Sambar sem apagar a identidade de um povo

Data:

Maré de Notícias #121 – fevereiro de 2021

Por Carlos André – Cazé

O samba é uma das expressões máximas da nossa cultura. A gente chora, faz churrasco, enterra um ente querido, ou simplesmente comemora a vida com uma gelada, e sempre vai ter aquele sambinha acompanhando cada momento. Se ele faz parte do conjunto de características que nos definem, a sua história é uma frequente luta contra preconceitos e tentativas de aniquilamento. 

O samba carioca nasceu na casa da Tia Ciata. Baiana do Recôncavo, cozinheira e Mãe de Santo do Candomblé iniciada em Salvador, ela chegou ao Rio de Janeiro no final do século XIX e foi morar na região central do Rio, entre a Pedra do Sal e a Praça Onze, área chamada até hoje de Pequena África. Era respeitada em toda a cidade; se tornou símbolo de resistência da cultura negra e uma das grandes incentivadoras do nosso ritmo. Para se ter uma ideia, na sua casa aconteciam macumbas, festas e batuques que duravam dois, três dias. Lá foi escrito o primeiro samba gravado em disco, “Pelo telefone”, composição do Donga e Mauro de Almeida.

Isso tudo aconteceu em plena Primeira República, entre 1889 e 1930, com a Lei de Vadiagem em vigor – a tal que era sistematicamente aplicada contra manifestações religiosas e culturais da população negra no pós-abolição. A repressão era intensa; a justificativa para tal violência era que tais práticas feriam os “bons costumes” da sociedade da época. Segundo historiadores, essa era mais uma forma de banir o que estava em formação nos guetos do Rio de Janeiro, e que a elite da época sistematicamente tentava apagar – tradições e costumes africanos ou qualquer outra referência do período escravocrata.

Por conta disso, o samba foi duramente reprimido das mais diversas formas. Desde limitação da hora e do espaço para acontecer até uma lista dos instrumentos que poderiam ou não ser usados nos eventos. Teve muita roda de samba encerrada no meio e muito sambista apanhando da polícia e indo preso sob a alegação de “repressão da vadiagem”. 

Não apenas o samba, mas outras manifestações culturais ligadas à tradição e à cultura negra passaram por esse processo de criminalização, como a capoeira e o funk, até caírem nas graças da elite e, aos poucos, passar por um processo de embranquecimento.

“Respeitam-se muitas tradições, mas aquelas protagonizadas pelos negros e negras dessa terra são desconsideradas. Mas assim como seus criadores, o samba resiste, e resiste com muita força.” Carlos André – Cazé, Bacharel em Direito

Hoje a luta continua pelos direitos

Se no passado foi papel da dita lei e de outros instrumentos o seu apagamento, hoje vemos um processo de elitização do samba e do carnaval, com o ritmo perdendo a sua origem do morro enquanto espaço de troca de saberes e convívio comunitário através da capitalização do carnaval e das agremiações, a destruição dos lugares de memória, o distanciamento das suas origens e o afastamento forçado daquele que mais se identifica e contribui emocionalmente com as festas carnavalescas: o povo preto e pobre. 

Hoje tem roda de samba com ingressos caros. O acesso ao sambódromo acolhe mais o turista do que a população local. As escolas de samba que estão longe dos holofotes, como as da Maré, amargam dívidas e somam a falta de estrutura com o desinteresse por parte dos órgãos oficiais de cultura. Nos grêmios recreativos mais famosos não há lideranças ou artistas negros no comando; à frente das baterias são poucas ou inexistentes as mulheres pretas.

O samba de avenida agora é feito no escritório, tem bloco ou fanfarra desconstruída; tocam tudo, menos samba. Nos últimos anos, o poder público voltou a bater nos sambistas e a demonizá-los em nome da fé. Respeitam-se muitas tradições, mas aquelas protagonizadas pelos negros e negras dessa terra são desconsideradas. Mas assim como seus criadores, o samba resiste, e resiste com muita força.

Sobre o autor:

Cazé

Carlos André, o Cazé, é negro de 45 anos, Bacharel em Direito e morador de Niterói. Atua na Redes da Maré como Gestor de Projetos e faz parte da Casa Preta da Maré, projeto que atua na produção de conhecimento sobre questões raciais e racismo.

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