Sementes de Marielle; confira segunda parte da entrevista com Mãe da vereadora

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Edição #159 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

Nessa segunda parte da entrevista, Marinete fala sobre as sementes deixadas por Marielle, do protagonismo de mulheres negras em espaços de poder e a partir do contexto do assassinato da vereadora, como acreditar em justiça. Acompanhe abaixo: 

MN: Como vocês esperam seguir trabalhando pela preservação da memória de Marielle? 

Lembro bem que logo após a morte da minha filha, começaram a surgir diversas fake news sobre ela, com acusações falsas e criminosas sobre a sua atuação. Mas nenhuma fake news será capaz de manchar a história de Marielle. O instituto surge também para defender sua memória, porque sabemos que o caminho para um futuro de direitos passa pelo reconhecimento da história e da memória de quem dedicou sua vida a essa luta. E um dos 4 eixos do Instituto Marielle Franco é o eixo de Memória. De 2018 até aqui, nós seguimos defendendo a memória dela para que as futuras gerações sigam lembrando quem Marielle foi e é, e o que ela representa. Afinal, nossos passos vêm de longe e nós não vamos parar por aqui: a luta de Marielle seguirá sendo espalhada e concretizada por todos os cantos. Por isso, desde que o Instituto foi criado, nossa família tem um sonho: inaugurar o Centro de Memória e Ancestralidade Marielle Franco. Um espaço físico e digital voltado para a preservação e divulgação da memória de Marielle e das mulheres negras na política que vieram antes e que ainda estão por vir. Uma casa de portas e janelas abertas, em contato com espaços de memória no mundo inteiro, para que essas histórias atravessem gerações. E, nos últimos anos, demos alguns passos importantes para plantar a semente deste projeto. 

MN: Para a senhora, especialmente, como mãe, qual o peso das sementes deixadas por Marielle? 

O Instituto Marielle Franco nasceu para cultivar a forma de atuação coletiva que Marielle defendeu em vida, e as sementes deixadas por Marielle seguem germinando e levando o legado da minha filha por todo o país e vários lugares do mundo. Nós potencializamos e apoiamos mulheres, pessoas negras e faveladas que querem ocupar a política, para que os espaços de tomada de decisão tenham mais a cara do povo. Nesse último mês de março, as sementes mobilizaram vários eventos para pedir por justiça por Marielle e Anderson. O Março por Marielle é uma plataforma de ações que já contou com a participação de pessoas espalhadas em mais de 20 países, 87 cidades e 197 ações. Como mãe, é muito importante e gratificante ver cada dia mais crescer a nossa rede sementes, comunidade de ação em que pessoas interessadas em levar o legado da Mari adiante se encontram e se fortalecem, participando de diversas ações e atividades e formando uma rede de acolhimento, afeto e aprendizagem mútuo. 

MN: As mulheres pretas estão mais presentes nos espaços de poder depois de Marielle? 

O movimento de mulheres negras brasileiras vem construindo ao longo dos últimos 40 anos uma série de avanços políticos, no que tange uma representação substantiva nos espaços de poder e de tomada de decisão, bem como na incidência por políticas públicas elaboradas a partir do referencial da população negra, em especial das mulheres negras. Cabe destacar, por exemplo, a contundente presença de mulheres negras em Fóruns nacionais e internacionais pela superação do racismo, como a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em 2001 na África do Sul, o desenvolvimento de várias organizações da sociedade civil protagonizada por mulheres negras em vários estados do país, a primeira Marcha das Mulheres Negras em 2015, na qual reuniu cerca de 50 mil mulheres em Brasília e desempenhou a partir daí várias táticas e estratégias de articulação e participação política. Especialmente em 2016, um ano após a I Marcha de Mulheres Negras, percebemos que muitas mulheres negras lideranças territoriais se lançaram na disputa eleitoral adentrando a política institucional e Marielle Franco foi uma dessas lideranças. Marielle é e foi fruto de um ciclo histórico de avanços que o movimento de mulheres negras brasileiras desempenhava no nosso país.

Marielle marcou a política e sua atuação como parlamentar inspirou, bem como potencializou tantas outras mulheres negras nesses espaços. Após dois anos do assassinato de Marielle, nas eleições de 2020, tivemos um aumento histórico de candidaturas de mulheres negras, cis, trans e travestis, que consideramos sementes de Marielle. Apesar disso, a mesma violência política que tirou Marielle de nós, ainda sem resposta pelas autoridades, continua cada vez mais afligindo mulheres negras, cis, trans e travestis, que colocam seu corpo à disposição para a política institucional. Entendemos que tentaram interromper esse ciclo de avanços políticos com o assassinato brutal de Marielle e impedir que mais mulheres negras, de favela, LBTs, seguissem ocupando e transformando a política brasileira, mas não conseguiram. Marielle, assim como muitas outras lideranças negras, é semente e continua semeando por um mundo mais justo e um projeto de país de fato equitativo, democrático e possível, em que nenhuma pessoa seja interrompida, sobretudo mulheres negras e corpos de favela. 

MN: O assassinato de Marielle e Anderson ocorreu no marco de intervenção federal na segurança pública no Rio de Janeiro, quando Marielle repudiava a forma que os moradores das favelas estavam sendo tratados durante as operações. Infelizmente esse contexto não mudou. Com os nomes dos suspeitos a mandantes divulgados e o envolvimento do representante da Polícia Civil, que inclusive acolheu sua família no pós assassinato, como é possível para a senhora e outras mães de vitima da violência seguirem acreditando na possibilidade de justiça? 

É fato que as autoridades brasileiras não vêm oferecendo respostas efetivas diante de vítimas de violência do Estado. Como eu falei, a impunidade dessas violações contra a população afro-brasileira permite a repetição de atos semelhantes e a perpetuação do racismo estrutural. Ao longo de sua atuação, Marielle lutou junto a muitas mães das favelas por justiça pelos filhos destas. Por isso, e não teria como ser diferente, a nossa luta por justiça por Marielle e Anderson se reconhece na dor do luto e na resistência da luta de tantos outros casos de violência política de gênero e raça, de crimes contra a vida de defensores de direitos humanos e mortes produzidas pelo Estado. Sabemos que não há que se falar em casos isolados. Mirtes Renata, de Pernambuco, luta por justiça por seu filho Miguel Otávio. Ana Paula Oliveira, cria da favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro, luta por seu filho Johnatha de Oliveira Lima, vítima letal da violência policial. Bertha Zúniga, de Honduras, luta por sua mãe, a liderança lenca Berta Cáceres. Nívea Raposo, no Rio de Janeiro, luta por justiça por seu filho Rodrigo Tavares. Também não posso deixar de mencionar o caso da líder quilombola e Ialorixá Bernadete Pacífico, que foi brutalmente assassinada dentro de sua casa, no Quilombo Pitanga dos Palmares, na Bahia, em 17 de agosto de 2023. Ela lutava por justiça por seu filho Flávio Gabriel Pacifico dos Santos, conhecido como “Binho do Quilombo”, assassinado em 2017. O funcionamento da Justiça assente todos os dias com o derramamento de sangue do povo negro.

Assim, estrutura e é estruturado por discursos e práticas que naturalizam o sofrimento infligido aos povos subalternizados e explorados nos processos de colonização, perpetuando as hierarquias sociais baseadas no gênero, na raça e na classe ampliando violações de direitos humanos e viabilizando a acumulação de capital calcada na expropriação destes mesmos povos. Em outras palavras, os meios oferecidos pelo Estado para buscar por justiça são também estruturas que fornecem sustentáculo para que outras violências brutais como aconteceu com a Mari continuem acontecendo. Nesse contexto, como buscar justiça por Marielle diante de um Poder Judiciário insulado, encastelado, majoritariamente formado por pessoas brancas? E a reparação, da onde virá, qual é o seu sentido? As respostas a estas perguntas estão sendo tecidas a partir da nossa resistência diária. E nós, familiares de Marielle Franco, movidos pelo elo profundo que nos une a ela, acreditamos que somente com a nossa ancestralidade, matripotência e protagonismo conseguiremos mudar as estruturas da sociedade e a fotografia do poder, de modo a alcançar justiça e reparação. E reparação, para nós, mulheres negras, é construir o futuro fazendo justiça ao passado. Continuaremos lutando por justiça para que a investigação sobre os mandantes avance, para que haja o devido julgamento de todos os acusados desse crime brutal que nos tirou Marielle Franco e Anderson Gomes e, sobretudo, para que a sociedade brasileira finalmente tenha as respostas às perguntas: quem mandou matar Marielle Franco e por quê? Continuamos na luta por justiça porque precisamos urgentemente mudar essa dura realidade para que a juventude negra e favelada viva e para que todos os familiares de vítimas tenham acesso à verdade, memória, justiça e reparação.

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