Seminário de educação traz o desafio da ampliação do direito na Maré

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Evento aconteceu no Centro de Artes da Maré por dois dias e discutiu alfabetização, racismo, gênero, evasão escolar e outros temas que atravessam o território

Andrezza Paulo e Hélio Euclides

Nesta quarta e quinta-feira (14 e 15/06), o Centro de Artes da Maré (CAM) recebeu profissionais, instituições e especialistas para o 4° Seminário de Educação da Maré, produzido pelo Eixo de Educação da Redes da Maré. O tema deste ano foi “Diálogos e possibilidades para garantia de direito à Educação”, e discutiu as questões que atravessam o tema no território como a alfabetização, as demandas por unidades escolares, o acesso tecnológico no ensino, raça, gênero, evasão escolar e o diálogo com o poder público para incidir e garantir os direitos dos estudantes das 16 favelas da Maré. 

O primeiro dia foi marcado pelas rodas de conversa com profissionais de dentro e fora da Maré. A abertura contou com a presença da Subsecretaria de Planejamento e Ações Estratégicas da Secretaria Estadual de Educação (SEEDUC), representantes de instituições como Conselho Tutelar de Bonsucesso, Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) e 4ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE).

A Maré tem atualmente 50 escolas públicas: 46 municipais e quatro estaduais. O encontro, organizado pela Redes da Maré, além de promover reflexões sobre a Educação na Maré, propôs a incidência política com a elaboração de uma Carta para a Educação com propostas e reivindicações na garantia do direito ao ensino com a participação das instituições, moradores e profissionais convidados. 

Gênero e Raça

De acordo com dados fornecidos pelo 16° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os jovens negros representam a maioria das vítimas de mortes violentas no Brasil. Quando analisadas as intervenções policiais, as vítimas declaradas negras somam 84%. 

Enquanto os jovens negros são vítimas fatais da presença do Estado nas favelas, como abstrair dessa realidade e se dedicar à escola? Como provocar reflexão na sala de aula se jovens negros estão tentando se manterem vivos? 

Tema da primeira roda de conversa: “As diferentes opressões no país também são refletidas no contexto educacional”, propôs estratégias de estudo, pesquisa e ações educacionais que visam não só o acesso, mas a permanência com qualidade desses jovens nas escolas.

“O percentual de evasão escolar de crianças negras e indígenas é o dobro de crianças brancas. A população negra foi proibida de estudar formalmente até 1878. Precisamos olhar com afeto enquanto motor político para as nossas crianças pretas”

Pamela Carvalho, coordenadora do Eixo Arte, Cultura, Memórias e Identidade da Redes da Maré
Após edições em 2009, 2010 e 2013, o seminário volta a acontecer este ano para promover reflexões sobre o contexto educacional nas 16 favelas da Maré. Foram discutidas temáticas atuais da Educação Básica com especialistas que atuam dentro e fora da Maré | Foto: Patrick Marinho

Em 2022 o Geledés realizou pesquisa que revelou a alta evasão escolar de meninas negras na pandemia. O estudo resultou em um curso sobre direito à Educação dessas meninas e mulheres negras que relataram durante o curso, os atravessamentos que sofriam no âmbito da Educação.

“As meninas negras carregam desafios, que além do machismo e sexismo, são ampliados pelo racismo e território que dificultam seus acessos, permanências e trajetórias nas escolas. Enquanto isso, os livros didáticos continuam refletindo o saber europeu. A gente precisa fortalecer esse espaço de saberes enquanto sociedade civil e instituições. Os saberes e as pessoas não podem ser colocados como superior e inferior. Precisamos furar as bolhas de controle educacional”, relata Suelaine Carneiro, do Instituto Geledés e ativista do Fundo Malala de Educação no Brasil.

Território, Saúde Mental e Direito garantido 

A saúde mental dos jovens da favela e os desafios do território também foram pautas no debate. Durante o ano de 2022, foram 15 dias sem aulas decorrentes das operações policiais. Em 6 meses de 2023 foram 10 dias letivos sem funcionamento das escolas.

O Boletim de Segurança Pública da Maré, mostra que em 2022, 62% das operações não mantiveram o distanciamento do perímetro das escolas como exigido pela ADPF 635. Tainá Alvarenga, coordenadora  do Projeto Maré de Direitos é enfática: “Não é só não ter aula, é uma violação direta de um direito humano e constitucional. A Educação não se estrutura sozinha”, conta. 

A orientadora educacional, Aline Brito defende a contratação de profissionais de áreas diversas no âmbito escolar para a garantia do direito à Educação do aluno, principalmente nas favelas: “A escola na favela é a fotografia do que é o social. Falamos muito sobre acessar, mas como manter todos os alunos na escola? Uma favela que tem mais de 40 escolas sem orientadores educacionais não tem como.” Aline diz ainda que a escola precisa dialogar com assistentes sociais, psicólogos e instituições que considerem a classe, cor e gênero como fatores importantes para uma Educação de qualidade. 

Para Francine Helfreich, da Escola de Serviço Social da UFF, “a Educação Básica vem sendo tratada como prioridade, mas não carrega uma perspectiva de educar integralmente, dialogicamente e de forma humanizada. A preocupação é de números e não do questionamento das estruturas das instituições educacionais. Grandes mudanças a gente faz com luta, mobilização e articulação coletiva como esta carta que estamos construindo”, relata.

Após edições em 2009, 2010 e 2013, o seminário volta a acontecer este ano para promover reflexões sobre o contexto educacional nas 16 favelas da Maré. Serão discutidas temáticas atuais da Educação Básica com especialistas que atuam dentro e fora da Maré | Foto: Patrick Marinho

Assim como o questionamento sobre a Educação Básica, o acesso às escolas e permanência dos jovens, o seminário também refletiu sobre a Educação de Jovens e Adultos (EJA) na Maré. Janete Trajano falou da importância do encontro para pensar juntos enquanto sociedade civil e instituições, as estruturas de ensino, métodos educacionais e articulações para manter os jovens e adultos nas escolas. “Um seminário desse porte tem uma potência muito grande pois não basta só ampliar o número de matrículas se a única coisa que temos na escola é o professor e o quadro. Precisamos ter uma educação integral da escola com a sociedade, que envolva saúde, cultura, esporte. É preciso que outras instituições estejam presentes. Pensar a formação de ensino tentando entender quem são esses sujeitos que estão nesses espaços educacionais”, diz. 

Um estudo sobre a educação

No segundo dia do seminário “Diálogos e possibilidades para garantia do direito à Educação, os trabalhos começaram com uma oficina com Andreza Dionísio, Rebecca Vitória e Brenda Vitória, que trouxeram um jogo de cartas com histórias, que se passam no Conjunto de Favelas da Maré, para promover reflexões e debates sobre temas como direitos sexuais e reprodutivos. 

A oficina “Experiências com a abordagem Afroetnomatemática na Maré”, com Diego Marcelino, debateu o poder das narrativas no ensino da Matemática e sua influência na relação com aprendizagem no campo das exatas dos/as estudantes negros/as. No mesmo horário a oficina “O avesso do mesmo lugar: uma reflexão sobre a Maré afroindígena”, com Marcos Melo  buscou fazer uma reflexão da Maré na perspectiva dos povos originários e da população negra, passando pelas transformações que ocorreram no território a partir do Porto de Inhaúma e dos projetos urbanos entre os séculos XIX e XX.

Após edições em 2009, 2010 e 2013, o seminário volta a acontecer este ano para promover reflexões sobre o contexto educacional nas 16 favelas da Maré. Foram discutidas temáticas atuais da Educação Básica com especialistas que atuam dentro e fora da Maré. | Foto: Patrick Marinho

Na segunda parte da manhã “Educação e Segurança Pública”, Patrícia Vianna e Camila Barros, apresentaram os dados da 7ª edição do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré e o storymaps De Olho na Maré – Impactos da Violência Armada na Maré. A oficina provocou uma reflexão sobre a violência armada e seu impacto no acesso à Educação. Também ocorreu a oficina “Esse ou aquele – combinando nossa convivência”, com Adelaide Resende, que expôs possibilidades de se construir acordos de convivência de forma lúdica e divertida.

Desafios em pauta

Na parte da tarde, a mesa “Educação e Território: desafios e potencialidades na Maré” contou com a mediação de Tábata Lugão, e as convidadas Gisele Martins e Andreia Martins, ambas da Redes da Maré, Ingrid White, diretora do Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI) Moacyr de Góes e Viviane Couto, professora da Escola Municipal Ginásio Olimpíadas Rio 2016. Andreia mostrou os números de abril de 2022 sobre a Educação na Maré, que conta com 46 escolas municipais, sendo 17.483 alunos e quatro colégios estaduais, com 2.631 alunos. Retratou que a quantidade de escolas municipais teve um avanço, que contava com 20 unidades em 2009. Já a rede estadual, que contava com duas escolas em 1972, no qual usam equipamento municipal, uma em 1993 e outra em 2018, hoje continua com as 4 unidades. Andreia ainda mostrou que apesar da quantidade de unidades no âmbito municipal, 19 são destinadas ao primeiro segmento, e apenas cinco são para o segundo segmento. Outro ponto é a existência de apenas quatro equipamentos referente ao Ensino de Jovens e Adultos (EJA).  

Ingrid White, diretora do Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI) Moacyr de Góes mostrou os desafios da unidade no qual atua e de outras oito que fazem parte do Campus Maré I. “Temos uma área externa que é pouco usada, por motivo de deterioração e violência, pois ficamos em área de conflito. Quando não ocorre confronto armado, há operações policiais. Qual o educador que vai desejar trabalhar nessa área? Enfrentamos a situação com potencialidades, como estreitamento com a família e parcerias que nos possibilitam realizar projetos.”

Viviane Couto, professora da Escola Municipal Ginásio Olimpíadas Rio 2016, ex-moradora da Maré destacou a importância da escolha do território e da vontade de mudar a vida dos alunos. Para ela, é preciso ter uma política educacional para a Maré. “Falta qualidade da manutenção dos prédios. O professor está na luta, mas não tem estrutura. É só olhar o terreno das escolas com capim alto, o que se percebe que não há cobrança política. Falta professor de apoio e reserva, o que causa a continuidade na rotina de estudo para o aluno.” Ela foi interrompida por aplausos quando pediu à Coordenadoria Regional de Educação (CRE) soluções dessas questões.

Já Gisele Martins apresentou sua tese de doutorado “Quero que não tenha tiro, tortuosos caminhos na trilha dos direitos das crianças e adolescentes nas favelas”, que ouviu profissionais envolvidos na Educação no território. O estudo foi realizado entre 2016 a 2020, por meio da Pontifícia Universidade Católica (PUC). Foram 12 entrevistas, com 77 respostas individuais. Dos entrevistados 53% mostraram que no início do trabalho na Maré, não queriam atuar no território. Contudo, ao se habituar o número muda para 95% satisfeitos de fazerem parte do corpo educacional da Maré. A pesquisa também mencionou que 83% usam estratégias de comunicação para poder entrar no território. O trabalho também revela que 69% utilizam parcerias e ações para enfrentamento a violência. 

Um novo Ensino Médio excludente

A segunda mesa tinha como tema !O Novo Ensino Médio e os desafios para os jovens das favelas”, trazendo a mediação de Fernanda França. Para debater o tema os convidados Eblin Farage, da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), Marcelo Belford, diretor do Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes e Bia Onça, professora do Colégio Pedro II e coordenadora da Casa das Pretas. 

Eblin Farage destacou que o novo Ensino Médio expulsa o pobre e o preto. “A evasão é responsabilidade do poder público. Falta até escola de segundo segmento do Ensino Fundamental. Como ampliar a lei de cotas se o aluno periférico não consegue nem concluir o básico? A mudança no ensino só limita o estudo das disciplinas principais e a formação em empreendedorismo, que é trabalhar sem os direitos trabalhistas. Isso é avanço? Esse ato nasce de um decreto criado pelo governo golpista do Michel Temer, sem discussão com a sociedade”, comenta.

A ex-estudante do Pré-Vestibular Samora Machel, na Cidade Universitária, Bia Onça, questionou o caminho que a mudança traz, do aluno só poder escolher o técnico ou o profissional, privando-o de um estudo de preparação para a faculdade. “Precisamos de uma Educação emancipada, como ensinou Paulo Freire. Cada canto do Brasil tem a sua característica, igualmente, cada favela da Maré tem a sua particularidade. Não se pode ter um padrão educacional. Hoje são os pretos que são reprovados e que não chegam ao final. Agora essa mudança será mais uma barreira.” 

O professor de história e diretor do Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, Marcelo Belford, trouxe a trajetória de luta na Maré, que começa em 1979 e quatro anos depois tem uma dissertação de mestrado de uma colega de profissão, que traz o título: A doença que não dói. “Eu tinha 17 anos e me marcou, pois, os alunos de alfabetização dessa professora ficavam três anos para conseguirem ler e escrever. Eu na infância tinha vergonha de ser favelado, feio e pobre. Tinha sido removido da Praia do Pinto, mas tinha vergonha de voltar à Zona Sul. Isso mostra que toda mudança é excludente. Não se pode criminalizar a vítima”, avalia. 

Também houve lançamento de dois livros: “Educação pública no Conjunto de Favelas da Maré, desafios e potencialidades”, que tem como foco o processo educacional no território; e “Toda Menina na Escola: pelo direito à educação na Maré”. Todos os presentes receberam um exemplar, que traz diversos textos de mulheres integrantes do projeto Busca Ativa na Maré, com apoio do Fundo Malala. 

Ao fim do evento ocorreu a apresentação da Carta para a Educação da Maré, com 33 desafios, elencados durante os dois dias de encontro. O texto final, que será publicado no site da Redes da Maré e encaminhado para o poder público, foi organizado por Kelly Marques, Alessandra Prado e Aline Borges, da Redes da Maré. 

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