devido às operações policiais. Em 2018, foram 10 dias sem aulas. Além de todas as questões comuns a territórios periféricos, a dinâmica dos conflitos armados e operações policiais na Maré também dificultam a permanência de quem está disposto a retomar o desafio de estudar.

                Vitor Felix Ferreira Bezerra é nascido e criado na Maré, concluiu o Ensino Médio em uma escola de formação de professores, inclusive pela dificuldade em acessar as únicas duas escolas que oferecem esta etapa de ensino na Maré. O jovem, como muitos mareenses de sua geração, é o primeiro – e por enquanto único de sua família – a ingressar em uma faculdade pública. Segundo Vitor, foi se aproximando mais desse mundo da educação que começou a enxergar sua identidade como docente na Educação de Jovens e Adultos e isso foi um divisor de águas em sua trajetória. “Acredito muito no ensino público e no poder que ele tem de mudar nossa sociedade na base”.

Vitor é um perfil comum na Maré não apenas pela trajetória de ser o pioneiro no acesso ao Ensino Superior na família. Ele, assim como Alcicleia Ramos, retorna para a Maré para retroalimentar essa ideia de que um apoia o outro, ou seja, a lógica de quem sobe um degrau estende à mão para o que está no degrau de baixo. E assim segue, até onde todos estejam no lugar em que queiram estar.

Você sabia?

Está no artigo 205 da Constituição Federal de 1988: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. E também na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que afirma que a educação constitui direito fundamental da pessoa, do cidadão. O acesso à educação efetivo permite a um indivíduo ir muito além do desenvolvimento de habilidades técnicas. A educação leva ao raciocínio lógico e à consciência cidadã que podem garantir ao indivíduo, inclusive, o acesso a direitos básicos.

Dois projetos, inúmeros frutos

Projeto Escreva Seu Futuro

*Projeto de alfabetização de mulheres

*Patrocinadores: Redes da Maré – Casa das Mulheres da Maré, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e L’Oréal – Lancôme.

* 122 alunas inscritas.

* Início março de 2018.

*São realizadas em seis pontos da Maré: Associação de Moradores de Marcílio Dias, Associação de Moradores do Conjunto Esperança, Centro de Referência de Mulheres da Maré (Vila do João), Lona Cultural Herbert Vianna (Baixa do Sapateiro), Sede da Redes da Maré (Nova Holanda), Casa das Mulheres da Maré (Parque União).

*Acompanhe as redes sociais da Redes da Maré para ficar por dentro do processo de inscrição para as próximas turmas!

 Projeto EJA da Redes da Maré

*Projeto de Educação de Jovens e Adultos

* Parceria da Redes da Maré e a Fundação Roberto Marinho, com apoio do Instituto Somos e Instituto Humanize

* 14 turmas na Maré na metodologia do Telecurso.

* 470 jovens e adultos atendidos.

*Acompanhe as redes sociais da Redes da Maré para ficar por dentro do processo de inscrição para as próximas turmas!

Compartilhar notícia:

Inscreva-se

Mais notícias
Related

Descolonizar o pensamento: lições de Nego Bispo e o futuro da Maré

O Clube de Leitura da Casa Preta da Maré, leu o livro "A terra dar, a terra quer", de Antonio Nego Bispo. Todos os participantes receberam um kit com exemplar do livro

Como é ser criança na Maré?

O Maré de Notícias reuniu 13 crianças, alunos do clubinho de leitura da Biblioteca Lima Barreto, na Nova Holanda, para que elas nos respondessem à pergunta: como é ser criança no Conjunto de Favelas da Maré?

Rimas e poesias das crianças da Maré

Crianças do clubinho de leitura da Biblioteca Lima Barreto escolheram a poesia como linguagem para refletir sobre o dia a dia, sonhos e aquilo que mais gostam