10 anos da Lei de Cotas

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Apesar de ter reduzido as desigualdades no ambiente acadêmico, ela ainda enfrenta resistência de alguns setores

Por Hélio Euclides e Jorge Melo

Há uma década era sancionada a lei nº 12.711, chamada Lei de Cotas, que reserva 50% de vagas em universidades públicas e institutos federais de ensino superior para estudantes advindos de escolas públicas. Agora, conforme previsto pela própria legislação (um adendo de 2016), ela deve passar por revisão pelo Congresso Nacional.

Mesmo sendo atacada como “racial”, a lei é fundamentalmente social. Dentro da reserva de vagas, estão incluídos os alunos de baixa renda pretos, pardos e indígenas (PPI); pessoas com deficiência (PcD); e, sob a rubrica “Outros”, alunos brancos e de outras etnias não especificadas. 

Essa distribuição reflete os percentuais representativos de cada grupo em seu estado, apurados pelo Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE). Se a população de um estado é 50% composta por indivíduos negros, metade das vagas reservadas será ocupada por alunos negros.

Menos desigualdade

Em dez anos, a lei conseguiu diminuir as desigualdades sociais e raciais na educação superior. O portal UOL divulgou um levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) sobre os avanços na diversidade do ensino superior. O estudo avaliou os anos de 2012 a 2016, revelando que, neste período, o ingresso de estudantes de escolas públicas cresceu de 55,4% para 63,3% nas instituições federais; já o de alunos negros e indígenas saltou de 27,7% para 38,4%.

Uma das lideranças que há mais de duas décadas tem contribuído para o debate sobre políticas de ações afirmativas para negros e pobres nas universidades públicas é Frei David Raimundo, fundador da Educação e Cidadania de Afrodescendentes (Educafro). Ele questiona o motivo da revisão da lei de cotas. 

“Não há nenhuma lei do agronegócio ou que beneficia bancos que precise de revisão depois de dez anos. Essa revisão da Lei de Cotas só revela que o legislativo está impregnado do racismo estrutural. Queremos uma lei que não tenha tempo, que exista enquanto necessário”, critica.

Para o religioso, é preciso que a responsabilidade, hoje do Ministério da Educação (MEC), pelo levantamento nacional sobre o desempenho dos cotistas e a eficiência da lei seja de entidades sociais. Segundo ele, é preciso ainda que a lei contemple o ingresso do negro na pós-graduação. 

“Não é aceitável que tenhamos ainda universidades federais com mestrado e doutorado que não tenham a preocupação de incluir o negro. Isso se chama racismo estrutural”, conclui. 

De acordo com a Agência Câmara de Notícias, tramita no congresso o Projeto de Lei 3402/20, que cria cotas para acesso de pessoas negras, indígenas, oriundas de comunidade quilombola, com deficiência e transexuais às vagas de pós-graduação nas universidades brasileiras.

Lei de inclusão

O jornalista Julio Menezes Silva, pesquisador e curador do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), lembra que a luta pelo acesso à educação e a serviços básicos, como saneamento e saúde, começou há mais de cem anos.  

“Falar dos dez anos da lei de cotas é fazer um resgate histórico, por que ela é coletiva e ancestral. Esperamos que continue por uma centena de anos. Cota não é esmola, e sim reparação mínima para que possamos superar essa chaga que é o racismo estrutural, a principal doença da sociedade brasileira”, diz. 

Uma pesquisa da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) mostra que há 67 propostas que pretendem alterar a lei no Congresso Nacional; destas, 31 podem prejudicar a reserva de vagas para negros. 

Essa resistência à lei não é nova: em 2006, foi criado o Manifesto Contra as Cotas, assinado por 114 sociólogos, artistas, historiadores e ativistas. Entre eles estava a historiadora, professora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, uma das maiores autoridades em história do Brasil. Em 2019, ela publicou em seu perfil no Facebook uma retratação por ter assinado o manifesto.

“Me arrependo demais por ter assinado esse documento que vai contra minha atuação na academia e ideias que professo […] Errei ao não atentar para a intenção do documento e assim fortalecer uma causa contra a qual me oponho, com convicção.[…] Sou a favor de cotas, pois é preciso reparar desigualdades e hierarquias criadas, durante séculos, pelo sistema escravocrata e pela falta de políticas de inclusão das populações negras durante a República. […] Sou a favor de ‘desigualar para igualar’, pois acredito num país mais justo, generoso e inclusivo. Sou a favor de cotas pois elas têm a potencialidade de criar, e vem criando, ambientes mais plurais […]. Com mais diversidade seremos muito melhores e menos apequenados, como se encontra o Brasil dos dias de hoje!”

Lei de reparação 

Vitor Felix, morador do Parque Maré, acredita que a lei beneficia estudantes das periferias – Foto: Gabi Lino

O professor e pesquisador em literatura Vitor Felix, morador do Parque Maré, defende a lei porque ela beneficia estudantes das periferias, dando a eles condições de disputar uma vaga no ensino superior. 

“A lei de cotas é importante porque também expõe a desigualdade de oportunidades educacionais no nosso país. Essa realidade precisa de atenção urgente, para que a escola pública forme indivíduos cada vez mais conscientes de suas opções, dando a eles garantias de oportunidades. A lei de cotas beneficia a sociedade em geral porque promove uma formação de qualidade para uma quantidade maior de pessoas com trajetórias distintas”, ressalta.

As cotas permitem o acesso à universidade, mas não garantem que os beneficiados se formarão. “É difícil sustentar os custos com alimentação, deslocamento, material de estudo. Muitas famílias não podem arcar com as despesas durante um curso de graduação”, analisa.

Ele percebe que, em muitos cursos, ainda é difícil ver estudantes negros, mesmo com as cotas; segundo o pesquisador, as universidades têm estruturas ainda dominadas por pessoas brancas e pelo pensamento que funciona com base no racismo e nos valores culturais da elite intelectual.

Lei de vitórias

A Lei das Cotas não é ainda a solução final, pois é necessário somar a ela  políticas sociais que compensem os que foram prejudicados no passado ou que herdaram desigualdades. 

“As cotas facilitaram a entrada de pessoas pretas, pardas e indígenas na universidade — eu sou um exemplo disso. Sofri na pandemia; os dois últimos anos do Ensino Médio foram por meio remoto, assim como o pré-vestibular”, conta Lara Moreira, moradora da Nova Holanda e estudante do segundo período do curso de Matemática da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Lara Moreira mora na Nova Holanda e entrou pelo sistema de reserva de vagas para o curso de matemática da UFRJ – Foto: Hélio Euclides

A estudante lembra as dificuldades que enfrentou para entrar no ensino superior, como no dia que passou pela avaliação fenotípica — ou seja, teve que provar sua cor. Segundo ela, foi muito constrangedor ficar à frente de três pessoas brancas e de uma câmera. 

“Não é só entrar; lá nos sentimos sozinhas, pois a maioria vive o dia inteiro na universidade — ao contrário de nós, que corremos para trabalhar, cuidar dos afazeres da casa e frequentar o curso”, conta.

Para a estudante, é visível a vitória depois de dez anos da lei, com a inclusão das pessoas periféricas na universidade. “Acho que ainda temos uma jornada muito grande pela frente, pois até agora só tive uma professora preta na universidade. É triste que existam políticos em posição de tirar os nossos direitos”, diz.

Lei para os brancos

O educador e artista multilinguagem Paulo Victor Lino foi cotista do curso de História da UFRJ. Para ele, as cotas estão relacionadas à reparação histórica da população negra que viveu um período de 400 anos sendo mão de obra escrava, construindo a nação do Brasil. 

Ele compreende que a construção das leis privilegiam cada vez mais a classe branca e excluem os negros do espaço de poder — incluindo o do conhecimento. “Torna-se ignorância quando as cotas são vistas como um lugar de esmolas e o negro, como um indivíduo não capacitado”, diz. 

O educador analisa o desserviço da máquina pública ao retirar direitos adquiridos: “O direito às cotas parte de um movimento popular, mas hoje o que se vê é a morte da democracia e o racismo impregnado na maneira de fazer a política.” 

Sobre os auxílios estudantis, ele afirma que o valor é baixo, atrasa e em algumas universidades o aluno só recebe a ajuda no primeiro ano. “O estudante acaba abandonado pela universidade, sem poder se alimentar, se manter e viver dignamente”, finaliza.

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