Projeto, que inclui textos de moradores da Maré, teve como objetivo retratar a vida durante o período de restrições mais severas da pandemia de covid-19
Por Tamyres Matos, em 24/11/2021 às 16h27. Editado por Edu Carvalho
“Os dias parecem ser todos iguais e inacabáveis, sinto que cada noite em que durmo, e cada dia em que acordo é mais um dia de resistência”. A angústia da rotina de isolamento ganhou expressão nas palavras de Letícia Pataxó, nascida e criada na Maré, moradora de Santa Cruz à época do texto, e de outras dezenas de autores brasileiros no projeto Literatura Comunica. A coleção de textos batizada de Diários de Emergência Covid-19 ganhou projeção ao se tornar finalista do prêmio Jabuti, cujo resultado será divulgado nesta quinta-feira (25). Os primeiros colocados receberão o troféu Jabuti junto a R$ 5 mil em dinheiro e o vencedor do Livro do Ano vai receber R$ 100 mil.
Os diários foram publicados no Jornal Literatura Comunica em formato digital e o Maré de Notícias abordou o tema em matéria publicada no ano passado. “Não tenho dúvidas de que nosso projeto tem um papel fundamental para a construção da memória social dessa epidemia global. Fizemos literatura e história através dos diários. Estar entre os 5 finalistas do Prêmio Jabuti no eixo Inovação – Fomento à Leitura vem coroar tudo isso”, afirma Miriane Peregrino, coordenadora do Literatura Comunica.
Na 61ª edição do Prêmio Jabuti, o maior de literatura no Brasil, foram selecionados os finalistas das 20 categorias, divididas entre Literatura, Ensaios, Livro e Inovação. De acordo com a Câmara Brasileira do Livro (CBL), organizadora da premiação, este ano foram recebidas 3,4 mil inscrições, 31% a mais do que no ano passado.
Entre os finalistas também está José Falero, escritor gaúcho perfilado pelo Maré de Notícias em setembro. Com o livro “Os supridores” (Editora Todavia, 2020), o morador de uma das vilas, a versão gaúcha das favelas mais pobres de Porto Alegre, é finalista na categoria Romance Literário. Supridores são a versão sulista dos repositores, funcionários que abastecem as gôndolas dos supermercados, e, com a obra, Falero passou a ser considerado umas das maiores revelações da literatura brasileira.
Pandemia na periferia
Os Diários de Emergência abordam diversos aspectos da vivência com as restrições da pandemia, mas um dos destaques vem dos textos sobre a realidade da periferia. “Os cuidados a serem tomados não faziam sentido pra minha realidade de pobre e favelado que não tem acesso pleno ao saneamento básico. Sem contar que antes dele (o vírus) chegar, a água já estava chegando suja na minha casa”, relembrou Adriano de Carvalho Mendes, morador do Morro do Timbau.
Miriane explica que a Maré atravessou o projeto de diversas maneiras. O projeto gráfico, por exemplo, é do Anísio Borba e a coordenação do Rio de Janeiro é do Carlos Gonçalves, ambos moradores da Maré e atuantes na Frente de Mobilização da Maré. Segundo a idealizadora e editora do Literatura Comunica, durante o processo de produção do material, Anísio e Carlos estavam envolvidos com as demandas urgentes que a pandemia impôs aos moradores de favelas, como campanhas de conscientização sobre o uso da máscara e distribuição de cestas básicas.
“‘Sobrevivência’ é a palavra que marca os relatos de quem passou por esse momento dentro da favela. À ameaça do vírus somaram-se ameaças já conhecidas como ações policiais, desemprego, fome…”, aponta, ao considerar as diferenças entre os relatos vindos de dentro e de fora da periferia.
Os Diários de Emergência são formados por três séries, divididas em cinco números publicados: “Rio de Janeiro”, “Brasil, Norte a Sul” e “Brasileiros no exterior”. De acordo com a organização do projeto, a iniciativa teve como objetivo ampliar narrativas plurais e evidenciar os contrastes entre morro e asfalto, capital e região metropolitana, Sudeste e Nordeste, além de abordar as condições de brasileiros em situação de imigração.
“Um movimento muito interessante que vejo é do interesse de veículos de comunicação do Nordeste em valorizar a participação de seus autores no conjunto de diários que está correndo ao Jabuti, em especial no Piauí, Sergipe e Rio Grande do Norte. Ano passado, os diários foram bem recebidos pela imprensa, mas a maioria das reportagens destacavam a série “Rio de Janeiro”. Então, acho que esse movimento é importante, sinaliza também como o Jabuti é visto em outros estados”, diz.
Para Miriane, os diários formaram uma comunidade afetiva e curativa da pandemia. Ela relembra que Mille Fernandes, uma das autoras da série “Brasileiros no exterior”, acredita que o projeto representou um aquilombamento curativo para o caos da pandemia, no caso dela, em Angola, país de onde escreveu. “Fizemos tudo sem apoio, sem financiamento e isso traz uma marca de comunidade. Queremos muito reunir todos os diários em um livro impresso e atualizar os diários. A gente torce muito para ganhar o Jabuti, mas, independente disso, o selo ‘finalistas do Jabuti’ já é nosso e queremos usá-lo para publicar essa iniciativa em livro ano que vem”, planeja.