O peso da participação da população periférica nas manifestações contra o atual presidente
Por Edu Carvalho, em 07/06/2021 às 07h. Editado por Dani Moura
Se você é morador de alguma favela ou periferia do Brasil, com certeza já deve ter escutado a seguinte frase: ‘’Se a favela descer…’’, e daí você completa com o resto. ‘’A escola reabre’’, ‘’A saúde melhora’’, ‘’Não vai ter operação, nem tiroteio’’ e por aí vai. Mas nos últimos anos, sobretudo pela polarização política que elevou Jair Messias Bolsonaro ao cargo de presidente da República, tem sido muito demandada a presença maciça das favelas para uma possível transformação no cenário político. ‘’É momento de planejamento, de minucioso cuidado com a manutenção da segurança sanitária, de buscar e ampliar o respaldo de massas e de nunca esquecer o compromisso com a classe trabalhadora, o compromisso com a vida e o compromisso com o nosso país. Amanhã só vai ser outro dia se começarmos a construí-lo no hoje’’, pontuaram Júlia Rocha e o historiador Jones Manoel, em artigo publicado em UOL Ecoa, no fim de junho.
A reflexão proposta no artigo possibilita a pergunta: e o que se tem feito para aumentar a participação das camadas mais vulneráveis, e que em sua maioria, está nas favelas e periferias do Brasil – sem vacina e sem Auxílio Emergencial?
Cria da Maré, Renata da Silva Souza, de 38 anos, ou simplesmente Renata Souza, deputada estadual eleita à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro pelo PSOL em 2018, foi se vendo na luta que se dá nas ruas aos poucos, através inicialmente do Pré-Vestibular Comunitário da Maré e consequentemente, pelos movimentos sociais. ‘’Participei de manifestações tanto dentro da Maré, quanto fora da Maré’’, diz, sinalizando que um dos primeiros que ajudou a organizar foi em 2006 pela morte do menino Renan da Costa Ribeiro, de apenas três anos, que levou um tiro de fuzil na barriga. O episódio aconteceu na Nova Holanda, uma das favelas da Maré. Outro momento nas ruas também está ligado à morte de uma criança. Foi o caso de Matheus Rodrigues de Carvalho, que estava na porta de casa, na localidade da Baixa do Sapateiro, quando foi atingido no pescoço e morreu, em 2008.
Hoje, enquanto parlamentar ligada à causa dos direitos humanos, Renata reflete que um dos principais fatores, que impedem a presença favela, é justamente o temor de perder a vida.’’A relação que os moradores de favela têm com a polícia é sempre conflituosa. O morador de favela já é tão atingido pela violência policial, que não é numa manifestação que ele vai se colocar, de novo, numa situação em que ele pode ser atingido por uma bala de borracha, por gás de pimenta e até apanhar. É bem difícil’’
Ao mesmo tempo, a vereadora enfatiza que os moradores, mesmo ‘distantes’, estão se conscientizando em grupos organizados, seja os ligados à cultura, segurança pública, ou LGTBQUIA+, que acabam estando mais ativos em atos, sobretudo os contra o atual governo.
Renata esteve presente nas últimas manifestações. Para ela, os levantes têm começado a ganhar caráter mais especial e de peso, com a presença de coletivos de defesa à vida dentro da favela. ‘’A gente encontra os familiares de vítimas da violência, como, por exemplo, os familiares da Kathlen Romeu’’. A jovem foi morta durante uma incursão da polícia no Conjunto do Lins, na zona norte. Kathlen estava grávida. ‘’A conscientização muitas vezes vem pela dor, pelo luto. E aí essa família completamente fragilizada vai compreender que é na rua, lutando pelo seu direito, que a lógica de segurança pública pode não ser colocada a partir do sangue de um jovem negro derramado no chão. A gente vê que o governo Bolsonaro e até o governo Cláudio Castro [governador do Rio] negou a possibilidade da nossa população mais pobre, que vive nas favelas, de ter vacina, de ter acesso a comida e, no entanto, continua tendo uma postura extremamente absurda com as operações policiais, entregando bala de fuzil todos os dias’’.
Para Renata, o acúmulo dos fatores acaba chamando o povo à conscientização. ‘’Isso é grave, e por isso a população tem que ir para as ruas reivindicar o seu direito de viver’’.
Outro cria da Maré é Luiz dos Santos Costa, de 62 anos, professor e morador do Morro do Timbau, e só agora sentiu-se ‘confortável’ a comparecer aos atos, após problemas de saúde. ‘’Fui à manifestação de sábado e fiquei surpreso com a quantidade de pessoas presentes’’, relembra, enfatizando que no local, encontrou com outros moradores vizinhos.
‘’Sinto nosso povo ainda preso ao medo, sobretudo às orientações de fé. E a gente sabe que medo e fé sem discernimento não cria espaço para consciência crítica’’, diz Luiz que também acredita que o medo de ser visto como alvo, afasta o morador de favela, que em maioria é negra, das manifestações. ‘’O medo e o preconceito são estruturantes, mas nosso povo está avançando muito. Nós é que estamos um pouco tímidos’’, finaliza.
A presença da Baixada, um clã bolsonarista
Já para muitos moradores de favelas da Baixada Fluminense, a distância em relação ao Centro, e a grande carga horária de trabalho não são os únicos impeditivos para a presença periférica nas passeatas. ‘’Uma expressiva parcela da população apoia o governo de Bolsonaro’’, diz Marilza Barbosa, de 54 anos e uma das integrantes da Redes de Mães e Familiares da Baixada Fluminense.
O apontamento vem a partir de um perfil conservador das 13 cidades da região, que se tornou em um território fértil para o crescimento do bolsonarismo e o apoio de políticos eleitos pela região. Como traça Marcelo Remigio no Extra, do total de municípios, pelo menos 11, são governados por prefeitos que defendem o presidente Jair Bolsonaro ou seguem alinhados com o governo federal, como os prefeitos Washington Reis, de Duque de Caxias, e Wagner dos Santos, de Belford Roxo, ambos do MDB.
Ainda sim, Marilza enfatiza que, em atos voltados para dar visibilidade aos casos de assassinatos na Baixada, há um engajamento mais forte e maior, por muito deles acontecerem nesses territórios.
Pandemia e palavras como ‘genocida’ podem atrapalhar presença
José Martins de Oliveira, de 74 anos, é morador da Rocinha, na zona sul do Rio, e faz parte de alguns movimentos sociais, como o “Rocinha Sem Fronteiras”. Para ele, a baixa autoestima do morador de favela pode favorecer a ausência. ‘’A falta de conscientização faz com que ele não se entenda como ser transformador’’, pontua.
Segundo Martins, outro ponto a ser levado em consideração é a pandemia, onde se pede distanciamento social, além das medidas de higiene. Não fosse isso, possivelmente o número de pessoas estaria maior e com diversidade etária. ‘’Tem muita gente com mais de 50 anos que vai às manifestações’’. Outro problema listado pelo ativista é a forma como se apresentam as motivações. ‘’Acho que são positivas os motivos [falta de vacinas, aumento do Auxílio Emergencial]. Mas as placas usadas talvez tenham que dar mais ênfase a corrupção atribuída ao governo’’.
Recentemente, revelações feitas em depoimentos na CPI da covid, no Senado, associam o governo Bolsonaro a um suposto esquema de corrupção envolvendo a compra de vacinas Covaxin, que aumentou a indignação da população brasileira. O sentimento em relação a esse momento foi captado nas ruas, em algumas das cidades no último sábado, onde manifestantes usaram cédulas de dólar para protestar contra o suposto esquema.
Em seu blog do G1, Octávio Guedes pontuou que a partir deste episódio, a palavra ‘’ladrão’’ passou a ser gritada a plenos pulmões, pela primeira vez, desde que Bolsonaro pisou no Palácio do Planalto. ‘’De fato, ninguém imagina os gritos “genocidaaaaa!, genocidaaaaaa!” vindos da geral ou da arquibancada para protestar contra o juiz. Nem miliciano. Mas ladrão todo mundo grita, da classe A à Z’’.
Engajamento nas redes sociais não sinaliza participação presencial
Rennan Leta, de 26 anos, morador do Alto da Boa Vista e coordenador do Favela em Desenvolvimento, foi um dos líderes presentes na conversa que o ex-presidente Lula teve com ativistas comunitários, no início de junho. Nas redes sociais, Rennan tem mais de 21 mil seguidores no Twitter e cerca de 10,5 no Instagram. “A presença nas redes sociais chama para rua, mas acho que o termômetro real se dá não pela influência digital, e sim pela influência comunitária do território. Conheço muita gente que tem bastante seguidores e na comunidade não tem tanta influência assim’’,afima o ativista que acredita que o aumento do engajamento nas ruas, se dará com a ajuda dos jornais periféricos. ’’Acho que pode partir de veículos comunitários a explicação, levando ainda mais informação, para que se entenda ainda mais essas questões’’. O jovem pontua, ainda, que há uma organização dos movimentos favelados anterior ao momento atual, como os protestos feitos em 2020, em relação a morte de George Floyd e os já rotineiros contra o genocídio negro no Brasil – sobretudo periféricos e favelados. Leta também lembra que a Federação de Favelas do Rio de Janeiro, a Faferj, é uma das grandes mobilizadoras das favelas.
É justamente a Faferj que os movimentos Brigadas Populares e Frente Povo Sem Medo recorrem para disseminar os atos. David Gomes, de 30 anos, coordenador das duas iniciativas, frisa que a participação e interlocução junto aos movimentos é extremamente importante. ‘’A Faferj chegou a um entendimento e tem se posicionado publicamente nesse sentido, de que é importante derrubar o presidente. A parcela da população que mais sofre com a política de morte, o negacionismo e o desemprego sem dúvida é a favelada”.
Para Gomes, o balanço dos três atos nacionais até agora são ‘’extremamente positivos’’. ‘’Hoje já existe esse entendimento de muitas lideranças e presidentes de associações de moradores sobre a importância de irmos às ruas. Todos os atos nós temos ônibus e vans vindos de várias comunidades da capital, como Barreira do Vasco e Rocinha, como da Baixada Fluminense, de Niterói e São Gonçalo”.
Documentário narra moradores do Capão Redondo, em São Paulo, em dia de ato contra Bolsonaro
Em junho deste ano, a produtora do ProCapão, sediada no Capão Redondo, uma das maiores favelas do Brasil, localizada em São Paulo, produziu o mini-documentário “Quebrada no Ato”, que revela a indignação dos moradores com o atual governo de Bolsonaro. A equipe partiu da comunidade rumo à manifestação do dia 19 de junho, na Avenida Paulista, coletando depoimentos emocionantes de mães, trabalhadores e jovens sobre a atual conjuntura.
Para Bruno Rodrigues, morador da Portelinha, no Capão Redondo, diretor e roteirista do documentário, a iniciativa é mais uma forma de expressão para repudiar o que está acontecendo no momento. ‘’É uma oportunidade de protestar na qual a gente consegue levar pessoas com pessoas que, necessariamente, não conseguiriam sair da Portelinha ou do Capão para estarem representando sua insatisfação com o governo. Essa forma de protesto audiovisual se demonstrou muito potente para dar voz às pessoas que não tem’’, diz.
Segundo Rodrigues, um dos impeditivos pode ser a carga horária de trabalho ou mesmo o valor da passagem até o local das manifestações. Quem concorda com ele é o câmera Gabriel Arruda.‘’Pra gente ir do Capão Redondo até a [Avenida] Paulista, custa no mínimo nove reais, sendo uma passagem de ônibus e o metrô, depois mais nove para voltar. Com certeza isso é um impedimento grande’’.
Gabriel também pontua que a falta de acesso à informação é um dos fatores que contribui para o cenário. ‘’Num bairro onde as pessoas não têm saneamento básico, onde as casas são de palafita, internet é luxo, um privilégio. Para uma mobilização que acontece quase toda online, é lógico que ia passar despercebida por muita gente’’.
Ainda assim, a peça surge como forma de reexistência política e social, reafirmando, mesmo que com a violência, o lugar e a presença da favela nas questões que mais importam ao país. ‘’A periferia soma o maior número de mortos por covid-19, além disso, a fome se intensificou.O povo sente o reflexo no dia-a-dia, seja na falta de emprego, comida, na saudade de um ente querido. Essas vozes que mais sofrem, hoje são as menos ouvidas. Nós queríamos mostrá-las’’, aponta Dan Rosa, também diretor do filme.
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