Sou uma árvore bonita – Desafios e perspectivas de ser uma mulher negra na contemporaneidade

Data:

Maré de Notícias #122 – março de 2021

Por Pâmela Carvalho

Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?”

Em 1851, Sojourner Truth proferiu o discurso que ficou conhecido como “E eu não sou uma mulher?” durante a Women’s Convention (Convenção de Mulheres) em Akron, Ohio (EUA). Na fala, cujo trecho foi destacado acima, ela expôs que o tratamento dado às mulheres afro-americanas era bem diferente daquele oferecido para brancas. Porém, o cenário vigente nos Estados Unidos do século XIX não difere muito do que percebemos hoje no Brasil.

Para pensarmos o presente, devemos começar o caminho com Sankofa. Devemos seguir a orientação de olhar para trás e buscar o que foi deixado para, assim, seguir em frente. Quando falamos de trajetórias de mulheres negras, muito foi deixado para trás. Histórias, nomes, rostos e principalmente direitos.

Outra intelectual afro-americana contribuiu para o debate. Segundo Bell Hooks [1]:

“[…] Mais que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade, as negras têm sido consideradas ‘só corpo, sem mente’. A utilização de corpos femininos negros na escravidão como incubadoras para a geração de outros escravos era a exemplificação prática da ideia de que as ‘mulheres desregradas’ deviam ser controladas. Para justificar a exploração masculina branca e o estupro das negras durante a escravidão, a cultura branca teve que produzir uma iconografia de corpos de negras que insistia em representá-las como altamente dotadas de sexo, a perfeita encarnação de um erotismo primitivo e desenfreado.”

Vivemos em uma sociedade que construiu papéis para justificar determinados processos de desigualdade. Muitas vezes é doloroso encarar isso. Mas precisamos compreender que as desigualdades – neste caso, especialmente as de gênero e raça – não são fenômenos inatos. Preconceitos e desproporções são construídos histórica e socialmente.

Em 2008, a cientista social Ana Cláudia Lemos Pacheco [2] escreveu um trabalho que marcou os estudos sobre gênero e relações raciais no Brasil: Branca para casar, mulata para f…, negra para trabalhar: escolhas afetivas e significados de solidão entre mulheres negras em Salvador, Bahia.

A tese de doutorado discute os significados de solidão e escolhas afetivas relacionadas a mulheres negras. A autora percebe um “excedente” de mulheres negras solitárias, quando comparadas a mulheres brancas. Essa solidão diz respeito à ausência de parceiros afetivos ou de relações afetivo-sexuais estáveis.

Já no título do trabalho, a cientista social e ativista fala sobre dois papéis sociais que são impostos a mulheres negras, quando comparadas a brancas. A estas, estaria reservado o casamento, visto em nossa sociedade como uma instituição carregada de dignidade e de valores familiares. Já para as mulatas (mulheres negras de pele clara, muitas vezes oriunda de processos de miscigenação) foi construído historicamente o lugar da hipersexualização. 

O senso comum cunhou a expressão “mulata exportação” referindo-se muitas vezes a intelectuais negras do samba, passistas de agremiações. Ela ratifica um aspecto perverso: a mulata não é vista como gente. A mulata não é ser humano. Ela é produto, e como tal deve ser exportada para “apreciação internacional”.

A terceira figura a quem o título da tese remete é a mulher negra – de pele escura. Esta ficou relegada ao local do trabalho. Mas não o trabalho visto como aquele que “dignifica o homem” e sim, o trabalho doméstico, braçal, resquício dos hábitos escravistas de uma sociedade patriarcal e racista. A personagem Tia Anastácia, que povoa o imaginário nacional a partir das obras de Monteiro Lobato, nos ajuda a compreender a figura dessa mulher negra. A babá, empregada doméstica, aquela que é “quase da família”, mas que não tem direitos básicos.

Feito esse caminho, temos um chão mais firme para pensar desafios e perspectivas contemporâneas ligadas às mulheres negras. Esse histórico nos ajuda a compreender algumas das dificuldades enfrentadas e a traçar estratégias de superação.

Começarei a pensar a contemporaneidade a partir de mim mesma. Sou Pâmela Cristina Nunes de Carvalho. Neta de dona Aparecida e do sr. Valdir. Filha de Roberto Carvalho e Vânia Maria (respectivamente, segurança e merendeira). Sou fruto de uma família negra, que acreditou na educação como mudança de narrativa. Assim, a filha da merendeira e do segurança se tornou mestra em Educação em uma das mais renomadas universidades públicas do país e, atualmente, é coordenadora em uma das mais importantes organizações da sociedade civil no Rio de Janeiro. 

Eu sou literalmente “o sonho mais bonito das minhas ancestrais”, como ouvimos falar. E a minha existência, assim como a de outras jovens negras, é a materialização do sonho, outro direito negado historicamente às mulheres negras.

Segundo dados de 2009 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as mulheres brancas com ensino superior representavam 23,81% da população. Já entre mulheres negras, o índice era de 9,91%. Entre os homens, o percentual de brancos era de 18,7% e o de negros, 6,76%. 

De acordo com a pesquisa de 2018 Estatística de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil do IBGE [3], no grupo de habitantes entre 25 e 44 anos, homens com graduação eram 15,6%. Já as mulheres com o mesmo grau de instrução representavam 21,5%. Observando graduados a partir de critérios de raça e cor dentro da mesma faixa etária, temos os seguintes números: 23,5% de mulheres brancas e 10,4% de mulheres negras; 20,7% de homens brancos e 7% de homens negros. Há 2,3 vezes mais mulheres brancas chegando ao fim de cursos de graduação do que mulheres negras.

Comparando o quantitativo de mulheres negras formadas em 2009 com os números de 2018, é possível perceber um crescimento de 0,49%. O aumento nos índices educacionais de mulheres negras deve-se em parte a políticas públicas como o sistema de cotas, que oportuniza o acesso da população preta e parda ao ensino superior e à sua permanência na universidade.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (2016) apontam que, entre as mulheres brasileiras, as negras (pretas e pardas) são maioria: éramos 45% em 2004  e  50,9% em 2014. Isto equivale a 26,5% da população total do país. O Relatório ONU Mulheres de 2016 aponta que, naquele ano, 39,2% das mulheres negras estavam inseridas no mercado de trabalho. Porém, foi percebido que o principal cargo era o de empregada doméstica. Mulheres negras têm conseguido ocupar espaços de trabalho; ainda assim, estamos afastadas dos locais de poder e de tomadas de decisão.

Somos árvores bonitas, como canta Luedji Luna. Temos raízes fincadas na terra e galhos que nos conectam umas às outras enquanto mulheres negras. Nossa semente foi plantada em uma terra marcada pela escravidão, pelo machismo e pelas desigualdades. Isso se reflete em números que apresentam avanços mínimos quando falamos sobre direitos e poder para mulheres negras. Mas ainda assim avançamos. Entendo que a educação e a arte nos permitem trilhar caminhos mais serenos para que, assim como Sankofa, possamos seguir em frente tendo como base as dores que nos forjaram fortes, mas também a genialidade que nos tornou invencíveis.

“Hoje e todos os dias,
Sou grata pelas mulheres negras
que amam/ escrevem/ criam/ se emocionam
a partir de suas raízes
e nunca
pedem desculpas por sua magia.” (Upile Chisala [4])

Sobre a autora:
Pâmela Carvalho: educadora, historiadora, gestora cultural, comunicadora, pesquisadora ativista das relações raciais e de gênero e dos direitos de populações de favelas. É Mestra em Educação pela UFRJ. É coordenadora do eixo “Arte, Cultura, Memórias e Identidades” da Redes de Desenvolvimento da Maré. É moradora do Parque União, no Conjunto de Favelas da Maré.

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